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Renúncias fiscais versus renúncias sociais

17/09/2011 às 15:33
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A administração pública somente deve optar por uma redução da tributação para determinados segmentos ou pessoas, se esta medida proporciona direta ou indiretamente um benefício igual ou superior para a comunidade, daquele que seria alcançado pela atuação estatal.

As renúncias fiscais são importantes instrumentos de política fiscal e social que atuam em sentido oposto ao financiamento do Estado, servindo como mecanismos de regulação ou de interferência em determinadas situações conjunturais, como inflação e desemprego, problemas estruturais, a exemplo da redistribuição da renda nacional ou mesmo para reduzir desigualdades regionais ou de classes sociais.

Baleeiro distingue dois tipos de renúncias ou exonerações: As endógenas e as exógenas. As endógenas atuam na estrutura interna da norma tributária, como as isenções, reduções de base de cálculo, créditos presumidos, alíquotas zero, dentre outras. As exógenas, ou externas, decorrem de lei superveniente ao nascimento da obrigação tributária, extinguindo posteriormente um dever pecuniário que recaia sobre o contribuinte, como ocorre na concessão de anistias. Deste modo, nas primeiras, o benefício existe antes da ocorrência do fato gerador, reduzindo ou eliminando a obrigação tributária de pagar o tributo na sua origem. Nas segundas, o fato descrito na norma tributária já ocorreu e o contribuinte é titular do dever de cumprir a prestação tributária, mas fica desobrigado do seu cumprimento, por força de norma posterior que o dispensa total ou parcialmente da obrigação. [01]

Como não é o propósito desta pesquisa avaliar individualmente cada espécie de renúncia, traz-se ao estudo apenas as duas formas mais importantes de renúncias fiscais, sem adentrar nas questões polêmicas que cercam seus conteúdos: as isenções e as anistias. Antes, porém, cumpre salientar que as imunidades não se confundem com as isenções e aparentam não se configurarem como uma espécie de renúncia. A imunidade caracteriza-se como "regra constitucional expressa (ou implicitamente necessária), que estabelece a não-competência das pessoas políticas da federação para tributar certos fatos e situações, de forma amplamente determinada, delimitando negativamente, por meio de redução parcial, a norma de atribuição de poder tributário". [02] Destarte, a imunidade é anterior à criação do tributo, demarcando as áreas que o legislador ordinário não pode atuar. Ora, não se pode falar em renúncia sobre determinada situação que é considerada imune de imposto, se o ente tributante não tem sequer poder para instituí-lo.

As isenções representam uma autolimitação do próprio poder tributante que se opera pela derrogação da norma de incidência fiscal, isto é, suspende a eficácia da regra que definiu o fato gerador do tributo. [03] A concessão de isenção para determinadas situações, produtos ou serviços depende de autorização legislativa do próprio ente que tem o poder de instituir a exigência tributária.

Em passado recente, considerável parte da doutrina caracterizava as isenções tributárias como um favor ou um privilégio legal. Favores e privilégios apresentam uma conotação de interesse particular ou direcionado a grupos reduzidos. A adoção desta concepção possibilita o surgimento de protecionismo de toda espécie, ditados apenas por motivos de conveniência e oportunidade, sem vinculação com a criação de um sistema tributário justo. Hodiernamente, a tese mais aceita é de que as isenções devem ser concedidas, visando sempre, primária e diretamente, ao interesse público e, só secundária ou indiretamente, ao interesse dos particulares. [04]

A anistia, como uma exoneração exógena, é uma autolimitação do poder de exigir total ou parcialmente valores pecuniários devidos em decorrência da prática de ilícitos fiscais. O ente estatal competente para exigir o tributo, opta em dispensar o crédito tributário por razões de conveniência do erário público ou por motivo de eqüidade. [05] Em resumo, é o perdão concedido ao contribuinte devedor da Fazenda, dispensando-o total ou parcialmente do pagamento do valor decorrente da aplicação de uma sanção pecuniária. As anistias, a rigor, não se aplicam aos atos qualificados em lei como crimes ou contravenções e aos que, mesmo sem essa qualificação, sejam praticados com dolo, fraude, simulação ou conluio entre pessoas (art. 180, CTN).

Para a instituição de renúncias fiscais é preciso avaliar-se as circunstâncias em que serão aplicadas, vez que acabam por produzir desigualdades de tratamento entre os contribuintes, quando comparados com os que não são contemplados pelo benefício fiscal. A desigualdade produzida por uma renúncia fiscal somente é justificável se do tratamento desigual resultar em redução das desigualdades sociais. Neste caso, o propósito da dispensa do tributo é criar mecanismos que oportunizem uma igualdade aproximada. Não se justificam a concessão de benefícios fiscais que não favorecem, ainda que indiretamente, os cidadãos. Assim, o legislador ordinário, ao deparar-se com a necessidade de dispensar a exigência de um tributo sobre determinada situação, deve levar em conta os relevantes interesses sociais que a medida pretende atingir e se efetivamente os seus efeitos serão concretizados.

Diante desta conformação, quaisquer benefícios, anistias, isenções, incentivos regionais ou setoriais, somente podem ser considerados legítimos, quando fundados em razões de justiça social, superior interesse público e desde que os resultados revertam em favor da coletividade como um todo. É neste sentido que o texto constitucional (art. 3º) expressa como objetivos fundamentais do Estado Brasileiro a idéia de um modelo voltado à construção de uma Sociedade mais justa e com reduzidos índices de desigualdade social.

De modo algum o ordenamento jurídico autoriza a concessão de privilégios ou o agravamento das grandes desigualdades interpessoais entre grupos ou regiões. [06] Configurarão privilégios intoleráveis os incentivos e benefícios que servirem à acumulação e à concentração de renda, à proteção de grupos economicamente mais fortes, em detrimento da maioria, à qual serão transferidos seus elevados custos sociais. [07]

Se do ponto de vista político e jurídico, as renúncias fiscais devem claramente se basear na idéia de justiça, correspondendo aos seus princípios de capacidade contributiva, redistribuição de rendas e desenvolvimento econômico, na prática, lamentavelmente não é o que ocorre em muitas situações. Como observa Torres, a política das isenções está hoje sob suspeita generalizada de injustiça, improdutividade e perversidade fiscal, o que a torna suscetível de se transformar, constantemente, em privilégio odioso. Da mesma forma, sobre a anistia pesa atualmente a suspeita de odiosidade, porque implica sempre a outorga de tratamento diferenciado para alguns e iniqüidade para com aqueles que cumpriram as suas obrigações. [08]

É que no Brasil, não é incomum a concessão de isenções e outros tratamentos privilegiados de tributação, como resultado de pressões exercidas por grupos de interesses, por vezes, financiadores de campanhas, que buscam favorecimento próprio, por conseqüência, sem nenhuma justificação pública. Nestes casos, a regra é simples; quando uma parte dos contribuintes é desonerada das obrigações tributárias, em decorrência da fruição de benefícios fiscais, a outra será onerada com mais tributos para compensar os que foram dispensados de pagá-los. Aliás, a Lei de Responsabilidade Fiscal que trata especificamente da renúncia de receita (art. 14 da Lei Complementar 101/2000), obriga o ente público concedente adotar medidas compensatórias da perda de recursos, por meio de elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo ou criação de outros tributos. Deste modo, quando alguns segmentos são favorecidos com uma tributação menor, o ônus tributário recai naturalmente em maior volume sobre os demais. Como resultado, o sistema tributário, acaba por vezes, produzindo injustiças, quando estabelece uma tributação desigual entre os diversos setores da economia, sem favorecer o interesse de todos.

Para agravar as injustiças produzidas por renúncias fiscais, muitos Estados da Federação utilizam isenções e outras formas de redução da tributação como mecanismo para atrair investimentos para os seus territórios, violando o pacto federativo. O mesmo fenômeno ocorre entre os municípios. É o que se conhece popularmente como "guerra fiscal" e que nenhuma melhoria tem produzido na qualidade de vida do cidadão brasileiro. [09]

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Por outro lado, as anistias são invariavelmente concedidas com o propósito meramente arrecadatório, descontextualizadas de qualquer motivação pública e com uma periodicidade que incita os devedores a aguardarem o melhor momento para saldarem suas dívidas. Diante desse quadro, os contribuintes que cumprem as leis tributárias e contribuem para o financiamento do erário público, são duplamente injustiçados. Se num primeiro momento, sofriam com a concorrência desleal daqueles que burlavam o fisco, posteriormente vêem os mesmos fraudadores sendo premiados com vigorosas reduções do crédito tributário.

Salvo algumas situações motivadas por contingências excepcionais, as anistias aprofundam as injustiças do sistema tributário e geram resistência fiscal. Embora as administrações públicas busquem através desses mecanismos, reduzir também o montante das dívidas acumuladas ao longo dos anos e facilitar a solvência dos contribuintes devedores, esse mecanismo produz efeitos colaterais piores que os benefícios pretendidos.

Conclui-se que as renúncias fiscais, embora concedidas a contribuintes, não têm o propósito de serem benefícios voltados a atender exclusivamente o interesse particular destes. Quando um ente estatal concede isenção, anistia, ou outra modalidade de benefício, deve fazê-lo visando diretamente ao interesse social, ainda que indiretamente possa o contribuinte ser favorecido. E mais, apenas deve abster-se de exigir um tributo sobre determinadas situações, se deixando de fazê-lo, alcança resultados sociais melhores e com mais eficiência do que os arrecadando para posteriormente aplicá-los em políticas sociais. Isto significa que a administração pública somente deve optar por uma redução da tributação para determinados segmentos ou pessoas, se esta medida proporciona direta ou indiretamente um benefício igual ou superior para a comunidade, daquele que seria alcançado pela atuação estatal. [10]

Por fim, é preciso ressaltar que se os diversos entes estatais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) promovessem a eliminação das formas de renúncias fiscais que não atendem o interesse público, permitiriam uma ampliação da base de potenciais contribuintes. Com isso, seria possível reduzir a carga tributária e proporcionar uma arrecadação igual ou superior à atual, em face da repartição justa do ônus tributário entre todos que figuram com capacidade para contribuir.


REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS

BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1999. 859 p.

BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1980. 281 p

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei Complementar Federal n.º 24, de 7 de janeiro de 1975.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: os direitos humanos e a tributação: Imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, v. 3. 593 p.


Notas

  1. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 398.
  2. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. p. 228.
  3. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: os direitos humanos e a tributação: Imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, v. 3, p. 360-361.
  4. BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1980, p. 58-61.
  5. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário:Os direitos Humanos e a tributação : Imunidades e Isonomia. p. 362.
  6. A Constituição de 1988 autorizou expressamente a concessão de incentivos fiscais em favor de áreas mais pobres e atrasadas, como o propósito de promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico de forma mais homogênea e a expansão do mercado interno (art. 151, I). Não se trata de uma quebra do princípio da igualdade, mas da permissão de tratamento diferenciado para regiões economicamente mais fracas. Além das isenções restritas a determinadas regiões, outras podem ser concedidas em função de condições e peculiaridades devidamente motivadas, que exigem um tratamento diferenciado.
  7. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. p. 388, 393-394.
  8. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: os direitos humanos e a tributação: Imunidades e isonomia. p. 361-362.
  9. No Brasil, as isenções e outros benefícios fiscais foram disciplinados pela Lei Complementar 24/75 que somente autoriza a sua concessão quando receberem a aprovação dos estados-membros, impondo inclusive sanções pelo seu descumprimento.
  10. Nesta linha, para evitar quaisquer concessões de privilégios indevidos, o sistema tributário português, em seu Estatuto dos Benefícios Fiscais definiu-os expressamente como "medidas de caráter excepcional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes e que sejam superiores ao da própria tributação que impedem" (art. 2º, nº 1, do EBF).
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Sobre o autor
Joacir Sevegnani

Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de Santa Catarina. Professor de Direito Tributário no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí - UNIDAVI. Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVEGNANI, Joacir. Renúncias fiscais versus renúncias sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2999, 17 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20020. Acesso em: 16 abr. 2024.

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