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Alexis de Tocqueville: o aristocrata visionário da democracia contemporânea

11/06/2011 às 10:22
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O século XIX d. C. foi uma época profícua quanto às inovações científicas e culturais, tanto no campo das Ciências Naturais e Biológicas (Física, Química, Astronomia, Medicina, etc.), quanto na área das Ciências Sociais e Humanas (História, Economia, Ciência Política, Filosofia, etc.). No tocante às essas últimas, alguns pensadores sociais alcançaram renome científico e reconhecimento popular e influenciaram decisivamente o rumo dos acontecimentos futuros, quer a nível político, quer em termos econômicos e culturais, através da difusão das suas idéias. Já outros cientistas sociais, em que pese a originalidade das suas concepções e o inegável valor teórico e metodológico das suas pesquisas, não tiveram mesma a sorte, não tendo alcançado um reconhecimento amplo, exceto para os raros cientistas sociais da atualidade que se debruçam sobre o conjunto de suas obras. Dentre esses últimos cientistas sociais que caíram no "limbo", está a figura de Alexis de Tocqueville (1805-1859).

Alexis de Tocqueville foi um cientista social francês que nunca obteve reconhecimento literário, científico e político na sua terra natal enquanto estava vivo, tendo alcançado reconhecimento e fama enquanto pensador político e homem de letras somente muito tempo após a sua morte, em especial nos Estados Unidos e no Reino Unido.

O filósofo Denis Huisman preleciona que Tocqueville "... nunca foi reconhecido na França assim como seu modelo Montesquieu e, embora tenha influenciado H. Taine, F. Le Play ou G. Sorel, foi por muito tempo relegado ao panteão dos pensadores antiquados. Fora da França, Tocqueville não sofreu esse fenômeno de rejeição." (1) Já Raymond Aron lembra que "nos países anglo-saxões Tocqueville é considerado um dos mais importantes pensadores políticos, comparável a Montesquieu no século XVIII. Na França, porém, nunca foi objeto de interesse por parte dos sociólogos, porque a moderna escola de Durkheim se originou da obra de Augusto Comte. Por isso os sociólogos franceses acentuaram os fenômenos da estrutura social, em detrimento dos fenômenos das instituições políticas. Provavelmente, pelo mesmo motivo Tocqueville não costuma figurar, na França, na lista dos grandes mestres." (2)

Oriundo de uma família da aristocracia togada gaulesa, Alexis de Tocqueville exerceu diversos cargos políticos e administrativos, inclusive o de Ministro das Relações Exteriores entre junho e outubro de 1849. Jurista por formação, exerceu a função de magistrado de 1827 a 1832, quando renunciou ao cargo em solidariedade a um amigo seu. Entre 1839 e 1851 foi deputado.

Sua produção científica é quantitativamente pequena mas cientificamente relevante e diversificada, influenciando decisivamente diversos especialistas contemporâneos da História Comparada, da Ciência Política, da Sociologia Cultural e do Direito Constitucional Comparado.

Suas duas "magnum opus" são "Democracia na América" e "O Antigo Regime e a Revolução". A primeira obra resultou de uma viagem sua aos EUA com o objetivo de estudar o sistema prisional estadounidense. O segundo livro é conseqüência das suas pesquisas e reflexões acerca das origens e do desenvolvimento da Revolução Francesa (1789-1799).

Uma leitura atenta de ambos os livros supracitados demonstra que Tocqueville utilizou o método histórico comparativo para analisar a gênese histórica e a tipologia sociológica e política dos regimes democráticos, tanto na sua amada França quanto na então novel república norte-americana. Diga-se, a bem da verdade científica, que Tocqueville foi um dos precursores do emprego do referido método histórico.

Podemos concluir, a partir da leitura das obras em epígrafe, que a principal preocupação de Tocqueville é estabelecer a gênese imediata e os traços estruturais característicos da sociedade democrática que estava se formando na Europa e na América do século XIX d. C. a partir de uma criteriosa análise histórica comparativa.

"Para Tocqueville, uma sociedade democrática é uma sociedade individualista, onde cada um tende a se isolar dos outros, com sua família. Curiosamente, esta sociedade individualista apresenta certos traços comuns com o isolamento característico das sociedades despóticas, pois o despotismo tende a isolar os indivíduos uns dos outros. O resultado, porém, não é a inclinação ao despotismo da sociedade democrática e individualista, pois certas instituições podem impedir o desvio no sentido deste regime corrompido. Essas instituições são associações livremente criadas pela iniciativa dos indivíduos, que podem e devem interpor-se entre o indivíduo solitário e o Estado. Tocqueville concebeu a sociedade totalmente planifica pelo Estado; mas essa administração, que abrangeria o conjunto da sociedade, e que sob certos aspectos se realiza na sociedade que chamamos hoje de socialista, longe de criar o ideal de uma sociedade alienada, que sucede à sociedade despótica, que devemos temer. (...)

As sociedades democráticas são, em conjunto, materialistas, o que significa que os indivíduos têm a preocupação de adquirir o máximo de bens deste mundo, e que o objetivo da coletividade é fazer com que o maior número possível de pessoas vivam do melhor modo.

Tocqueville lembra, todavia, que como contrapartida desse materialismo ambiente, surgem de vez em quando explosões de espiritualismo exaltado, erupções de exaltação religiosa. Esse espiritualismo que irrompe é contemporâneo do materialismo normalizado e corrente. Os dois fenômenos opostos fazem parte da essência de uma sociedade democrática." (3)

Outro aspecto importante do pensamento político de Tocqueville reside no fato de que a sua concepção política e social acerca da Democracia está modelada pelo Liberalismo do século XIX d. C. que encara o Estado Administrativista (= Estado dotado de um aparelho burocrático estruturado) como sendo a principal ameaça à política e à liberdade individual.

Importa destacar, na esteira do magistério do professor francês François Châtelet, que Tocqueville reconhecia a criação e desenvolvimento do regime democrático na Europa e nos EUA do século XIX d. C. como sendo um fato inelutável e irreversível. Todavia, tal reconhecimento não implica em dizer que Tocqueville fosse um entusiasta fervoroso da Democracia. Tocqueville "não têm para com a democracia moderna nem o entusiasmo dos que esperavam dela uma transfiguração do destino do homem nem a hostilidade dos que a consideravam a decomposição da sociedade. Para ele, a democracia se justifica pelo fato de que favorece o bem-estar do maior número, mas este bem-estar não tem brilho ou grandeza, e não deixa de apresentar perigos políticos e morais." (4)

Especificamente quanto ao seu livro "O Antigo Regime e a Revolução" é um fato inconteste que "... Tocqueville elaborou ... o primeiro e exemplar modelo analítico do contexto formativo da ideologia revolucionária. Mas existe algo além que torna L’Ancient Régime uma obra pioneira, e, ao mesmo tempo, um estudo básico de movimentos sociais e revolucionários modernos. Como a maior parte dos escritores depois dele, Tocqueville parte da hipótese de que as revoluções são conseqüência de conflitos internos que, no devido tempo, transformam-se em divergências intransponíveis entre estratos privilegiados e subprivilegiados de uma determinada sociedade. Estas podem expressar-se como dominação política, exploração econômica ou ambas. No entanto, contrariamente à maioria dos teóricos da revolução, Tocqueville não vê uma correlação positiva crescente entre opressão-dominação e situações revolucionárias, ou seja, quanto mais opressão, maior a probabilidade de revolução. Ao invés, ele localiza o detonador ou ponto de partida de uma revolução no momento em que o processo de dominação começou a se mover no sentido inverso, ou, em outras palavras, quando destino dos subprivilegiados já começou a melhorar." (5)

Na visão de Tocqueville o colapso do regime aristocrático e a consequente instauração de um regime democrático implica na criação, pelo menos a longo prazo, de uma sociedade onde os desníveis sociais ou os desequilíbrios estruturais existentes no tecido social (sejam os desequilíbrios econômicos, sejam aqueles desequilíbrios oriundos do exercício do poder político ou ainda aqueles desequilíbrios de caráter cultural) tendem a ser insignificantes ao ponto de minimizar os conflitos sociais. Data venia das doutas opiniões divergentes, vejo que esse entendimento de Tocqueville é ainda válido nos dias de hoje, carecendo de maiores comprovações empíricas no tocante àquelas sociedades contemporâneas genuinamente democráticas.

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Nesse sentido, é notório que a concepção teórica da revolução democrática de Tocqueville é diametralmente oposta àquelas teorias sociológicas e políticas monocausais de caráter teleológico que procuraram explicar a gênese e o desenvolvimento dos movimentos revolucionários que existiram na segunda metade do século XIX d. C. e em boa parte do século XX d. C., em especial as várias vertentes ideológicas e políticas da teoria histórica e sociológica marxista.

No decorrer das suas pesquisas e reflexões, traduzidas nos seus dois livros acima mencionados, Tocqueville acabou por constatar a existência de duas espécies de revoluções políticas e sociais que dão origem as sociedades democráticas contemporâneas: a revolução democrática que se alicerça na liberdade e a revolução democrática que se fundamenta na igualdade. Para Tocqueville, o paradigma histórico da primeira espécie de revolução é a Revolução Americana que deu origem aos EUA, enquanto o paradigma histórico da segunda espécie de revolução é exatamente a Revolução Francesa.

O último aspecto importante do pensamento político de Tocqueville a respeito das sociedades democráticas reside no fato do aludido pensador considerar que as referidas sociedades, na medida em que alcançam um regime genuinamente democrático, tendem a se tornar, social e politicamente, conservadoras, ainda que contenham em seu arcabouço social e político fatores ou elementos potencialmente geradores de conflitos sociais e políticos. Destarte, "Tocqueville escreve que as sociedades democráticas nunca podem estar satisfeitas, porque, igualitárias, fomentam a inveja; contudo, a despeito dessa turbulência superficial, são fundamentalmente conservadoras." (6)

Em síntese, e à guisa de fecho deste opúsculo, podemos afirmar que Tocqueville foi o cientista social cuja obra teve com cerne analítico o novel regime democrático que estava em pleno desenvolvimento na Europa Ocidental e nos EUA na primeira metade do século XIX d. C. Sem ser um entusiasta convicto da Democracia o aristocrata Tocqueville aceitou-a como um fato político e cultural consumado. Sua vida transcorreu num período de significativas metamorfoses políticas, sociais, culturais e econômicas e, nessa medida, ele viu a chegada da Democracia como um fenômeno político e social vinculado a uma nova espécie de sociedade cujo embrião ele viu surgir na primeira metade do século XIX d. C. (leia-se, a sociedade industrial de massas). "Colocado num ponto eqüidistante entre o velho e o novo regime, Tocqueville apresenta, sobre seus contemporâneos, a vantagem de ver os acontecimentos de sua época de dentro e de fora, e sempre numa perspectiva ampla, muitas vezes aberta." (7) Nesse diapasão, é justo dizer que Tocqueville foi um cientista social de vanguarda para sua época, na medida em que, aplicando de forma arguta e sistemática o método histórico comparativo, procurou discernir os aspectos mais importantes acerca da sociedade democrática que estava se formando no início do século XIX d. C. em substituição à vestuta sociedade aristocrática até então vigente na Europa.


Notas

(1)Huisman, Denis: Dicionário dos Filósofos. p. 976.

(2)Aron, Raymond: As Etapas do Pensamento Sociológico. p. 208.

(3)Aron, Raymond: As Etapas do Pensamento Sociológico. p. 231.

Cabe ressaltar que as "últimas muralhas da democracia, apenas os costumes e a religião podem prevenir as vertigens materialistas com o ponto de ancoramento que oferecem às mentes; assim acha-se introduzida na política uma "atmosfera moral" sem a qual Tocqueville não concebe essa liberdade ativa e pública cuja paixão animou todas as suas pesquisas." (Huisman, Denis: Dicionário dos Filósofos. p. 976).

(4)Aron, Raymond: As Etapas do Pensamento Sociológico. p. 221.

(5)Barbu, Zevedei: Apresentação. In: Tocqueville, Alexis: O Antigo Regime e a Revolução. p. 16.

(6) Aron, Raymond: As Etapas do Pensamento Sociológico. p. 239.

(7)Barbu, Zevedei: Apresentação. In: Tocqueville, Alexis: O Antigo Regime e a Revolução. p. 26.


Referências bibliográficas

ARON, Raymond: As Etapas do Pensamento Sociológico. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Ed. Martins Fontes; Brasília: Ed. UNB, 1982.

BOBBIO, Norberto et al: Dicionário de Política. Tradução de Carmen C. Varriale et al. 10ª. ed. Brasília: Ed. UNB, 1997.

CHÂTELET, François et al: História das Idéias Políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.

HUISMAN, Denis: Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.

TOCQUEVILLE, Alexis: O Antigo Regime e a Revolução. Tradução de Yvonne Jean. Brasília: Ed. UNB, 1979.

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Sobre o autor
Ricardo Luiz Alves

licenciado em História pela PUC/RJ, bacharel em Direito pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas (CIESA), servidor da Justiça do Trabalho em Manaus (AM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Ricardo Luiz. Alexis de Tocqueville: o aristocrata visionário da democracia contemporânea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2901, 11 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19276. Acesso em: 25 abr. 2024.

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