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O superendividamento do consumidor

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1. INTRODUÇÃO

O objetivo do presente estudo é apontar a relação de causa e efeito entre a democratização do crédito ao consumo e o endividamento crônico dos consumidores, assim como consignar que mesmo diante da ausência de tratamento legal específico para o superendividamento, ainda assim, a Constituição Federal de 1998 e o Código de Defesa do Consumidor autorizam o início de uma tutela do devedor nessa condição.

A proteção do consumidor superendividado encontra sua justificativa nos princípios e valores consagrados pela Constituição Federal de 1988, notadamente no princípio da dignidade da pessoa humana e na defesa do consumidor, revelando a legitimidade dessa tutela.


2. O CRÉDITO AO CONSUMO

O crédito assumiu importante papel na atual sociedade de consumo, de sorte que a sua ausência pode impossibilitar o indivíduo de honrar os seus compromissos básicos do dia a dia, vez que muitas pessoas se endividam para pagar despesas mensais correntes. Dessa forma, o endividamento gerado pela expansão e concessão irresponsável de crédito é fenômeno inerente às sociedades de massa. O crédito e o endividamento dos consumidores, portanto, devem ser tratados conjuntamente, como causa e efeito do novo modelo de sociedade de consumo.

Atualmente, o que se vê no Brasil é uma inteira deformação da função social do crédito. Os lucros das instituições financeiras são elevadíssimos e as taxas de juros são fixadas em percentuais desproporcionais de modo a colocar o consumidor em posição extremamente desvantajosa. A função social do crédito, que seria de promover o desenvolvimento econômico e equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade (art. 192 da CF/88), como objetivo do Sistema Financeiro Nacional, não está sendo respeitada.

Destarte, o endividamento dos consumidores de crédito é acentuado sobremaneira, de modo a evoluir para um fenômeno social crônico, conhecido como superendividamento, que assola muitas sociedades de consumo em massa.


3. O SUPERENDIVIDAMENTO

3.1 Conceito e noções gerais

O tema do superendividamento ou sobreendividamento ainda não foi tratado pela lei brasileira com a atenção que já mereceu em outros países, motivo pelo qual vem despertando a preocupação e os cuidados da melhor doutrina pátria, a exemplo da professora Cláudia Lima Marques, com o escopo de fornecer um tratamento adequado ao referido fenômeno social, jurídico e econômico.

A análise desse fenômeno demanda conhecimentos interdisciplinares, de natureza sociológica, psicológica, econômica e jurídica, de sorte que, escapando da sua análise mais completa, interessa para os fins colimados no presente estudo, as suas implicações na esfera socioeconômica e os seus reflexos no Direito.

O superendividamento indica o endividamento superior ao normal daquele possível de ser suportado pelo orçamento mensal dos consumidores. É definido pela citada doutrinadora como "a impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas suas dívidas atuais e futuras de consumo" [01].

Diante desta definição, torna-se perceptível que o tema ganha relevância jurídica não com a mera inadimplência obrigacional eventual, mas sim na hipótese em que o devedor de boa-fé está impossibilitado permanentemente de pagar o total de suas dívidas de consumo, ainda que estas se tornem exigíveis no futuro.

Percebe-se também que, o superendividado é sempre um consumidor, em acepção mais restrita do que aquela fornecida pelo CDC, pois apenas admite-se a tutela à pessoa física, excluindo, portanto, a pessoa jurídica. Trata-se de pessoa física que, de boa-fé, contrata concessão de crédito, destinado à aquisição de produtos ou serviços para atender uma necessidade pessoal, e nunca profissional.

Assim, o superendividamento não pode ser visto como um simples momento de inadimplência obrigacional, e sim, como a impossibilidade de uma pessoa suprir as suas necessidades básicas, como alimentação, vestuário e moradia, que são materializadas através do crédito ao consumo. Esse prisma revela que, na relação obrigacional de crédito existem importantes aspectos da vida humana que, se desprezados, podem ameaçar a própria dignidade da pessoa.

Por essa razão, nos ensina Brunno Pandori Giancoli:

Conseqüentemente, a natureza do superendividamento também está ligada à eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, ou seja, a vinculação dos particulares, ou das entidades privadas, ao direito fundamental de acesso ao crédito pelo consumidor. [02]

É evidente que, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais exige uma ponderação dos interesses envolvidos, de modo a não esvaziar, e sim a equilibrar os valores conflitantes. No fornecimento de crédito ao consumidor, a preservação da autonomia da vontade deve ser reduzida quando o superendividamento for causado pela aquisição, mediante o crédito contraído, de bens essenciais à vida humana com dignidade.

Nesse sentido, o superendividamento é um instituto que permite, nas palavras de Brunno Pandori Giancoli, "a correção da assimetria de uma ou diversas relações jurídicas contraídas pelo consumidor, em razão da existência de um conjunto de dívidas estruturais ajustadas de boa-fé, capazes de ameaçar ou lesionar sua dignidade pessoal" [03].

É válido consignar também que o sobreendividamento é um fenômeno global, pois atinge a maioria das sociedades de consumo, e atinge tanto consumidores da classe média, principalmente após a explosão da modalidade de crédito consignado, como dos segmentos sociais mais carentes, tanto trabalhadores como aposentados.

Como causa, a doutrina aponta diversos fatores que contribuem para a ocorrência do superendividamento, vejamos:

Na maioria dos casos, o superendividamento não se deve a uma única causa, já que o devedor deve fazer frente a um conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços de primeira necessidade, créditos hipotecários, carros móveis etc. e, inclusive, decorrentes do abuso e incorreto uso do cartão de crédito. Somam-se, ainda, causas não econômicas, tais como falta de informação e educação dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crônicas etc. [04]

Independentemente da causa que gerou o superendividamento, o consumidor que atingir essa condição está fadado à exclusão social, vez que, como apontam estudos sobre a matéria, a socialização é quase sempre afetada pelo sobreendividamento, importando em verdadeira reformatação das relações sociais desses indivíduos.

Para ratificar o quanto consignado, valem destacar os ensinamentos doutrinários:

No entanto, o que mais sobressai nestes indivíduos é o afastamento social por iniciativa dos próprios sobreendividados. Esse comportamento pode derivar de uma atitude consciente e deliberada, que resulta da constatação de que não têm condições monetárias para manter os antigos padrões de lazer. Mas pode derivar também de um estado emocional favorável ao isolamento e à desmotivação pela vida em grupo. A vergonha e a insegurança que lhes é comum, facto que se tornou notório ao longo de várias entrevistas, não conduz apenas à construção de uma normalidade artificial, como foi referido. Pode gerar igualmente um distanciamento da vida familiar e colectiva, que os empurra para as fronteiras da exclusão social. [05]

O superendividado, em face dessa condição, tem a sua auto-estima abalada, assim como a confiança na sua capacidade de reger a sua vida pessoal e familiar, o que agrava o seu modo de relacionamento social e afetivo. O isolamento, estados depressivos, os conflitos conjugais são reações que afloram habitualmente e desestruturam a vida dos indivíduos nessa condição.

Inobstante o colapso financeiro acarretar o isolamento social do indivíduo, pode resultar também na exclusão total do superendividado do mercado de consumo, lhe impossibilitando de suprir as necessidades para viver dignamente, situação assemelhada à sua "morte civil".

Dessa forma, em relação aos efeitos individuais, o instituto do superendividamento visa evitar a ruína do consumidor, sob o aspecto econômico, social e moral; visa sua re-inclusão no mercado de consumo e no seio social de forma digna, de modo a lhe garantir uma existência igualmente digna. Já em relação aos efeitos globais, o sobreendividamento visa preservar o próprio mercado, haja vista que isso depende da "saúde" financeira do consumidor e da sua manutenção no ciclo produtivo, o que, no contexto alhures delineado, só é possível através de uma tutela jurídica específica destinada a prevenir e a curar as hipóteses de endividamento crônico.

Embora no direito positivo brasileiro ainda não exista uma regulamentação específica acerca do sobreendividamento, a doutrina pátria busca nos ordenamentos jurídicos alienígenas soluções para a prevenção e tratamento deste fenômeno, despontando a solução francesa como a mais aceita no Brasil [06]. Obviamente, o estudo comparado deve ser realizado, mas nenhuma solução estrangeira poderá funcionar adequadamente, vez que é necessário considerar a estrutura da sociedade, do mercado e das instituições brasileiras.

De qualquer sorte, o tratamento normativo conferido ao superendividamento na França entende o inadimplemento do consumidor de crédito como um problema social, que ultrapassa o limite dos interesses individuais e, portanto, interessa à sociedade.

Nessa perspectiva, a tutela francesa ao consumidor visa garantir o uso racional e refletido do crédito e criar uma noção geral do endividamento crônico, assim como visa garantir a lealdade nas relações de consumo, através de medidas como: a exigência de contrato escrito e o seu fornecimento ao consumidor, prazo de reflexão e de arrependimento, regulamentação específica da publicidade, dentre outras. Criaram-se ainda comissões de superendividamento, com natureza administrativa, que têm a finalidade de conciliar o superendividado com o conjunto dos seus credores [07].

3.2 Superendividamento ativo e passivo

A doutrina classifica o superendividamento a partir das razões que lhe deram causa, dessa forma, pode ser ativo ou passivo.

Quando o consumidor, espontaneamente, abusa do crédito e o utiliza de forma excessiva, extrapolando as possibilidades do seu orçamento, existe o superendividamento ativo. No caso do superendividamento passivo, a causa não é o abuso do crédito ou a má gestão orçamentária, mas um "acidente da vida" (desemprego, redução de salários, enfermidades crônicas, divórcio, acidentes, mortes etc.), o consumidor não contribui diretamente para o inadimplemento global de suas dívidas.

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Essa distinção leva em conta a atitude do consumidor: no primeiro caso, voluntariamente endividado e, no segundo, levado ao estado de insolvência por fatores externos à sua vontade.

Em termos práticos, tanto os acidentes da vida como o abuso de crédito podem gerar o endividamento crônico, levando o devedor à impossibilidade global de arcar com suas dívidas atuais e futuras. Desse modo, tanto o superendividado passivo como o ativo são merecedores da tutela protetiva do consumidor, exigindo-se, em ambos os casos, a boa-fé objetiva, afinal ambos estão expostos às mesmas práticas comerciais agressivas dos fornecedores de crédito e aos riscos decorrentes do fornecimento creditício irresponsável.

3.3 A boa-fé do consumidor

A boa-fé é verdadeira regra de conduta que exige das partes um agir pautado em valores como honestidade, lealdade, cooperação e franqueza, de modo a equilibrar as relações travadas, inclusive as de consumo. O Código de Defesa do Consumidor refere-se à boa-fé como princípio geral das relações de consumo (art. 4º, inciso III), e como cláusula geral para os vínculos contratuais (art. 51, inciso IV).

A boa-fé do consumidor é condição essencial para a caracterização do superendividamento, que é entendido como a impossibilidade global do consumidor, pessoa física, e de boa-fé, de pagar todas suas dívidas atuais e futuras de consumo. Dessa forma, no sobreendividamento, a boa-fé não é vista apenas como um princípio, mas como uma condição comportamental do consumidor, sem a qual não há a incidência do instituto.

Sobre a investigação da boa-fé do consumidor, vale transcrever a doutrina de Brunno Pandori Giancoli:

Em verdade, a noção de boa-fé em matéria de superendividamento implica que seja procurado em relação ao superendividado, através de dados da causa, o elemento intencional que evidencia seu conhecimento deste processo e sua vontade de solucionar o conjunto de suas dívidas cujo total é excessivo, tendo-se em conta os recursos do devedor. [08]

Dessa forma, a boa-fé do consumidor se materializa na sua iniciativa de quitar o total dos seus débitos, dentro de sua possibilidade financeira. Todavia, ressalta o supracitado doutrinador, diante da vulnerabilidade do consumidor e da dificuldade de prova dos elementos de base que geram o estado de sobreendividamento, a sua boa-fé é presumida, cabendo prova em contrário a cargo do credor. [09]

Vale frisar, por fim, que a existência de numerosos débitos, por si só, não cria prova desconstitutiva da boa-fé do consumidor, haja vista que a hipótese de superendividamento já pressupõe um amontoado de dívidas.

3.4 A boa-fé do fornecedor de crédito

São muito freqüentes as condutas que envolvem o abuso de direito nas relações de consumo, notadamente em matéria contratual e envolvendo práticas comerciais, fato que justifica a positivação no ordenamento jurídico pátrio do princípio da boa-fé. O abuso de direito se caracteriza não apenas pela intenção de causar dano, mas também no desvio de finalidade ou da função social desse direito.

A teoria do abuso de direito impõe limites éticos ao exercício dos direitos subjetivos. Tais limites são fixados com base tanto no princípio da boa-fé objetiva, como nos bons costumes e a função social dos direitos.

No caso dos contratos de fornecimento creditício, é evidente que o fornecedor que concede crédito a quem não tem condições de adimplir o ajuste está abusando do direito de fornecer crédito, ainda que tal contrato satisfaça os requisitos formais de validade. O fornecedor deve condicionar seus empréstimos a uma prévia avaliação da capacidade de endividamento do tomador, de forma a somente celebrar contratos em limites compatíveis com a natureza alimentar dos vencimentos deste. Ao adotar conduta diversa, opta por assumir os riscos do negócio, os quais não podem ser repassados ao consumidor.

Sobre o tema, nos ensina a doutrina:

O financiamento concedido de forma temerária, tendo sido celebrado o pacto com consentimento irrefletido, sem contemplação por parte do fornecedor das reais condições daquele que pretende receber o crédito, praticamente induzindo a inadimplência, sem dúvida nenhuma viola o princípio da dignidade da pessoa humana. A proteção das legítimas expectativas dos consumidores, a garantia de cumprimento do que ele espera obter de uma dada relação contratual, nada mais é do que a projeção do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana no âmbito obrigacional. [10]

Portanto, o abuso do direito de oferecer crédito, sem uma cuidadosa e responsável análise da capacidade financeira e de endividamento do tomador, é incompatível com a boa-fé objetiva e não pode contar com a chancela do Judiciário quando provocado para revisar as cláusulas contratuais, principalmente quando as obrigações contraídas pelo consumidor se evidenciam desproporcionais ao seu próprio proveito, importando em lucro exorbitante para o credor.

Assim, deve o fornecedor de crédito, em nome da boa-fé, na elaboração dos termos do contrato, considerar de forma razoável os interesses do consumidor. Se apenas concretiza no texto contratual interesses próprios, então viola a liberdade contratual, a qual está limitada pelo princípio da boa-fé.

Nos contratos bancários, incluídos os de financiamento, cartão de crédito e empréstimo pessoal, a boa-fé objetiva se instrumentaliza nos deveres impostos ao fornecedor de informar e cooperar com o parceiro contratual, evitando o superendividamento do consumidor.

Destarte, o fornecedor está obrigado a informar, de modo claro, objetivo, verdadeiro e cognoscível, ao consumidor os termos do ajuste a ser celebrado. Assim, não basta apenas disponibilizar a informação, é preciso que o consumidor efetivamente entenda o que está sendo informado. Apenas dessa maneira o consumidor realizará o contrato de forma consciente, reduzindo, por efeito, os riscos de danos e de frustração de expectativas.

Acerca do dever de informação nos contratos de crédito, valem destacar as lições de Heloísa Carpena e Rosângela Lunardelli Cavallazzi:

É evidente que a adesão ao contrato de crédito ao consumo, estabelecendo relação continuada, de duração muitas vezes prolongada, e envolvendo cálculos e taxas freqüentemente incompreensíveis para o consumidor, impõe maior carga de informação a ser prestada pelo fornecedor.

Em razão desse fato, a doutrina francesa criou a figura do dever de aconselhamento, ou obrigação de conselho, que ‘implica no dever de revelar ao consumidor os prováveis problemas da operação de crédito a curto e a longo prazos, prevenindo-o e sugerindo soluções possíveis. Trata-se de personalizar a informação, cabendo ao fornecedor considerar não as características do homem-médio, mas daquele consumidor determinado, transmitindo a ele, de forma simples e compreensível, os riscos e as variáveis que envolvem a operação de crédito ao consumo. [11]

Já o dever de cooperar implica na adaptação do contrato firmado em face de mudança das circunstâncias sobre o qual foi celebrado. Assim, diante de uma grave crise econômica ou do desemprego do consumidor, por exemplo, impõe-se ao fornecedor uma renegociação da dívida objeto do contrato, reescalonando, planejando, dividindo ou reduzindo os débitos a pagar, ou, até mesmo, perdoar os juros, as taxas ou o principal, a depender das possibilidades do devedor, sempre preservando a este um mínimo existencial. Implica também no ajuste de um prazo de reflexão e de arrependimento para os contratos de crédito ao consumo, de modo a se evitar a contratação irrefletida.


4. O SUPERENDIVIDAMENTO NO BRASIL

4.1 A tutela constitucional do consumidor na hipótese de superendividamento

A ausência de legislação específica não impede a proteção e defesa dos consumidores na hipótese de superendividamento no Brasil, uma vez que a própria Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor contêm normas gerais que permitem o início dessa tutela.

A nova ordem constitucional inaugurada em 1988 atribuiu como eixo que informa todo o arcabouço jurídico brasileiro a promoção do bem estar do homem, a partir de garantias das condições mínimas da sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos fundamentais, condições materiais e espirituais básicas de existência. A dignidade do ser humano desponta como valor supremo do ordenamento jurídico brasileiro, daí erigindo o princípio da dignidade da pessoa humana como o mais relevante do nosso sistema jurídico, devendo por isso condicionar a interpretação e aplicação de todo o direito positivo, seja público ou privado.

Destarte, a premissa maior de proteção e defesa do consumidor na hipótese de superendividamento é a sua própria dignidade, pois os efeitos decorrentes dessa condição, já abordados, são incompatíveis com o respeito à dignidade. Isto porque, o crédito permite a satisfação de necessidades primárias para a maioria da população brasileira, revelando que na relação obrigacional de crédito existem importantes aspectos da vida humana que, se desprezados, podem ameaçar a própria dignidade da pessoa.

O superendividamento, conforme já consignado, não pode ser visto como um simples momento de inadimplência obrigacional, e sim como o estado de impossibilidade do indivíduo suprir suas necessidades vitais básicas que são materializadas através do crédito ao consumo.

Nesse contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana garante ao consumidor superendividado a manutenção de um núcleo básico de consumo que lhe permita um acesso mínimo ao crédito de consumo para poder suprir as suas necessidades essenciais e, assim, poder viver dignamente. Acrescentem-se os ensinamentos do professor Brunno Pandori Gaincoli:

Importante notar, que a violação desse núcleo essencial básico de consumo gera, na maioria dos contratos de crédito, a degradação da condição de pessoa, justamente porque interfere diretamente na autonomia da vontade do consumidor, reduzindo-o à condição de mero objeto da pretensão contratual. [12]

Portanto, a invocação do princípio da dignidade da pessoa humana legitima a tutela do superendividado, até mesmo como forma de evitar a exclusão social do consumidor nessa condição, como tratado em passagem anterior.

Ademais, outra premissa constitucional que enseja a tutela ao superendividado é o próprio princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, da CF/88). O superendividamento, ainda, enquadra-se perfeitamente nos valores de solidariedade constitucional, responsabilizando o fornecedor de crédito pelas repercussões que a sua atividade provoca no meio social.

4.2 O superendividamento e o Código de Defesa do Consumidor (CDC)

Ao estabelecer os objetivos da Política Nacional de Consumo (art. 4º do CDC), o legislador brasileiro visou atender as necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações consumeristas.

Dúvidas não pairam que o referido programa assegura a dignidade da pessoa humana nas relações de consumo, de sorte que, inobstante a proteção constitucional, o legislador ordinário buscou expurgar qualquer situação incompatível com o respeito à dignidade.

Nesse cenário, o CDC elenca diversos princípios e normas que incidem em amplo leque de situações, de modo a potencializar a proteção e defesa do consumidor, abrangendo, inclusive, a hipótese do superendividamento. Ressalte-se que, a tutela atual concedida pelo sistema jurídico pátrio ao superendividado não exclui a necessidade de uma regulação específica para a matéria, introduzindo novos direitos e deveres para os atores das relações entre fornecedor e consumidor [13].

Sendo assim, vejamos as normas insertas na lei consumerista que conferem uma proteção inicial ao superendividado.

O art. 6º, IV, do CDC estabelece como direito básico do consumidor "a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços". Dessa forma, resta justificada a tutela do superendividado em face da oferta fácil e irresponsável de crédito, assim como contra a publicidade enganosa e abusiva, a ensejar a responsabilização do fornecedor.

O referido artigo elenca ainda como direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas" (art. 6º, V). Assim, a lei consumerista mitigou o princípio da obrigatoriedade dos contratos, de modo a promover o equilíbrio contratual, evidenciando verdadeira prevalência do princípio da defesa do consumidor em relação à autonomia da vontade.

Outrossim, válido destacar que, o art. 6º, V, do CDC autoriza a revisão contratual em virtude de causas contemporâneas ou posteriores à celebração do pacto, desde que presentes no ajuste cláusulas abusivas ou prestações desproporcionais, ou ainda em razão de fatos supervenientes que o torne excessivamente oneroso, como é a hipótese do superendividamento.

Como forma de proteção contratual, a Lei nº 8.078/90 invalida os contratos celebrados sem o conhecimento prévio pelo consumidor do seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance (art. 46). Igualmente, o referido diploma estabelece um prazo de reflexão e o direito de arrependimento sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio (art. 49).

Em relação às cláusulas abusivas, o CDC reconhece nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade (art. 51, IV).

Destarte, os arts. 6º, V, e 51, IV, ambos do CDC, admitem a intervenção judicial no conteúdo do contrato para equilibrar as prestações pactuadas, promovendo verdadeira justiça social no caso concreto.

A Lei nº 8.078/90, em seu art. 52, trata especificamente dos contratos de outorga de crédito ou concessão de financiamento, impondo ao fornecedor o dever de informar ao consumidor, prévia e adequadamente, sobre: preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; acréscimos legalmente previstos; número e periodicidade das prestações; soma total a pagar, com e sem financiamento.

Diante dos dispositivos legais apontados, mostra-se possível um início de proteção e defesa do consumidor superendividado, através da exigência de cumprimento pelo fornecedor de crédito de cada um dos deveres legais.

Cabe consignar, por derradeiro, que além das hipóteses autorizadoras da revisão dos contratos creditícios que estabelecem prestações desproporcionais ou que em razão de fatos supervenientes que os tornem excessivamente onerosos, existe ainda a hipótese de revisão relativa ao superendividamento do consumidor. Vale lembrar que, neste caso, apenas o superendividado (isto é, aquele consumidor que necessita restaurar dignamente a sua capacidade de crédito para manter sua existência social mínima) possui legitimidade para propor essa hipótese de revisão de contrato.

Evidentemente, o pleito revisional em face do superendividamento deverá ter por objeto a totalidade das dívidas do consumidor, e não apenas um ou outro débito pontual. Acerca da matéria, leciona o sempre lembrado Brunno Pandori Giancoli:

Trata-se, em verdade, de uma hipótese de revisão concursal, na qual os interesses dos credores não serão ignorados, mas são tratados de maneira subsidiária, justamente para proteger aquele que se encontra em situação de fraqueza à beira da indignidade.

O fenômeno concursal garante aos fornecedores um tratamento paritário de seus créditos e a coibição da má-fé presumida do superendividado. Todavia, é válido lembrar que a paridade no tratamento não impede a classificação dos créditos, da mesma forma que é feita na falência e recuperação de crédito do empresário. Porém, a falta de diploma que discipline a matéria do superendividamento no Brasil impede a classificação desta classificação nas ações revisionais em geral, cabendo ao juiz a aplicação referencial dos dispositivos da lei 11.101/05 na hipótese de superendividamento. [14]

Dessa forma, deferido o pleito revisional do superendividado, o Poder Judiciário, além de modificar as bases do negócio firmado, elaborará um plano de recuperação [15], isto é, efetuará um programa de pagamento das dívidas do consumidor, tendo em vista a sua capacidade financeira e a manutenção de recursos necessários para suprir as suas despesas mensais correntes, de modo a possibilitar a sua permanência, ou o seu retorno, no mercado de consumo, respeitando, obviamente, os direitos creditícios dos fornecedores envolvidos.

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Sobre o autor
Eduardo Antonio Andrade Amorim

Advogado em Salvador-BA. Pós-graduado em Direito do Estado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Eduardo Antonio Andrade. O superendividamento do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2658, 11 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17597. Acesso em: 21 nov. 2024.

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