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Obrigatoriedade dos precedentes

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Analisam-se algumas hipóteses de incidência obrigatória dos precedentes no Brasil, que evidenciam que a influência dos precedentes vem ganhando corpo e interesse dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Sumário: 1. Introdução; 2. Entre o Civil Law e o Common Law; 3; A tradição do não seguimento; 4. Valores Constitucionais da Jurisdição; 4.1 Segurança jurídica; 4.2 Previsibilidade; 4.3 Igualdade; 4.4 Coerência e racionalidade; 4.5 Celeridade. 5. Os Precedentes no Sistema Normativo Brasileiro; 5.1 Premissas básicas; 5.2 Repercussão geral; 5.3 Súmula Vinculante; 5.4 Controle de constitucionalidade, pelo STF; 5.5 Julgamento monocrático, nos Tribunais; 6. Conclusão; 7. Referências


1. Introdução

O presente trabalho se inicia com uma breve introdução acerca das duas grandes famílias do direito ocidental, representadas pelo civil law, ou o direito escrito, e o common law, também denominado de direito costumeiro. Busca-se, com tanto, inserir o tema que será mais a fundo tratado, qual seja, a obrigatoriedade dos precedentes judiciais, apontando sua origem.

Na sequência serão tecidos comentários acerca de alguns casos práticos, em que revelada a tradição nacional do não seguimento dos precedentes.

Passa-se, após, ao apontamento, não restritivo, da grande gama de valores, base do ordenamento jurídico nacional, que são realizados quando do respeito aos precedentes judiciais, por parte dos operadores do direito. Como se verá, a opção pelo respeito aos precedentes, antes de meramente racional e estável, dá completude a postulados constitucionais.

Ver-se-á, também, que a adoção do seguimento dos precedentes faz transparecer mais correta a aplicação do direito, diante do seio social, sobretudo quando coloca os jurisdicionados e as decisões que os afetam no mesmo patamar de igualdade, dando aplicação à isonomia constitucional e aproximando a decisão judicial do conhecimento comum, dada sua previsibilidade.

Por fim, lança-se mão de análise acerca de algumas das hipóteses de incidência obrigatória dos precedentes no ordenamento jurídico brasileiro, que, ainda que tímidas se comparadas àquelas existentes no direito costumeiro, evidenciam que a influência dos precedentes vem crescendo, ganhando corpo e interesse do Poder Legislativo e de toda a estrutura da Justiça.

No mais, conclui-se o presente trabalho no entendimento de que a obrigatoriedade dos precedentes é medida que se impõe para a defesa de valores necessários a uma distribuição mais homogênea da Justiça, e, portanto, mais justa.


2. Entre o Civil Law e o Common Law

Common law e civil law podem ser definidos como as duas maiores famílias do direito ocidental, e, portanto, as formas de tradição do direito mais influentes que existem deste lado do planeta. São dois grandes campos jurídicos em que concebidas formas distintas de ensinar, estudar, entender e principalmente interpretar e vivenciar o direito.

O civil law atual tem sua raiz fincada em dogmas oriundos, principalmente, da Revolução Francesa, cujo anseio para a restrição do Poder Estatal, e maior organização deste, trouxe conceitos fixos e concebidos, positiva e racionalmente, para a aplicação da lei.

Nesse contexto, onde gravita de forma contundente a necessidade de firmar bases sólidas e objetivas, com o fito de limitar o poder discricionário de que até então eram dotados os governantes, foi tirada do juiz a possibilidade de interpretar a lei, devendo, tão somente, quando diante do caso concreto, aplicá-la do modo tal qual positivada, sem nenhuma carga valorativa.

A rigidez que se buscava dar ao direito, nesse contexto, se contentava tão somente com sua positivação legal e aplicação fria, destituída de qualquer valoração.

Por meio da Revolução Francesa que teve o intento, com sucesso, diga-se, de romper com a ordem histórica e estatal anterior, o juiz do civil law quando da aplicação da lei, tinha de fazer o mesmo, ou seja, romper com esta mesma ordem, sob pena de desnudar a essência de seu papel de bouche de la loi:

A Revolução Francesa, porém, procurou criar um direito que fosse capaz de eliminar o passado e as tradições até então herdadas de outros povos, mediante o esquecimento não só do direito francês mais antigo, como também na negação da autoridade do ius commune. O direito comum havia de ser substituído pelo direito natural. Tal direito, ao contrário do inglês, tinha que ser claro e completo, para não permitir qualquer interferência judicial no desenvolvimento do direito e do poder governamental. (MARINONI, 2010, p. 57/58).

Assim o foi, ainda, por conta de dois importantes fatores. O primeiro deles foi a constatação de que, antes do ano de 1789, os juízes pertenciam a classes aristocráticas, sem qualquer compromisso com os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade e, não obstante, tinham intenso contato com as classes privilegiadas. O segundo foi a própria concepção de separação de poderes preconizada por Montesquieu, no sentido de que deveria haver a subordinação do Poder Judiciário aos postulados previamente definidos pelo Poder Legislativo, sob pena de se voltar ao tempo do arbítrio dos entes estatais.

De acordo com Montesquieu, o "poder de julgar" deveria ser exercido através de uma atividade puramente intelectual, cognitiva, não produtiva de "direitos novos". Essa atividade não seria limitada apenas pela legislação, mas também pela atividade executiva, que teria o poder de executar decisões que constituem o "poder de julgar". Nesse sentido, o poder dos juízes ficaria limitado a afirmar o que já havia sido dito pelo poder legislativo, devendo o julgamento ser apenas "um texto exato da lei". Por isso Montesquieu acabou concluindo que o "poder de julgar" era, de qualquer modo, um "poder nulo". (MARINONI, 2010, p. 53/54).

A questão da proibição de se interpretar a lei para sua aplicação, como pensavam os idealizadores da Revolução Francesa, contudo, não foi suficiente para sanar o problema da interpretação legislativa. Isso porque, como se sabe, a evolução da sociedade é extremamente mais rápida que a criação legislativa e, ainda que esta busque acompanhar aquela, as inúmeras e complexas criações do espírito humano não podem estar descritas tipicamente na lei.

A afirmação acima, indiscutível, passou a ser observada pelos defensores do civil law e, principalmente, pelos magistrados, que, na condição de aplicadores da lei, ocupavam posição central de todo o contexto.

Como já afirmado, o Poder Judiciário estava subordinado às disposições do Poder Legislativo e, quando do surgimento de dúvida acerca da identificação da norma aplicável ao caso concreto, deveria realizar consulta ao próprio Poder Legislativo.

Assim nasceu, no âmbito do civil law francês, a chamada Corte de Cassação.

Determinada Corte foi instituída com o nítido propósito de restabelecer a aplicação fria da lei, aquela almejada e obrigatória para os defensores do civil law.

Embora chamada de Corte, não tinha ela, no início, qualquer atribuição jurisdicional, sendo, na verdade, órgão competente apenas para cassar a decisão proferida pelos juízes que não aplicassem a lei do modo adequado, ou seja, do modo descrito objetivamente nela, após consulta ao Poder Legislativo, quando necessário.

Ademais, a competência de tal Corte, no início, não consistia em dar interpretação à norma, vinculando os magistrados, mas, apenas, a cassar a decisão tida por equivocada.

Entretanto, logo se notou a impropriedade de tal procedimento, até então adotado pela Corte, vez que não bastava apenas cassar a decisão anterior, deixando ao talante do juiz nova aplicação da lei. Assim sendo, o tempo determinou que a Corte de Cassação francesa passasse a definir, ela mesma, qual a melhor interpretação a ser dada à lei produzida pelo Poder Legislativo, passando a Corte de Cassação a ocupar, a partir de então, a cúpula do Poder Judiciário francês.

Acrescente-se aqui que o civil law, por sua origem romana e por influência francesa, foi adotado na Europa continental e chegou ao Brasil, trazido por Portugal. Em terras nacionais, portanto, o papel do juiz consiste em interpretar a lei, como posta pelo Poder Legislativo. Por certo que aqui, contudo, e ao contrário do que ocorria na França logo após a Revolução, não se exige dos magistrados aplicação desvalorada da lei, sendo resguardada a eles a livre interpretação do texto legal.

Feitas estas sucintas afirmações acerca do modo pelo qual se deu o civil law, passa-se à análise das pormenoridades do common law, que tem como nascedouro primordial os costumes – e mais tarde o precedente judicial - e não a produção legal regrada pelo devido processo legislativo.

O início do common law pode ser tido como de responsabilidade da Inglaterra, após a conquista normanda, nos idos de 1066. A conquista pelos normandos é também considerada o início do período feudal na Inglaterra, caracterizado pela sua diversidade em relação ao vivenciado na Europa Continental, já que o poder das estruturas feudais aqui vai ser consideravelmente menor.

O período anterior foi marcado pela existência de diversos focos de poder, personalizado pelos senhores feudais, que controlavam porção extensa de terra. Nesses distritos funcionavam cortes judiciais, que aplicavam a Justiça, segundo os costumes do lugar.

A chegada normanda foi que trouxe à Inglaterra o estabelecimento de um poder forte e central. As cortes senhoriais foram mantidas. Houve, contudo, processo de centralização da jurisdição, por meio: a) da criação de um complexo unitário e permanente de cortes reais localizado na capital, Londres; b) do envio aos distritos de juízes itinerantes, que agiam e julgavam em nome do Rei; e c) e do emprego sistemático de expedientes autoritários voltados a subtrair algumas causas da análise dos senhores feudais e das cortes populares tradicionais.

A par disso, houve a criação dos Tribunais Reais da Justiça, esses sim os únicos responsáveis pela criação do direito comum. Tais tribunais, de início, tinham a função primordial de criar o common law, não tendo função jurisdicional alguma. Em suma, foi dada aos Tribunais Reais a incumbência de criar o direito que deveria ser aplicado para a resolução dos conflitos.

Assim era o direito comum, oriundo da observância dos acontecimentos cotidianos e dos costumes da época, com essência casuística, mas que determinava o curso dos demais julgamentos, ante a força vinculante de seus precedentes. Da mesma forma, a aceitação de tal afirmação leva à conclusão de que os precedentes, no common law, da forma como são respeitados e aplicados, são fonte primária do direito.

Inicia-se, assim, o relevante período da introdução da doctrine of stare decisis. A passagem a seguir bem ilustra o momento inicial do nascimento, propriamente dito, do precedente, dando consecução insofismável à segurança jurídica:

Tornou-se hábito nas Cortes do reino inglês a reunião dos juízes para discutir os casos mais importantes e complexos, sendo que no início do século XV essas reuniões eram frequentemente realizadas na chamada "Câmara Exchequer" (Exchequer Chamber). Após discutido e decidido, o caso retornava à respectiva Corte de Justiça para que a decisão fosse proferida. No ano de 1483, numa das decisões tomadas pela maioria da Câmara o Juiz-Chefe ao se manifestar consignou que apesar de discordar da decisão que ali fora forjada, ele era obrigado a adotar a decisão da maioria. Tal caso configurou um marco, de sorte que os juízes que faziam parte da Câmara quando fossem julgar casos futuros em que se tratassem de princípios já analisados acabavam obrigados a adotá-los. (DRUMMOND e CROCETTI, 2010, p. 24).

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Deste modo, evidente concluir que a doutrina dos precedentes vinculou, em verdade, os tribunais inferiores e os demais aplicadores do direito, trazendo certa hierarquização na aplicação do direito comum ao caso concreto. Já naquele momento os juízes tinham a saudável consciência de que a afirmação do direito não condizente com o pensamento superior logo cairia por terra, não se compatibilizando com qualquer nuance de segurança jurídica.

Portanto, consignou-se no seio do common law o instituto que iria, de fato, discerni-lo do civil law, ou seja, o precedente judicial. Além disso, o mesmo instituto, como mais a frente será demonstrado, vai determinar a aproximação entre estas duas grandes tradições do modo de pensar, explicar e entender o direito.

Embora de tradição jurídica nascida do civil law, inegável que o ordenamento jurídico nacional já sente a aproximação da força vinculante dos precedentes, característica marcante do common law.

Estabelecidas estas brevíssimas premissas acerca do desenvolvimento do civil law e do common Law, passa-se, a partir de agora, ao objetivo central do presente trabalho, que buscará descortinar e analisar, de forma mais detida, a influência dos precedentes no ordenamento jurídico pátrio e a importância deles, diante da inúmera gama de valores considerados.


3. A Tradição do Não Seguimento

Conforme pontuado linhas acima, o Brasil é um país enraizado no civil law, em que, por tradição, a função jurisdicional consiste em interpretar a lei, e não em seguir precedentes.

Quando do exercício desta atividade interpretativa da lei, os magistrados agem com independência e liberdade de convicção, que, em algumas situações, são levadas ao extremo.

No presente capítulo serão citados três exemplos, colhidos da jurisprudência, retratando situações em que a cultura de não seguimento dos precedentes traz irremediável prejuízo à própria função jurisdicional.

Mesmo as mais altas cortes do país, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, não têm, por tradição, o seguimento de precedentes. Basta aqui mencionar que as Cortes Superiores não acordam acerca do conceito de pré-questionamento, e que, até mesmo, ambas sumularam a matéria, de forma conflitante. Segundo Cássio Scapinella Bueno, em artigo intitulado Quem tem medo do pré-questionamento?:

Confirmando a orientação de que o prequestionamento é sempre necessário, tive oportunidade de demonstrar em textos anteriores que, gradativamente, o Superior Tribunal de Justiça começou a duvidar do acerto da configuração do prequestionamento para fins de recurso especial tal qual consagrado na mais que trintenária jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Aos poucos, houve uma completa migração da orientação constante da Súmula nº 356 do Supremo Tribunal Federal para uma orientação radicalmente diversa, que acabou sendo estampada na Súmula nº 211 do Superior Tribunal de Justiça e que, em certa medida, aproxima-se da Súmula nº 282 do Supremo Tribunal Federal lida sem conjugação com a Súmula nº 356.

(...)

Em outro trabalho, que dediquei à análise da referida Súmula nº 211, desenvolvi o entendimento de que, com o seu advento, bifurcou-se, para os Tribunais Superiores, a noção de prequestionamento. O que, para o Supremo Tribunal Federal, é prequestionamento mercê de sua Súmula nº 356, é coisa diversa para o Superior Tribunal de Justiça, por força de sua Súmula nº 211. Em termos mais diretos: a Súmula nº 211 do Superior Tribunal de Justiça tem aptidão para revogar a orientação da Súmula nº 356 do Supremo Tribunal Federal.

(...)

O que é certo é que se, para a Súmula nº 211 do Superior Tribunal de Justiça, prequestionamento parece ser o conteúdo da decisão da qual se recorre, para a Súmula nº 356 do Supremo Tribunal Federal, prequestionamento pretende ser mais o material impugnado (ou questionado) pelo recorrente (daí a referência aos embargos de declaração) do que, propriamente, o que foi efetivamente decidido pela decisão recorrida. Para o enunciado do Superior Tribunal de Justiça é indiferente a iniciativa do recorrente quanto à tentativa de fazer com que a instância a quo decida sobre uma questão por ele levantada. Indispensável, para ele, não a iniciativa da parte, mas o que efetivamente foi decidido e, nestas condições, está apto para ser contrastado pela Corte Superior. (BUENO, 2002, on-line)

O fato é que Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, cada qual entendendo o conceito de pré-questionamento à sua maneira, aplicam as respectivas Súmulas, pouco se importando, ao que parece, com a coerência do sistema.

Também na seara criminal ocorre algo parecido. Destaca-se, aqui, o entendimento vacilante dos Tribunais Superiores acerca do conceito do princípio da insignificância. Pode-se dizer, com segurança, que a única situação consolidada em torno do instituto é que ele é uma causa de atipicidade material. A par disso, sua aplicação é extremamente contraditória.

Ora os Tribunais entendem pelo cabimento da aplicação do princípio independe de condições pessoais do réu, sob o argumento, por exemplo, de que em assim pensando correr-se-ia o risco de transmudar o direito penal pátrio em direito penal do autor e não do fato. Por outro lado, os Tribunais, muitas vezes, têm decidido que a aplicação do dito princípio não deve ficar ao talante unicamente do fato, mas deve também considerar a condição de seu autor. Isso porque, segundo indicam, corre-se o risco de a atividade delitiva tornar-se uma prática comum na vida do réu, tudo com a anuência do Estado, que desqualifica a tipicidade material de sua conduta.

Vejamos o seguinte julgado, do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. FURTO TENTADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

APLICABILIDADE. VALOR ÍNFIMO DAS RES FURTIVAE. IRRELEVÂNCIA DA CONDUTA NA ESFERA PENAL. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DESTA CORTE. RÉU REINCIDENTE. POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A conduta perpetrada pelo Paciente – tentativa de furto de uma garrafa de uísque da marca 'Bell´s" e três desodorantes – insere-se na concepção doutrinária e jurisprudencial de crime de bagatela.

2. O fato não lesionou o bem jurídico tutelado pelo ordenamento positivo, dado o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente, que tentou furtar objetos avaliados em R$ 40,00 (quarenta reais), sendo de rigor o reconhecimento da atipicidade da conduta.

3. Segundo a jurisprudência consolidada nesta Corte e no Pretório Excelso, a existência de condições pessoais desfavoráveis, tais como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impedem a aplicação do princípio da insignificância. Precedentes.

4. Ordem concedida para absolver o Paciente do crime imputado, por atipicidade da conduta.

(HC 170.260/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 19/08/2010, DJe 20/09/2010).

Na decisão acima colacionada foi esposado o entendimento de que as condições pessoais do réu não devem influir na aplicação do princípio da insignificância. Entretanto, o mesmo Tribunal, poucos meses após, julgou em sentido diametralmente oposto:

PRINCÍPIO. INSIGNIFICÂNCIA. TENTATIVA. FURTO QUALIFICADO. ALIMENTO. HABITUALIDADE. CONDUTA. Noticiam os autos que o paciente foi absolvido sumariamente em primeira instância pela prática do crime previsto no art. 155, § 4º, IV, c/c 14, II, ambos do CP (tentativa de furto qualificado). Houve apelação e o tribunal a quo reformou a decisão do juiz, dando provimento ao recurso do MP estadual para receber a denúncia oferecida contra os pacientes. Irresignada, a Defensoria Pública interpôs embargos de declaração que foram rejeitados. Daí o habeas corpus, sustentando que deve ser reconhecida a atipicidade da conduta em razão da aplicação do princípio da insignificância, haja vista o irrisório valor da res furtiva (6 kg de carne avaliados em R$ 51,00). No entanto, para a maioria dos ministros da Turma, a habitualidade da conduta tida por criminosa descaracteriza sua insignificância. Assim, se consta dos autos que o paciente continua praticando delitos de pequeno valor patrimonial, não se poderia dar salvo conduto à prática delituosa. Por outro lado, somados os reiterados delitos, ultrapassar-se-ia o pequeno valor, que, assim, deixa de ser irrisório e passa a ter relevância para a vítima. Ademais, mesmo verificada a necessidade e utilidade da medida de política criminal do princípio da insignificância, é imprescindível que sua aplicação se dê de forma prudente e criteriosa, razão pela qual é necessária a presença de certos elementos, como exige a jurisprudência do STF: a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência total de periculosidade social da ação, o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica ocasionada. Destarte, cabe ao intérprete da lei penal delimitar o âmbito de abrangência dos tipos penais abstratamente positivados no ordenamento jurídico, de modo a excluir de sua proteção aqueles fatos provocadores de ínfima lesão ao bem jurídico por ele tutelado, nos quais tem aplicação o princípio da insignificância. Anotou-se ainda que, nesses casos, não é possível aplicar esse princípio, pois haveria a possibilidade de incentivar o pequeno delinquente, sabendo que nunca será apenado, a fazer sucessivos furtos de pequenos valores. Com esses argumentos, entre outros, a Turma, por maioria, denegou a ordem. O Min. Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ) ficou vencido por entender que, no caso, não se trata de reincidência, mas de habitualidade na repetição da conduta e a habitualidade é uma conduta que lhe é atribuída, mas que não teve ainda o crivo do Poder Judiciário, ou seja, nem do contraditório nem do devido processo legal. Precedente citado do STF: HC 84.412-SP, DJ 19/11/2004. HC 196.132-MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 10/5/2011 (HC 196.132-MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 10/5/2011, Informativo nº 0472)

Como se vê, num espaço curtíssimo de tempo o Superior Tribunal de Justiça decidiu tanto num sentido quando noutro, o que, além de trazer grande instabilidade jurídica e falta de coerência ao sistema, incentiva o manejamento de recursos e trata com desigualdade flagrante réus na mesma situação.

Por fim, um último exemplo. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vacila quando chamada a responder a seguinte questão, de ordem prática: é cabível recurso especial, da fazenda pública, manejado contra Acórdão proferido em sede de reexame necessário, ausente apelação da própria fazenda?

A questão colocada é objeto de divergência na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que tem decidido, ora no sentido de que o recurso é cabível, e ora no sentido de que, não interposta apelação ocorre a preclusão lógica, declarando que, uma vez que a fazenda pública não impugnou a sentença de primeiro grau, com ela conformando-se, não pode manejar o recuso especial. A título meramente exemplificativo e ilustrativo, os recentes julgados, praticamente da mesma data, que divergem entre si:

AGRAVO INTERNO. REEXAME NECESSÁRIO. AUSÊNCIA DE RECURSO VOLUNTÁRIO DO INSS. SENTENÇA MONOCRÁTICA MANTIDA. RECURSO ESPECIAL. PRECLUSÃO LÓGICA.

1. É assente nesta Corte a inadmissibilidade do especial, se a sentença monocrática foi mantida no âmbito do reexame necessário e se ausente apelação do ente público.

2. Agravo ao qual se nega provimento.

(AgRg no Ag 1180092/SP, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 07/10/2010, DJe 25/10/2010).

PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA - REEXAME NECESSÁRIO – AUSÊNCIA DE APELAÇÃO DO ENTE PÚBLICO – PRECLUSÃO LÓGICA AFASTADA – CABIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.

1. A Corte Especial, no julgamento do REsp 905.771/CE (rel. Min.Teori Zavascki, julgado em 29/06/2010, acórdão pendente de publicação), afastou a tese da preclusão lógica e adotou o entendimento de que a Fazenda Pública, ainda que não tenha apresentado recurso de apelação contra a sentença que lhe foi desfavorável, pode interpor recurso especial.

2. Embargos de divergência conhecidos e providos.

(EREsp 1119666/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/09/2010, DJe 08/11/2010).

Conforme menção feita na ementa acima, em meados de 2010 a Corte Especial do STJ reuniu-se, para discussão e apreciação da questão (Resp 905.771/CE). Na ocasião a Ministra Eliana Calmon, renomada processualista, manifestou-se pela ocorrência da preclusão lógica, expondo em seu Voto Vista, em síntese, os seguintes argumentos:

Doutrinariamente entendo que, sob a ótica da moderna processualística, em que se busca dar efetividade à garantia constitucional do acesso à justiça, positivada no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, é necessário restringir os privilégios da Fazenda Pública, mediante a harmonização dos institutos processuais criados em seu benefício – de que é exemplo o reexame necessário – com os demais valores constitucionalmente protegidos no âmbito do Direito Processual Civil, especialmente diante do avanço tecnológico e da conseqüente estrutura material colocada à sua disposição e da estruturação da advocacia pública nos dias atuais.

(...)

Em que pese a nobreza da intenção com que foi concebido, com o passar do tempo o reexame necessário tem se revelado extremamente perverso para com os que litigam contra a Fazenda Pública, obrigando-os a esperar longos anos até ver o especialmente as pessoas físicas e jurídicas de menor poder aquisitivo, que muitas vezes têm sido obrigadas a esperar vários anos até ver reconhecido o seu direito, em definitivo.

O legislador atual, na incessante busca por uma justiça mais célere e um processo mais dinâmico, tem promovido sucessivas alterações e assim garantir o acesso à justiça. Exemplo disso foi a Lei 10.259/2001, que excluiu expressamente a necessidade de reexame necessário das sentenças proferidas pelos Juizados Especiais Federais (art.13).

No mesmo sentido a Lei 10.352/2001, modificando o art. 475 do CPC, para estender às ações que menciona a regra de dispensa ao reexame necessário.

(...)

Daí porque, em nome da efetividade do processo e do acesso à Justiça, reconheço a preclusão na hipótese, instituto processual que, segundo Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha (in Curso de Processo Civil, vol. 3, 5. ed. Salvador: Podivm, 2008, p. 52), consiste na perda de um direito ou faculdade processual por quem tenha realizado atividade incompatível com o respectivo exercício, e que constitui regra que diz respeito ao princípio da confiança , que orienta a lealdade processual (proibição do venire contra factum proprium).

Prevaleceram, porém, em votação não unânime, os argumentos do Ministro Relator Teori Albino Zavascki, também processualista de renome, que, em síntese, expôs o seguinte:

Bem se vê, portanto, que somente se configura preclusão lógica por aquiescência tácita quando ela decorre da "prática de um ato" (portanto, de um ato positivo) que seja inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer. Comportamentos simplesmente omissivos não acarretam essa perda do direito.

(...)

3. À luz desses parâmetros, não há como afirmar configurada a preclusão lógica na situação aqui debatida. Em primeiro lugar porque a falta de interposição do recurso de apelação, pela Fazenda, foi um comportamento omissivo, e não a "prática de um ato". Ademais, não se pode ver nessa omissão um comportamento que indique, inequivocamente, a concordância com a sentença contrária aos interesses da Fazenda e, portanto, a vontade de não recorrer.

(...)

Ainda que não chegue ao ponto de equiparar as duas figuras, é uníssona a doutrina em enfatizar as semelhanças entre elas, notadamente quanto aos efeitos que ambas produzem: tanto a aquiescência como a renúncia são atos unilaterais e voluntários que produzem a extinção de um o direito (de recorrer). Ora, em se tratando da Fazenda Pública, os seus representantes judiciais não estão, em regra, habilitados a praticar atos unilaterais e voluntários que importem, direta ou indiretamente, disposição ou comprometimento de direitos (v.g.: renúncia, confissão, reconhecimento do direito da parte contrária ou pratica de atos equivalentes).

Importante fazer menção, aqui, a que a decisão da Corte Especial não foi capaz de pacificar a questão nem mesmo no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça, haja vista que ambas as ementas inicialmente citadas, uma em cada sentido, são posteriores à decisão da Corte Especial.

Aplausos aqui à Ministra Eliana Calmon, que, mesmo tendo proferido voto vencido quando do julgamento da questão pela Corte Especial, passou a seguir a decisão desta mesma Corte Especial, em seus relatórios e votos posteriores, adotando, pois, este precedente.

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Sobre os autores
Rodrigo Emiliano Ferreira

Defensor Público do Estado de São Paulo

Bruno Luiz Turci

Advogado. ex-estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rodrigo Emiliano ; TURCI, Bruno Luiz. Obrigatoriedade dos precedentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2976, 25 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19849. Acesso em: 18 abr. 2024.

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