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A filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil brasileiro de 2002

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18/09/2011 às 10:03
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Deve-se atentar para a fixação de prazo para realização da reprodução assistida póstuma, a exigência do prévio e expresso consentimento do marido ou companheiro e o estabelecimento de sanções para a mãe, o médico e a clínica que a realizarem sem observar estas determinações.

"Teu dever é lutar pelo direito; porém, quando encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça".

Eduardo J. Couture


RESUMO

A presente pesquisa, cujo tema é a filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil Brasileiro de 2002, restou efetuada para a obtenção do título de Especialista em Direito Civil. A inseminação artificial consiste na injeção de espermatozóides, previamente colhidos, no corpo da mulher, ocorrendo a fecundação in vivo. Na fertilização in vitro, a fecundação ocorre em laboratório, com o uso dos gametas previamente colhidos do casal para a formação do embrião, sendo este posteriormente implantado no corpo materno. Na reprodução assistida homóloga post mortem, os gametas (caso da inseminação artificial) ou embriões (caso da fertilização in vitro) utilizados para a geração do novo ser humano são do homem e da mulher que efetivamente assumirão a paternidade da criança; porém, sendo post mortem, significa que a efetivação da procriação assistida ocorre após a morte do homem que teve criopreservado seu material genético ou embrião com ele formado. Verificou-se, pois, que o vigente Código Civil não regulou suficientemente a matéria pertinente às questões da filiação e dos direitos sucessórios dos filhos havidos nestas condições. Quanto à filiação, existem hipóteses determinadas de presunção, nas quais pode não se enquadrar exatamente o caso da reprodução assistida homóloga póstuma. A doutrina se divide quanto à fixação ou não da presunção para os filhos havidos nestas condições, invocando problemas relativos a prazo da concepção e prévio e expresso consentimento do marido ou companheiro. No tocante à sucessão hereditária desses filhos, também não há consenso na doutrina: os favoráveis invocam o princípio da igualdade entre os filhos e, os desfavoráveis, questões de ordem prática. Enfim, várias problemáticas permanecem sem disciplina e, portanto, sem solução, sendo imprescindível a reformulação e complementação das normas existentes com a inserção de novos dispositivos no Código Civil ou com a criação de uma lei especial.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho, requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito Civil, pretende analisar, precipuamente, a filiação e os direitos sucessórios dos filhos havidos por inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem.

A vida e a morte, desde os primórdios, sempre foram assuntos que intrigaram o homem, levando-o aos mais diversos encantamentos e questionamentos. Afinal, apesar de representarem dois extremos, encontram-se intrinsecamente ligados e são próprios da frágil natureza humana.

O homem, como animal político nas palavras de Aristóteles [01], precisa viver em sociedade. Destarte, para manter a harmonia entre os indivíduos, tem-se a disciplina do Direito, cuja missão, sobretudo, é atender aos anseios da sociedade. E deste regramento não se furtaram os dois citados extremos, quais sejam, a vida e a morte: há normas e princípios relativos ao próprio nascimento do homem e suas conseqüências, às situações havidas e relações mantidas em sua vida, bem como à morte ou, mais especificamente, aos efeitos que este fato natural e também jurídico acarreta para os sobreviventes, dentre outros aspectos.

O que parece simples, na verdade, é extremamente complexo. Ora, o Direito e a sociedade devem trilhar lado a lado na busca do bem comum. No entanto, é cediço que a sociedade tem passado – e continua passando, giza-se – por inúmeras mudanças, algumas imperceptíveis, outras de relevo considerável, polêmicas ou não. Fato é que a evolução da sociedade, principalmente no último século, vem ocorrendo de forma muito mais célere que o desenvolvimento do Direito. Novas situações surgem a cada dia, muitas das quais não encontram disciplina no ordenamento jurídico ou, se esta existe, não raro, é insuficiente para amparar uma resolução satisfatória.

Não se afasta desta conjuntura a questão da filiação e dos direitos sucessórios dos filhos havidos por inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem, tema desta pesquisa científica.

A vida de um ser humano, que há pouco tempo, advinha apenas de forma natural, agora também se verifica artificialmente graças aos avanços da biotecnologia. Com efeito, procriação, concepção e gestação sempre foram vistas como fases conseqüentes de uma mesma origem, qual seja, a relação sexual entre homem e mulher. Contudo, os progressos científicos permitiram a realização do que, então, era considerado apenas um sonho: a reprodução medicamente assistida. Mas a marcha da evolução não se estagnou, eis que a biotecnologia evoluiu assustadoramente nas últimas décadas. Assim, o que antes era indissociável (procriação, concepção e gestação), agora pode ocorrer isoladamente e/ou envolvendo diferentes pessoas.

A reprodução assistida, pois, já é uma realidade de nosso cotidiano, havendo inúmeras técnicas já consolidadas. Todavia, suas implicações acabaram por abalar estruturas que eram tidas como verdadeiros dogmas no Direito, ou seja, a determinação da filiação e suas conseqüências, tais como o direito hereditário, sofreram estremecimentos. As certezas que o Direito sustentava passaram a não ser mais tão sólidas. Outrossim, as dúvidas e as problemáticas no caso de a reprodução assistida se dar de maneira homóloga – ou seja, quando são utilizados os gametas (caso da inseminação artificial) ou os embriões formados pelas células germinativas (caso da fertilização in vitro) pertencem ao homem e à mulher que efetivamente assumirão a paternidade e a maternidade do novo ser humano gerado – ampliam-se sobremaneira quando verificado que o momento de sua efetivação ocorreu após a abertura da sucessão do homem, ou seja, posteriormente à morte do marido ou companheiro, cujo material genético e/ou embrião formado com o mesmo encontra-se criopreservado.

Ora, a regulamentação dada pelo Código Civil Brasileiro de 2002 é, ou não, suficiente para disciplinar as questões da filiação e dos direitos sucessórios dos filhos havidos por inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem? Exatamente neste ponto reside a grande discussão pertinente à problemática em apreço, pois é a indagação final de vários outros questionamentos: É admissível a realização de inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas? Há presunção de filiação para as crianças havidas nesta circunstância? Têm as mesmas direitos hereditários? Os demais herdeiros do de cujus devem esperar por prazo indeterminado para a realização da partilha, já que existe um filho em potencial? Onde se situam os princípios da segurança jurídica, da intimidade do falecido, da não discriminação entre os filhos e da dignidade da pessoa humana neste contexto?

As inquirições não se encerram tão somente nestas elencadas. No entanto, tais interrogações já são suficientes para visualizar que se trata de uma situação realmente polêmica e, à primeira vista, sem contornos de fundamentação e critérios legais bem definidos. Cuida-se de um tema novo, de linhas graves e atuais, cuja relevância é indiscutível.

A importância jurídica é evidente, haja vista a idéia de que o Direito deve acompanhar de modo mais pleno possível as transformações sociais. Neste passo, a verificação da suficiência ou não das normas do vigente Código Civil no que concerne ao tema tem importância para lhes dar aplicabilidade ou não ou, então, para apontar as deficiências que deveriam ter uma regulamentação específica através de leis especiais.

Outrossim, a relevância pode ser observada também na área social, pois o assunto envolve diretamente o ser humano. Além de dizer respeito ao filho concebido pela inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas, também podem ser atingidos pela questão da filiação e dos direitos sucessórios, a própria mãe, irmãos da criança, outros herdeiros do de cujus, eventual novo companheiro ou marido da mãe, terceiros. Percebe-se, portanto, que a questão não se limita apenas na relação "pai-mãe-filho", eis que um número muito maior de pessoas poderá ser atingido e sofrer as implicações dos efeitos causados pela reprodução assistida nos moldes apresentados. A repercussão social é evidente. Logo, verificar a disciplina legal sobre o tema é importante para toda a sociedade, já que organizada na figura do Estado, encarregado de manter a convivência harmoniosa entre seus membros.

Enfim, a discussão é de eminente relevância ao saber jurídico, eis que importa a todo aplicador do Direito, confundindo-se com a importância social, pois também interessa à sociedade como um todo e ao Estado que deve zelar pela sua ordem e paz na busca do bem comum.

Delimitando-se, pois, o tema, tem-se que a pesquisa versa sobre a filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil Brasileiro de 2002, com breve incursão ao direito estrangeiro e destacando-se também aspectos históricos da reprodução assistida, bem como elencando-se algumas técnicas, com enfoque especial para aquelas centrais da investigação. A abordagem leva em conta a doutrina e a legislação, com exame da suficiência ou deficiência da disciplina legal dada pelo novel Código Civil mediante a exposição de algumas situações.

Destarte, tem-se como objetivo geral a análise do tratamento legal dado pelo Código Civil Brasileiro de 2002 às questões da filiação e do direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem para constatar a sua suficiência ou não, além da verificação, na ocorrência da segunda situação, as problemáticas e a abordagem feita pela doutrina pátria a respeito.

Outrossim, de maneira específica, convém ressaltar que a presente pesquisa pretende esclarecer o que vem a ser a reprodução assistida, elencar as técnicas pertinentes mais comuns e tecer considerações mais aprofundadas sobre a inseminação artificial e a fertilização in vitro homólogas póstumas.

Tenciona também verificar a disciplina legal existente no Brasil e, no caso de insuficiência da respectiva regulamentação constante no Código Civil Brasileiro de 2002 e após a enumeração dos pontos deficientes, se o ordenamento jurídico pátrio possui outros dispositivos legais ou princípios que poderiam ser aplicados ou se é imprescindível a complementação/reformulação das normas existentes ou a criação de uma lei especial para tratar da questão.

Além disso, almeja identificar e expor problemas que eventualmente poderão surgir em razão da inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem com relação à filiação e ao direito sucessório, apontando a importância prática e a repercussão social e jurídica relativas à resolução dos conflitos que podem advir das situações vislumbradas, além de trazer posicionamentos doutrinários a respeito destas problemáticas.

A vertente monografia encontra-se dividida em três partes que acompanham, dentro do possível, os aspectos mais marcantes referentes ao tema proposto.

Constatar-se-á que a primeira parte é destinada à conceituação da reprodução medicamente assistida, bem como à enumeração das técnicas que se reputou mais relevantes. Aprofundar-se-á, em tópico apartado, duas destas técnicas, quais sejam a inseminação artificial e a fertilização in vitro, na modalidade homóloga e em momento póstumo. Trazer-se-á à baila também um breve histórico pertinente aos avanços da biotecnologia em face das técnicas de reprodução assistida.

A segunda parte é dedicada à filiação nos casos de inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem. Destarte, notar-se-á, primeiramente, os critérios determinantes da filiação em geral. Em seguida, avaliar-se-á a disciplina legal dada no Brasil a respeito da filiação na situação mencionada, bem como enfocar-se-á problemáticas e reflexões específicas, não se olvidando de breve incursão no direito estrangeiro.

A última parte, qual seja, a terceira, contempla a questão dos direitos sucessórios dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem. Destarte, observar-se-ão considerações acerca da sucessão em geral. Ato contínuo, tratar-se-á da sucessão nos casos específicos dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas, examinando-se a disciplina legal dada no Brasil, verificando-se o posicionamento dos ordenamentos jurídicos alienígenas, bem como apontando-se problemáticas e reflexões pertinentes.

Nas considerações finais poder-se-á encontrar uma breve resenha do tema investigado, para destacar os resultados decorrentes da pesquisa em tela.

A presente monografia foi dinamizada a partir de métodos e técnicas específicas a fim de que se pudesse obter um resultado positivo, como fruto da produção desta.

Explicitando-se os métodos e as técnicas a serem utilizadas, tem-se que, no tocante ao método, a pesquisa foi desenvolvida a partir de uma estrutura indutiva. O método indutivo tem como característica "pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]" [02].Constatar-se-á tal método na medida em que se observa a proposta da pesquisa. Em outras palavras, partiu-se de noções gerais relativas à reprodução assistida e a suas técnicas, destacando-se a inseminação artificial e a fertilização in vitro homólogas post mortem, para, ao final, representando a segunda e terceira partes, analisar a regulamentação dada pelo Código Civil Brasileiro de 2002 à filiação e ao direito sucessório dos filhos havidos pelas técnicas reprodutivas sob comento, respectivamente, constatando a sua suficiência ou não e, no caso da verificação da segunda hipótese, apontar as deficiências e averiguar se o ordenamento jurídico pátrio possui outros dispositivos legais ou princípios que podem ser aplicados ou se há necessidade da criação de uma lei especial para disciplinar a meteria, além de identificar e expor problemas e situações concernentes à filiação e aos direitos sucessórios, observando a abordagem doutrinária concernente. Outrossim, o método histórico-evolutivo foi utilizado na medida em que se traçou um breve perfil histórico da reprodução assistida na primeira parte do trabalho, bem como se verifica também na segunda e terceira partes quando da oportunidade de referências ao direito estrangeiro.

Esclarecendo que a "técnica é um conjunto diferenciado de informações reunidas e acionadas em forma instrumental para realizar operações intelectuais ou físicas, sob o comando de uma ou mais bases lógicas investigatórias" [03], admite-se que, em linhas gerais, a pesquisa é bibliográfica, porém, conjugada com outras técnicas, sejam estas, conceitos operacionais, leituras com referência expressamente definida, fichamentos e entrevista com profissional da área médica. Trata-se de uma pesquisa qualitativa.

Como observações finais, vale destacar que a presente pesquisa envolve um tema do qual exsurge implicações éticas, religiosas, filosóficas e de diversas outras searas além da jurídica. Assim sendo, imperioso elucidar que a investigação em apreço limita-se a uma abordagem essencialmente jurídica, o que não significa que restaram ignoradas as demais esferas do conhecimento às quais a questão da inseminação artificial e da fertilização in vitro homólogas post mortem estão relacionadas. Nesta senda, oportuno desagregar-se aspectos tangenciais que a temática desperta, razão pela qual se deteve a um exame mais profícuo e específico a respeito no âmbito do Direito Civil. Por fim, mister se faz salientar ainda que, em determinados momentos, invoca-se uma visão médica, o que ocorre em razão da própria natureza do tema. No entanto, a incursão na área médica ocorre sem que se adentre em questões pertinentes à definição do início da vida humana ou ao destino que se deve dar aos embriões excedentes, por exemplo.


2 REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Para a compreensão da filiação e do direito sucessório relacionados à reprodução medicamente assistida (RMA), imprescindível se faz uma inicial averiguação deste tipo de procriação. Neste diapasão, há uma série de considerações acerca da reprodução assistida que merecem ser trazidas à baila para exame, sobretudo com o intuito de possibilitar o melhor aproveitamento possível quanto ao entendimento e à reflexão do tema central desta pesquisa. Assim sendo, revela-se basilar a conceituação do que vem a ser a reprodução assistida e o elenco das principais técnicas existentes atualmente, não se olvidando de um breve histórico a respeito para se notar as transformações ocorridas ao longo dos tempos. Outrossim, como o tema versa sobre o modo homólogo e o espaço temporal post mortem de duas técnicas de reprodução assistida, uma explanação acerca de tais fatores também se apresenta adequada e oportuna.

2.1 CONCEITUAÇÃO E TÉCNICAS

A perpetuação da espécie é um princípio da natureza e se desenvolve como um tipo específico de instinto nos animais. Os seres humanos também são animais, porém, racionais. Logo, pode-se afirmar que a perpetuação da espécie é racionalizada pelo homem. Em outras palavras, o ser humano pode optar, em determinando(s) momento(s) de sua vida, em ter ou não sua prole, seus filhos.

Ocorre que alguns indivíduos que decidem pela realização de sua descendência não podem fazê-lo, ou melhor, não conseguem tornar real este desejo, por problemas de ordem biológica, tais como a infertilidade.

Importa ressaltar, por oportuno, que a infertilidade é considerada doença, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças em sua Décima Revisão (CID-10). No capítulo XIX da aludida classificação, encontra-se a lista de doenças do aparelho geniturinário (N00-N99), dentre as quais se constata a infertilidade masculina (N46) e a infertilidade feminina (N97) [04].

Alcançar a paternidade ou a maternidade pelo modo natural de reprodução por pessoas portadoras de infertilidade caracteriza-se, então, em uma pretensão inatingível se dos tratamentos médicos não resultarem os efeitos necessários para a solução do problema verificado.

Todavia, a evolução bioteconológica tem possibilitado aos indivíduos com tal problema a concretização da vontade de serem pais ou mães através de meios não naturais, independentes do ato sexual, que podem ser chamados, genericamente, de reprodução assistida (RA). Aliás, acerca desta terminologia, convém apontar a lição de Genival Veloso de França:

Não havia uma denominação satisfatória para essa técnica: fertilização artificial, fecundação artificial, concepção artificial, semeadura artificial, inseminação artificial, fecundação in vitro, ou fertilização matrimonial, como propõe Hilário Veiga de Carvalho. Hoje, a expressão mais aceita é Reprodução Assistida (RA), em face da denominação dada pelo Conselho Federal de Medicina, por meio de sua Resolução CFM n.º 1.358/92, em que adota as normas éticas para a utilização das técnicas desses procedimentos. [05]

O mencionado autor conceitua a reprodução assistida como "[...] o conjunto de procedimentos no sentido de contribuir na resolução dos problemas da infertilidade humana, facilitando assim o processo de procriação quando outras terapêuticas ou condutas tenham sido ineficazes para a solução e obtenção da gravidez desejada." [06]

Para Andréa Aldrovandi e Danielle Galvão de França, a reprodução humana assistida é, basicamente, a intervenção do homem no processo de procriação natural para possibilitar que pessoas com problema de infertilidade satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou a paternidade [07].

Por sua vez, Maria Helena Diniz define a reprodução assistida como o conjunto de operações para unir, de forma artificial, os gametas masculino e feminino, originando um ser humano [08].

A reprodução assistida pode ser compreendida, enfim, como "[...] o conjunto de técnicas laboratoriais que visa obter uma gestação substituindo ou facilitando uma etapa deficiente no processo reprodutivo." [09]

Não se adentrando no debate acerca da distinção entre infertilidade e esterilidade – já que eventual diferenciação não é objeto deste estudo, bem como não tem influência sobre o mesmo, podendo ser compreendidas tais expressões como sinônimos no presente trabalho –, é interessante salientar que a reprodução assistida é entendida por alguns autores como uma terapia e, por outros, como meio de concretizar a descendência. O espanhol Marciano Vidal, citado por Tycho Brahe Fernandes, acentua que

A esterilidade é uma doença, ou conseqüência de uma doença, com seus componentes físicos, psíquicos e, inclusive, sociais. Deste ponto de vista, qualquer procedimento dirigido a remediá-la, desaparecendo ou não a causa que a origina, deve ser entendido como uma terapia. [10]

Doutra banda, Heloisa Helena Barboza conclui, tendo em vista tratar-se a esterilidade de doença sem cura efetiva, que a reprodução assistida se cuida da satisfação do desejo de ser pai ou mãe [11].

De acordo com o primeiro artigo da primeira seção da Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina [12],

As técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade. [13]

De qualquer modo, a reprodução assistida abrange técnicas específicas que materializa os avanços biotecnológicos e da engenharia genética para superar a infertilidade humana.

Basicamente, as técnicas de reprodução assistida se agrupam em duas ordens que variam de acordo com o local da fecundação (dentro ou fora do organismo materno). Destarte, a fecundação pode dar-se:

a)in vivo, isto é, no próprio corpo feminino; ou

b)in vitro, ou seja, fora do organismo feminino, mais precisamente em laboratório [14].

Na fecundação in vivo, a concepção ocorre dentro do corpo da mulher à medida que os gametas masculinos são inseridos "dentro da vagina, em volta do colo, dentro do colo, dentro do útero, ou dentro do abdômen" [15]. Como exemplo, cita-se a inseminação artificial.

Já na fecundação in vitro, a concepção depende de um procedimento mais complexo, o que é compreensível em virtude de ser extra-uterina. Afinal, os gametas masculinos e femininos são retirados dos respectivos organismos e a fecundação ocorre em laboratório [16]. Nesta senda, tem-se o exemplo da técnica da fecundação in vitro propriamente dita, conhecida popularmente como "bebê de proveta".

Além deste critério, as técnicas de reprodução assistida são classificadas também de acordo com a origem dos gametas. Observam-se, pois, duas modalidades:

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a) técnicas de reprodução assistida homóloga;

b) técnicas de reprodução assistida heteróloga.

Como a própria nomenclatura sugere – notam-se os radicais homo e hetero –, a fecundação homóloga ocorrerá "[...] entre gametas provenientes de um casal que assumirá a paternidade e a maternidade da criança" [17], sendo que esta portará as informações genéticas do casal.

"Ao contrário, nas técnicas de reprodução heteróloga, são utilizados gametas de terceiros – tanto na doação de espermatozóides, quanto na doação de óvulos –, diante da impossibilidade do homem e/ou da mulher fornecerem seus próprios gametas" [18]. Em outras palavras, a fecundação heteróloga assim será quando o espermatozóide e/ou o óvulo utilizado(s) é(são) proveniente(s) de terceiro(s) – doador(es) –, ou seja, pessoa(s) diversa(s) da(s) que será(ão) a mãe ou o pai socioafetivo(s) da criança concebida.

Neste norte, Tycho Brahe Fernandes indica três subdivisões da fecundação heteróloga: "[...] a matre, quando o gameta doado foi o feminino, a patre, quando se tratar de doação de gameta masculino, ou total, quando os gametas utilizados da fecundação, tanto os masculinos quanto os femininos, são de doadores" [19].

Preliminarmente apontadas as nuances pertinentes à reprodução assistida, enumera-se algumas de suas várias técnicas desenvolvidas pela ciência médica e que se reputou de maior realce:

a)Inseminação artificial (IA ou AI);

b)Fertilização in vitro (FIV ou IVF);

c)Transferência intratubária de gametas (GIFT);

d)Transferência peritonial de gametas (POST);

e)Transferência intratubária de embriões (ZIFT);

f)Gestação de substituição.

Imperiosa se faz a elucidação – ainda que breve diante da evidente complexidade técnico-médica – de cada uma das técnicas de reprodução assistida enumeradas, o que se passa a fazer, com exceção da inseminação artificial e da fecundação in vitro que serão tratadas em tópico apartado, já que merecem maior relevo por comporem o cerne da pesquisa.

A transferência intratubária de gametas é conhecida pela sua sigla, em inglês, GIFT (Gamete Intra Fallopian Transfer [20]).

Trata-se da técnica menos utilizada que consiste na introdução simultânea do espermatozóide e do óvulo nas trompas de Falópio, local em que ocorrerá naturalmente a fecundação. Resolveu um conjunto significativo de problemas masculinos. Assim, com o auxílio de uma agulha muito fina, óvulos são retirados dos ovários e são transferidos, juntamente com os espermatozóides, para as trompas de Falópio, onde ocorre a fecundação. [21]

Outrossim, segundo José Emílio Medauar Ommati, trata-se de uma técnica idealizada pelo médico argentino Ricardo Ash que

[...] consiste em captar os óvulos da mulher através de laparoscopia, exame endoscópico da cavidade abdominal através de uma pequena incisão na parede do abdome, ao mesmo tempo que se capta o esperma do marido. Na mesma operação, colocam-se ambos os gametas em uma cânula especial, devidamente preparados, introduzindo-os em cada uma das trompas de Falópio, lugar onde se produz naturalmente a fertilização. Se tudo transcorre normalmente, os espermatozóides penetram em um ou mais óvulos, formando-se o embrião. Este descerá dentro das trompas até o útero, de forma tal que a concepção se produzirá integralmente no corpo da mulher. [22]

Tal descrição permite uma maior aproximação com a terminologia "transferência intratubária de gametas", já que tal técnica envolve a colocação (transferência) imediata e simultânea dos gametas masculino (espermatozóides) e feminino (óvulo) no interior das trompas (daí intratubária) do organismo materno.

E prossegue o pesquisador retrocitado, acentuando dois problemas desta técnica:

O grande problema é a baixa porcentagem de êxito desta técnica, figurando entre 35 a 40 %. Outro problema, comum às técnicas que não se utilizam apenas de métodos físicos, é a grande possibilidade de concepção de gêmeos. Isso se explica pelo fato de, ao se utilizar esse método de reprodução artificial, recolherem-se vários óvulos, para se garantir alguma margem de sucesso. [23]

Registra-se, outrossim, que a clínica Ferticlin indica um índice ainda mais baixo de chance de gravidez: de vinte e cinco por cento (25%) a trinta e cinco por cento (35%) [24].

A transferência peritonial de gametas, por sua vez, é representada pelo acrônimo POST que, na língua inglesa, significa Peritoneal Oocyte Sperm Transfer [25] e corresponde ao seguinte procedimento: "Eggs and sperm are injected into the abdominal cavity in the hope that the fallopian tube will pick these up." [26]

Evidencia-se que a diferença básica entre esta técnica de reprodução assistida e a transferência intratubária de gametas é o local em que são introduzidos o óvulo e os espermatozóides: enquanto na GIFT a transferência ocorre no interior das trompas do sistema reprodutor feminino, na POST, tem-se o peritônio.

Convém esclarecer, outrossim, que peritônio é a "Membrana serosa que reveste interiormente as cavidades abdominal e pélvica." [27]

No que tange à transferência intratubária de embriões, verifica-se que o acrônimo respectivo é ZIFT que exprime a expressão Zygote Intra Fallopian Transfer [28].

A terminologia utilizada por Heloisa Helena Barboza, "transferência intratubária de embriões" [29] não corresponde ao significado técnico exato do conjunto de termos que formam o acrônimo ZIFT. É cediço que a palavra "zigoto" não possui equivalência plena com a de "embrião".

Na verdade, o embrião é um estágio mais avançado do zigoto, conforme se pode averiguar: "[...] os estudos existentes apontam que, entre vinte e quatro a trinta e seis horas após a fecundação, a primeira célula individualizada – zigoto ou blastócito – começa a dividir-se, dando origem ao embrião. E esse, após seis semanas, passa a denominar-se feto." [30]

Logo, entende-se mais adequada a expressão "transferência intratubária de zigoto" em relação ao acrônimo concernente.

Considerando-se, pois, que o resultado da fecundação entre um óvulo e um espermatozóide é o zigoto, também conhecido como célula "ovo", infere-se a diferenciação existente entre a vertente técnica e a GIFT. A transferência é intratubária em ambos os métodos, porém, na GIFT são transferidos os espermatozóides e o óvulo ao passo que, na ZIFT, o que é transferido é o zigoto, ou seja, a fusão entre o óvulo e o espermatozóide.

Por conseguinte, infere-se que na ZIFT a fecundação ocorre fora do corpo feminino, ao contrário do que ocorre na GIFT.

Mister se faz ponderar que "Possui a ZIFT as mesmas restrições apresentadas pela GIFT, ou seja, baixa porcentagem de êxito e sobra de vários zigotos não colocados no corpo da mulher. Esses zigotos são conservados congelados até que o casal decida o que fazer com eles" [31].

A gestação de substituição não é, efetivamente, uma técnica de reprodução assistida, pois trata-se de um modo de aplicação das técnicas elencadas anteriormente.

Adianta-se que o referido procedimento consiste, como a própria expressão sugere, na gestação de uma criança por uma mulher que não assumirá o efetivo papel materno, entregando-a, após o nascimento, àquela que o exercerá [32]. Daí porque a técnica de reprodução não importa neste sentido, já que o ponto-chave desta modalidade é o empréstimo do útero. Sem embargo, entende-se conveniente a sua referência e concisa abordagem neste trabalho para dar ciência de sua existência, já que sua utilização acarreta uma série de conseqüências éticas e jurídicas [33].

A gestação de substituição é popularmente denominada como "barriga de aluguel" e, neste horizonte, vale trazer à baila a anotação de Eduardo de Oliveira Leite acerca da terminologia:

Preferimos a expressão ‘mãe de substituição’, ou mesmo a expressão ‘mãe de empréstimo’ (gratuita e, portanto, sem qualquer remuneração) à expressão ‘aluguel de útero’, já que o termo ‘aluguel’ faz pressupor, erroneamente, que a técnica de substituição passa, necessariamente, pela pecúnia, pela remuneração, induzindo o grupo social à idéia – largamente difundida – que a mãe que carrega a criança em seu ventre, sempre recebe algum valor em dinheiro. Ora, a realidade tem demonstrado que, na maioria dos casos a mãe de substituição carrega a criança, por mera benevolência, amizade ou vínculo de afeto à mulher estéril. [34]

Além da expressão "gestação de substituição", utilizada na Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina em sua sétima seção, vislumbra-se que outras também são utilizadas para identificar o mesmo procedimento. Nesta vereda, verificou-se, até então, "mãe de substituição", "mãe de empréstimo", "aluguel de útero", "barriga de aluguel". A multiplicidade de denominações, contudo, não se finda nestas: Jussara Meirelles, citada por Elida Séguin, enumera ainda "maternidade de substituição", "gestação por outrem", "cessão de útero", "maternidade de aluguel", "maternidade por sub-rogação", "mãe portadora", "mãe por procuração", "mãe interina", "mãe de aluguel", "mãe por comissão", entre outras. [35] Da lição de Heloisa Helena Barboza extrai-se ainda as seguintes expressões: "gestante alternativa", "mãe sub-rogada", "mãe hospedeira", "mãe suporte", "ama-de-ventre" e "ama de sangue" [36].

Enfim, Tycho Brahe Fernandes acentua que esse procedimento comporta cinco possíveis variações:

Na primeira, a ‘mãe portadora’ limita-se a emprestar o seu útero para que uma criança seja gestada utilizando o potencial genético dos pais que serão os pais socioafetivos da criança gerada. Na segunda, a ‘mãe gestacional’, além de gestar, empresa seu material genético para ser fecundado com o sêmen do esposo da futura mãe socioafetiva. Na terceira variante, a ‘mãe gestacional’ gesta embriões ou gametas obtidos de terceiros doadores para aqueles que serão os pais socioafetivos. Na opção seguinte, a ‘mãe gestacional’ gesta um embrião obtido com a fecundação do sêmen do homem que será o pai socioafetivo da criança e de um óvulo doado. E, por fim, tem-se a gestação sub-rogada de um óvulo da mãe que será a mãe socioafetiva com o sêmen de um terceiro doador. [37]

Diante de tantas variantes, é compreensível a ponderação de Eduardo de Oliveira Leite ao asseverar que a sociedade "tem dificuldade em transgredir com regras naturais e jurídicas que sempre atribuíram a qualidade de mãe à mulher que dá à luz e nunca a uma terceira." [38]

Por isso, a Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina restringiu a aplicação desta prática ao condicioná-la à existência de um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética e exigindo um parentesco entre elas.

2.2 INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL E FERTILIZAÇÃO IN VITRO HOMÓLOGAS POST MORTEM

A inseminação artificial e a fertilização in vitro são as técnicas de reprodução assistida mais utilizadas, tanto o são que se tornaram mais popularmente conhecidas. Para corroborar tal assertiva, interessante revelar alguns dados referentes à Procriar – Centro de Fertilização Assistida [39], clínica de reprodução assistida situada na cidade de Blumenau – Santa Catarina, junto à qual se realizaram visitação e entrevista com um dos sócios e médicos responsáveis, Dr. Fernando Cesar Sanches. Assim sendo, tem-se que, durante o período de existência da Procriar [40], as técnicas e modalidades mais realizadas foram a inseminação artificial homóloga, a fertilização in vitro e a inseminação artificial heteróloga, nesta ordem [41].

Em virtude do uso consagrado destes dois procedimentos é que o ponto nevrálgico desta pesquisa restringiu-se aos mesmos. Por conseguinte, julgou-se de maior valia a separação destas técnicas para explanação um pouco mais aprofundada do que a efetuada para as demais.

Destarte, já que a inseminação artificial e a fertilização in vitro estão em pauta, muito apropriada é a anotação de Heloisa Helena Barboza quanto à designação adotada para tais técnicas especificamente:

[...] cabe destacar que em ambas as hipóteses é inadequada a denominação ‘fecundação artificial’ (‘fécondation artificielle’, ‘fecondazione artificiale’), chegando a se afirmar ser a mesma inexata e pouco feliz porque: primeiro, como que assegura a fecundação antecipadamente, o que não pode ocorrer; segundo, porque a fecundação propriamente dita nada tem de artificial no caso. Na verdade, artificiais são os meios para se obter a fecundação e não esta em si, como induz a designação criticada. A fecundação, união ou fusão dos elementos ontogenéticos, é sempre natural. [42]

Com efeito, as técnicas de reprodução assistida sob comento não eivam de artificialidade o ato da fecundação em si, uma vez que são formas alternativas não naturais de obtê-la. Em outras palavras, a fusão do óvulo e do espermatozóide originando o zigoto é puramente natural; o que pode ser considerado artificial é o modo, o método utilizado para promover esse encontro dos gametas.

Sublinhada a questão terminológica, passa-se a analisar cada uma das técnicas de procriação assistida em destaque.

A inseminação artificial (IA ou AI) é uma das técnicas de reprodução humana medicamente assistida mais difundidas e aplicadas no mundo sobretudo em virtude do avanço biotecnológico verificado que, por sua vez, permite resultados mais satisfatórios.

Etimologicamente, a palavra inseminação deriva da união de semino e atus que vem significar semear ou plantar [43]. Ou ainda: de origem latina, inseminação surge de inseminare, de in (que significa, dentro), e semen (que quer dizer semente). [44]Heloisa Helena Barboza complementa: "[...] inseminatio do verbo in = em + semino, as, avi, atum, are de semen, seminis = semente, grão, significando semear, procriar, gerar, difundir" [45]. Logo, a inseminação artificial pode ser lembrada, a grosso modo, como a semeadura não natural.

Nas palavras de Belmiro Pedro Welter, a inseminação artificial é uma técnica

[...] em que o material genético masculino é depositado diretamente na cavidade uterina da mulher, não por meio de um ato sexual, mas, sim, assexual (artificial), cuja técnica é dirigida ao casal fértil com dificuldade para fecundar naturalmente, em vista de deficiências físicas (impotenti coeundi) [46].

Atentando-se aos aspectos físicos dos seres humanos que impedem ou dificultam a reprodução natural, Maria Helena Diniz enfoca que a inseminação artificial terá lugar

[...] quando o casal não puder procriar, por haver obstáculo à ascensão dos elementos fertilizantes pelo ato sexual, como esterilidade, deficiência na ejaculação, malformação congênita, pseudo-hermafroditismo, escassez de espermatozóides, obstrução do colo uterino, doença hereditária etc. [47]

Na breve conceituação de Elida Séguim, "A inseminação artificial consiste em uma injeção de sêmen, previamente colhido e selecionado, na cavidade uterina ou no canal cervical, no período em que o óvulo está maduro para fecundação." [48]

José Emílio Medauar Ommati, por sua vez, traz a abordagem que segue:

A inseminação artificial é o processo pelo qual dá-se a transferência mecânica de espermatozóides, previamente recolhidos e tratados, para o interior do aparelho genital feminino. A técnica de inseminação artificial é muito simples, consistindo basicamente em obtenção dos espermatozóides, seja do marido, seja de terceira pessoa, através da masturbação ou de massagens nas vesículas seminais. Depois de vários processos de seleção dos espermatozóides, estes estão prontos para ser implantados no corpo da mulher, através da simples colocação no fundo do canal vaginal, podendo-se utilizar pílulas de espermatozóides, inventadas pelo professor MILTON NAKAMURA, da Universidade de São Paulo. ....... A mecânica mais simples, sem dúvida, supondo-se a sanidade dos gametas, seria a coleta do sêmen com a imediata introdução no corpo da mulher, donde se falar em auto-inseminação, possibilidade exitosa se a mulher estiver na época da ovulação e não sofrer de nenhuma deficiência funcional ou orgânica. Essa introdução pode ser feita usando-se cânulas ou seringas. Isso permite a simplicidade da técnica e a ausência quase que total de riscos para a receptora. [49]

Na visão de Sérgio Ferraz, a inseminação artificial é entendida como "[...] o processo pelo qual se insere no gameto feminino, seja ‘in vitro’, seja no aparelho genital da mulher, sêmen previamente recolhido." [50] Nota-se que o autor, ao aduzir a possibilidade de inserção in vitro de um espermatozóide em um óvulo, acaba por trazer uma idéia genérica de reprodução assistida extracorpórea, ao invés de explicitar os contornos da técnica em exame.

Veja-se que Eduardo de Oliveira Leite traz o aspecto in vivo ao esclarecer que "A inseminação artificial é feita por meio do depósito do esperma preparado dentro da vagina, em volta do colo, dentro do colo, dentro do útero, ou dentro do abdômen." [51] E prossegue o autor diferenciando a inseminação artificial intracervical, intravaginal e intrauterina:

A inseminação intracervical consiste, pois, no depósito no colo do útero, do esperma contido em um capilar. O capilar é retirado do azoto líquido, um pouco antes da inseminação, e reaquecido rapidamente. Introduz-se o capilar na seringa de inseminação e a extremidade da seringa na parte média do canal cervical. Uma pressão sobre a seringa permite o escoamento do esperma até o muco endocervical. A operação dura dois minutos. ................. Durante um mesmo ciclo, utiliza-se para cada mulher o esperma de um só doador. Duas são as razões justificadoras desta atitude: de um lado, é preciso contabilizar as gravidezes obtidas por doador para não ultrapassar as cinco autorizadas; de outro lado, é fundamental que se estabeleçam nitidamente as relações entre o esperma utilizado, a gravidez e a criança, especialmente em caso de problema genético. Existem, porém, outras técnicas de inseminação, como a intravaginal e a intrauterina. No primeiro caso, a técnica é facilmente realizada por meio de uma seringa plástica usando todo o esperma. O método não requer a exposição de colo e pode ser realizada pelo casal. A mulher fica na posição supina e deve ser mantida nessa posição por cerca de 20 minutos após a inseminação. No segundo caso, ou seja, de inseminação intrauterina, o colo uterino é deixado de lado e o líquido seminal é injetado diretamente dentro da cavidade uterina. [52]

Conforme a origem dos gametas, a inseminação artificial pode ser homóloga ou heteróloga. Segundo Thomas L. Stedman, a inseminação artificial será homóloga quando se der com sêmen do marido e, heteróloga, quando o sêmen for de um doador que não é o marido da paciente [53].

No mesmo sentido, tem-se a lição de Arnaldo Rizzardo: "Diz-se homóloga a inseminação quando o sêmen e o óvulo pertencem ao marido e à esposa; e heteróloga será ser um destes elementos é doado por estranho." [54]

Observa-se que, em ambas as diferenciações, fala-se em marido e esposa, restringindo a questão à existência de um casamento. No entanto, olvida-se da união estável quando também a esta é aplicável a classificação da inseminação artificial segundo a origem dos gametas. Destarte, prefere-se uma definição mais neutra da inseminação artificial homóloga e heteróloga no tocante ao tipo de união estabelecida e cultivada entre um homem e uma mulher. Afinal, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou, no parágrafo 3º de seu artigo 226, a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar [55].

Maria Helena Diniz atenta-se a tal aspecto:

Em caso de inseminação artificial, poderá haver: a) inseminação homóloga, praticada na esposa (convivente) com sêmen de marido (convivente), em vida deste, ou após sua morte (AIH, Artificial Insemination by Husband); b) inseminação heteróloga, durante o matrimônio ou união estável, feita em mulher casada ou convivente, com esperma de terceiro (AID – Artificial Insemination by Donor). [56]

Colhe-se ainda que a inseminação artificial homóloga se caracteriza pelo fato de que o "[...] material genético utilizado no procedimento é fornecido pelo próprio casal que se submete à reprodução assistida e que ficará com a criança. Portanto, haverá uma conciliação entre a filiação biológica e a afetiva." [57] Já na inseminação artificial heteróloga, "[...] a criança gerada [...] possuirá um pai biológico diverso daquele que lhe irá registrar e acolher." [58]

Eduardo de Oliveira Leite utiliza-se das expressões "auto-inseminação" e "hetero-inseminação" como sinônimos da inseminação artificial homóloga e heteróloga, respectivamente. [59] Porém, não se entende de total adequação tais designações já que o radical grego auto quer significar "por si mesmo", o que pode sugerir a idéia de que o procedimento da inseminação pode ser realizado pelas próprias partes, não afastando a reprodução através da relação sexual.

Heloisa Helena Barboza possui escólio acerca da nomenclatura que merece ser colacionado, ressalvando que igual designação pode ser aplicada nos casos de união estável:

A análise etmológica dessas últimas classificações revela que a nomenclatura mais precisa no plano jurídico deveria ser: a) inseminação artificial matrimonial (‘inseminazione artificiale matrimoniale’), para a que é feita em mulher casada, subdividindo-se em conjugal, se o sêmen é do marido, e extraconjugal ou hetero-inseminação, se utilizado sêmen de terceiro; e b) inseminação artificial extramatrimonial, a realizada em mulher solteira ou viúva. [60]

A presente pesquisa terá enfoque sobre a modalidade homóloga da inseminação artificial. Repisa-se, pois, que, neste caso, serão utilizados os gametas do casal (marido e mulher, companheiro e companheira) para a fecundação, ou seja, não serão aproveitadas as células germinativas de terceiros doadores. Por conseguinte, o fruto desta união, o filho gerado, trará consigo a carga genética de seus pais biológicos e afetivos, já que estes efetivamente assumirão a criança.

Outrossim, giza-se que será considerada post mortem a inseminação artificial homóloga que se utilizar dos espermatozóides do falecido marido ou companheiro, caso em que os gametas restaram coletados em vida para futuro e eventual aproveitamento e, portanto, devidamente conservados.

Neste diapasão, convém salientar que a evolução científica tornou possível a fecundação com a utilização de material genético de um indivíduo já falecido:

Com base nos avanços científicos, é possível que o sêmen, o embrião, e também o óvulo – quanto a este, as experiências científicas são mais recentes – possam ser criopreservados, ou seja, armazenados através de técnicas próprias de resfriamento e congelamento, o que possibilita, desse modo, que mesmo após a morte da pessoa seu material fecundante possa ser utilizado, em tese, na reprodução medicamente assistida. [61]

O momento post mortem e a modalidade homóloga também são aplicáveis à fertilização in vitro, razão pela qual, para evitar o vício da tautologia, deve ser considerado o arrazoado pertinente, passando-se apenas a discorrer acerca das conceituações desta técnica de reprodução assistida.

Registra-se, para finalizar a abordagem da inseminação artificial e adentrar na seara da fecundação in vitro, que os índices de sucesso com a utilização de ambas as técnicas de reprodução assistida não são considerados altos, apesar da tecnologia empregada hodiernamente:

Auxiliar a obtenção de uma gestação é um procedimento complexo e, mesmo nos melhores centros do mundo as taxas de êxito não são altas, variando de 30 a 35% para FIV e 16 a 20% para inseminação, levando-se, também, em conta os grupos etários. ..... Os índices de sucesso dependem da idade da mulher, do tipo de problema envolvido e da resposta da paciente aos medicamentos utilizados. [62]

Alexandre Gonçalves Frazão, citando lição de Elio Sgreccia, traz índices mais baixos acerca a fecundação in vitro quando se fala não em gravidez, mas no efetivo nascimento da criança:

Quanto à probabilidade de sucesso de se obter uma gravidez e ter um filho utilizando-se da técnica de Fecundação In Vitro, sabe-se que os casos levados até o fim, com o nascimento efetivo do bebê, apenas se verificam em 6,7 % dos casos. Porém, se a exigência enfocada for apenas o início da gravidez, essas chances de sucesso aumentam para 17,1%. [63]

Interessante revelar que "Na América Latina existe uma taxa global de gravidez de 27.8% por ciclo de tratamento de Fertilização In Vitro (FIV), de acordo com o Registro Latino-americano de 1998.http://www.redlara.com/duvidas.asp - 11" [64]

Não obstante, tanto a inseminação artificial quanto a fecundação in vitro são as técnicas mais comumente utilizadas.

A fecundação in vitro (FIV), pois, mais conhecida como a técnica que origina o "bebê de proveta", também é designada, segundo anotação de Maria Helena Diniz, como ectogênese [65].

Trata-se de uma técnica "[...] pioneira na reprodução assistida, simples e barata [...]" [66], reconhecida mundialmente e responsável pela maioria dos dezesseis mil bebês de proveta que nascem todos os anos, sendo a mais clássica das modalidades de procriação medicamente assistida [67].

A fecundação in vitro ou ectogênese é "[...] a técnica mediante a qual se reúnem in vitro os gametas masculino e feminino, em meio artificial adequado, propiciando a fecundação e formação do ovo, o qual, já iniciada a reprodução celular, será implantado no útero materno." [68]

Nas palavras de Eduardo de Oliveira Leite, "[...] é uma técnica capaz de reproduzir artificialmente o ambiente da trompa de Falópio, onde a fertilização ocorre naturalmente e a clivagem prossegue até o estágio em que o embrião é transferido para o útero." [69]

A fecundação, nesse caso, é, portanto, extracorpórea, eis que ocorre em laboratório, fora do organismo materno. É o que explicita Arnaldo Rizzardo ao discorrer que "Por esta técnica, reúnem-se, extracorporalmente, num tubo de ensaio ou numa placa, o material genético masculino e o material genético feminino, o que leva à fecundação e à formação do ovo. Introduz-se o ovo no útero da mulher depois que inicia a divisão celular." [70]

Nilo Frantz, citado por Belmiro Pedro Welter, salienta que essa técnica é composta de três passos fundamentais:

[...] o primeiro é a coleta dos gametas, que são os óvulos que a mulher produz; o segundo é a coleta dos espermatozóides do marido [ou companheiro], através de masturbação. Em seguida, retira-se a quantidade necessária de espermatozóides e faz-se com que esses dois gametas se unam [...]. Vinte e quatro horas depois, normalmente, tem-se o espermatozóide entrando no óvulo, e de 12 a 24 horas após ele expulsa metade de sua parte de cromossomas, ficando, então, o novo ser constituído, o ovo constituído. Esse conjunto se chama de ovo ou pré-embrião, ‘que vai se dividindo duas, quatro, oito, dezesseis e trinta e duas células, chamando isso de pré-embrião ou embrião. Quando atinge de cinco a seis dias, colocamos esses embriões dentro do útero. Teremos aí a realização de uma fecundação in vitro, de um bebê de proveta’. [71]

Já Mônica Sartori Scarparo, citada por Arnaldo Rizzardo, ao sintetizar o procedimento, destaca, sobretudo, o preparo de ambos os gametas:

Depois da classificação, os óvulos são colocados numa placa que contém meio de cultura completado com soro humano, sendo incubados em estufa, na temperatura de trinta e sete graus Celsius, controlada eletronicamente. Após uma a seis horas, os óvulos maduros são submetidos à inseminação [deve-se entender aqui o ato da colocação dos espermatozóides], com espermatozóides previamente preparados. O preparo consiste no enriquecimento e na seleção dos melhores gametas masculinos, e a escolha se baseia nas condições do sêmen, objetivando-se a melhoria de alguns parâmetros. A preparação é iniciada cerca de hora e meia antes da inseminação, que é feita pela adição ao meio da cultura onde já o óvulo, de sessenta mil a cento e cinqüenta mil espermatozóides móveis e normais. ....... Após a inseminação [de acordo com o entendimento já ressaltado anteriormente], a placa retorna à estufa, onde permanece por mais doze a dezoito horas, quando será reexaminada, para se constatar se houve ou não a fertilização, o que é feito mediante a observação de dois pró-núcleos que desaparecem após as dezoito horas. Neste momento, os embriões são colocados em outra placa, sem espermatozóides e com maior concentração de soro, para complementação do meio. Permanecem na estufa até atingirem o estágio de dois-quatro células, momento em que ser fará a transferência. A técnica de transferência envolve a inserção de um cateter, pelo orifício cervical, até a cavidade uterina, o que dispensa anestesia; após algumas horas de repouso, a paciente terá alta." [72]

Outrossim, Heloisa Helena Barboza [73] e Eduardo de Oliveira Leite [74] trazem ainda mais esmiuçado o procedimento relativo à fecundação in vitro, a contar da coleta e tratamento dos gametas.

Vale ainda lembrar as indicações para a utilização desta técnica específica:

Distinguem-se em sete grupos as atuais indicações para a fertilização in vitro: fracasso no tratamento do fator tubário; inaplicabilidade do tratamento do fator tubário; inaceitação do tratamento do fator tubário; cervix hostil; esterilidade idiopática; impotência coeundi feminina, e esterilidade masculina. Contudo, o motivo mais freqüente da procura da fecundação in vitro não é a esterilidade primária, mas a secundária, ou seja, a que se segue à laqueadura das trompas como método contraceptivo. Enfim, mulheres que se arrependeram da esterilização em face de novo casamento ou após a perda de algum filho. [75]

Com efeito, a existência de um problema que dificulta ou impede a reprodução humana é condição para a aplicação das técnicas médicas para obtê-la, conforme se pode observar no já transcrito artigo primeiro da primeira Seção da Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina. Não fugiria desta regra a fecundação in vitro.

Mas independentemente da existência ou não de uma problemática, Maria Helena Diniz revela algumas situações que julga inusitadas com tal técnica de reprodução assistida e que podem ser consideradas relevantes para a constatação da amplitude da questão e da própria modalidade reprodutiva:

a) fecundação de um óvulo da esposa ou companheira com esperma do marido ou convivente, transferindo-se o embrião para o útero de outra mulher; .... b) fertilização in vitro com sêmen e óvulo de estranhos, por encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da mulher ou no de outra; ..... c) fecundação, com esperma de terceiro, de um óvulo não pertencente à sua mulher, mas implantado no seu útero; ... d) fertilização, com esperma de terceiro, de um óvulo não pertencente à esposa ou convivente, com imissão do embrião no útero dela; ... e) fecundação na proveta de óvulo da esposa ou companheira com material fertilizante do marido ou companheiro, colocando-se o embrião no útero da própria esposa (convivente); ... f) fertilização, com esperma de terceiro, de óvulo da esposa ou convivente, implantando em útero de outra mulher; ..... g) fecundação in vitro de óvulo da esposa (companheira) com sêmen do marido (convivente), congelando-se o embrião para que, depois do falecimento daquela, seja inserido no útero de outra, ou para que, após a morte do marido (convivente), seja implantado no útero da mulher ou no de outra. [76]

Heloisa Helena Barboza, assim como o fez na inseminação artificial, elaborou uma classificação da fecundação in vitro que reputou mais adequada juridicamente. Destarte, a fecundação in vitro se classificaria conforme a existência ou não de casamento, sendo que no primeiro caso, haveria ainda uma subdivisão em homóloga e heteróloga [77].

Como se constata, mormente através da transcrita cátedra de Maria Helena Diniz, as variações da aplicabilidade são várias. No entanto, nesta pesquisa, deu-se enfoque à fecundação in vitro homóloga post mortem sendo, pois, utilizado o embrião oriundo da fecundação do óvulo da esposa ou companheira por espermatozóide de seu falecido marido ou companheiro, respectivamente, que é implantado no interior do organismo daquela e não de terceira mulher.

2.3 BREVE HISTÓRICO DO AVANÇO DA BIOTECNOLOGIA EM RELAÇÃO ÀS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

A procriação, o nascimento, a vida... Todos estes são temas que sempre encantaram o homem, aguçando sua curiosidade, desde os primórdios.

Talvez, numa escala bastante singela, pode-se considerar o instinto de perpetuação da espécie, o fascínio pela origem da vida e o desejo de ter um filho como algumas etapas do pensamento do homem na justificativa e na busca de sua prole. Isso permite um paralelo com o homem das cavernas, o homem das primeiras sociedades civilizadas e o homem moderno.

Atualmente, com todo o conhecimento médico-científico existente, ainda se associa a vida com a proteção de um ente espiritual superior. Daí porque se ouve a expressão "brincar de Deus" relacionada ao trabalho dos profissionais que manipulam gametas, zigotos e embriões para proporcionar a reprodução humana, então, medicamente assistida. O mesmo motivo serve, inclusive, para justificar a posição dos que repudiam veementemente a reprodução fora do ato sexual e as manipulações genéticas concernentes.

Não se adentrando em posições religiosas e/ou éticas a respeito, é conveniente acentuar que a idéia de reprodução humana despida de relação sexual não é recente. Muitas manifestações, de diferentes povos, podem ser observadas ao longo da história.

A mitologia é rica em casos de mulheres que engravidam fora do ato sexual, como, por exemplo: Ates – filho de Nana, filha do sei Sangário, que teria colhido uma amêndoa e colocado em seu ventre (Grécia); Kwayin – deusa que possibilitava a fecundidade das mulheres que prestassem culto (China); Vanijin – deusa da fertilidade, mulheres que se dirigiam sozinhas a seu templo retornavam grávidas (Japão); [...] no Brasil, é conhecida a lenda amazônica do boto que engravida as mulheres que lhe dirigem o olhar. [78]

Ainda na China tem-se a lenda de que os dragões representantes do bem e do mal travaram luta que originou uma espuma fecundante, da qual foram gerados os heróis da dinastia Hsi [79].

A mitologia grega, outrossim, não encerra os casos de reprodução assexuada em Ates. Cita-se, pois, outros dois casos mitológicos: tem-se a lenda do nascimento de Perseu, filho de Danae e neto de Acrísio, uma vez que sua mãe estava enclausurada para evitar a concepção de um filho que viria a matar o avô, usurpando-lhe o trono, mas esta ocorreu quando Zeus, transformou seu próprio sêmen em chuva de ouro e inseminou a moça durante o sono [80]; há ainda o mito de que Zeus teria ejaculado após um sonho e seu sêmen, ao cair na terra, gerou o hermafrodita Agstidis, que foi castrado, tendo seu membro decepado enterrado num determinado local em que nasceu uma amendoeira [81].

A questão não se restringe a situações não-cristãs. Na própria Bíblia verifica-se a descrição da anunciação, pelo anjo Gabriel, da concepção e nascimento de Jesus por Maria:

‘[...] Conceberás e darás à luz a um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai. [...]’. Então, Maria perguntou ao anjo: ‘Como se fará isso? Pois sou virgem’. O anjo respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te envolverá em sua sombra. [...]’. [82]

Afora a questão da reprodução fora do ato sexual, a Bíblia traz passagens que revelam outras soluções para obter uma prole, como, por exemplo, o nascimento de Ismael, em que é possível constatar a noção de gestação de substituição:

Sarai, mulher de Abrão, não lhe dera nenhum filho. Tinha porém uma criada egípcia chamada Agar. Disse pois Sarai a Abrão: ‘Não tendo Javé permitido que eu tivesse filhos, peço-te que te unas à minha criada; ao menos por meio dela, talvez, eu tenha filhos’. Abrão atendeu ao pedido de sua mulher. [...] Uniu-se ele a Agar, que ficou grávida. [83]

No mesmo sentido, tem-se o nascimento de Dan:

Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve ciúmes de sua irmã, e disse a Jacó: ‘Dá-me filhos, senão eu morro!’. Encolerizou-se Jacó contra Raquel e disse: ‘Porventura estou em lugar de Deus, que te negou o fruto do ventre?’. Mas ela respondeu: ‘Aqui tens minha criada Balá. Une-te a ela. Que ela dê à luz sobre meus joelhos, e assim por meio dela terei filhos’. Entregou-lhe, pois, sua criada Balá por mulher, e Jacó uniu-se a ela. Balá concebeu e deu a luz à um filho a Jacó. Então Raquel exclamou: ‘Deus fez-me justiça e escutou minha voz, dando-me um filho!’. Por isso chamou-o Dan. [84]

Ao contrário da fertilidade, a esterilidade/infertilidade sempre foi vista negativamente. Esta era considerada uma maldição oriunda da cólera dos antepassados ou da influência das bruxas ou dos desígnios divinos. A mulher estéril era encarada como um ser maldito que devia ser banida do convívio social. Os judeus encaravam a esterilidade como castigo de Deus. A fecundidade, em contrapartida, era tida com intensa benevolência, tanto o é que à chegada dos filhos são vinculadas as noções de fortuna, riqueza, prazer, alegria, fartura, privilégio e dádiva divina. [85]

Como se deflui, a mulher, que há muito já sofria pressões sociais por motivos diversos, ainda tinha de suportar a culpa pelo fato do casal não possuir filhos. Para muitos povos, a finalidade da mulher era procriar e, portanto, tinha de ser fértil.

Até o final do século XV era inadmissível a idéia de esterilidade masculina, não sofrendo grandes mudanças a situação da esterilidade feminina. Com a descoberta de novos elementos terapêuticos, apenas se procurava curar o mal através de rudimentar emprego de farmacopéia (chás, ervas) e de medidas acientíficas (uso de metais e pedras preciosas, invocações religiosas, rituais, flagelações, etc.). [86] Somente no século XVII surgiu a noção de esterilidade conjugal, ou seja, de que a esterilidade não era exclusivamente da mulher, eis que, em 1677, Johann Ham afirmou que a esterilidade, muitas vezes, ocorria por ausência ou escassez de espermatozóides. [87]

Eduardo de Oliveira Leite traz a lume descobertas marcantes a respeito da fecundação, dentre as quais selecionam-se as que seguem.

Em 1778, Heller afirmou que os espermatozóides se encontram no líquido testicular. Apenas mais de um cem anos depois, Dogues, em 1883, admitiu a participação dos ovários no processo de fecundação. No ano de 1842, Ponchet e Bischoff estabeleceram a ovulação e a menstruação. A fecundação, no entanto, só restou desvendada em 1875 e 1890, quando pesquisadores concluíram, a partir da análise em mamíferos e peixes, que a fertilização é constituída pela união do núcleo de um espermatozóide com o de um óvulo. Tem-se ainda que em 1934, Ogino e Knaus formulam o "calendário menstrual" a partir dos resultados obtidos em suas investigações sobre ovulação. [88]

Considerando a idade do mundo, as experiências e descobertas relacionadas à reprodução humana natural podem ser consideradas bastante recentes; quanto àquelas pertinentes à reprodução assistida permite-se, então, asseverar que são atualíssimas.

Destarte, como serão estudados os reflexos jurídicos concernentes à filiação e ao direito sucessório relativos tão somente às técnicas de inseminação artificial e fecundação in vitro, tem-se de valia o prosseguimento do histórico nesta seara.

Como ocorre com a maioria das experiências, também estas técnicas de reprodução assistida restaram inicialmente estudadas, investigadas e testadas em animais. Observa-se, pois, em relação à inseminação artificial:

[...] já no século XIV se realizava a inseminação artificial em peixes, e, no século XV, no bicho-da-seda. .. Afirma-se que em 1332 se teria obtido a fecundação de uma égua com interferência humana, sendo relatado que a técnica era utilizada como artifício de guerra, seja pela inseminação de éguas dos inimigos com sêmen de cavalos velhos ou doentes, seja por furto do sêmen dos bons cavalos dos adversários. .. Posteriormente, em 1670, Marcelo Malgighi logrou o encaixe de germens nos ovos de bicho-da-seda. .. No século XVIII foram produzidas algumas experiências nesta área, sendo que em 1767 o alemão Ludwig Jacobi trabalhava com a reprodução de peixes, enquanto o abade italiano Lazzaro Spallanzan, em 1777, logrou obter a fecundação de uma cadela por meio de inseminação artificial, nascendo, daí, três crias. .. Já no século XIX a inseminação artificial foi aplicada em outros mamíferos como éguas, vacas e ovelhas, destacando-se nas pesquisas com mamíferos o russo Elie Ivanoff. [89]

Aliás, salienta-se que, consoante Genival Veloso de França, o veterinário Ivanoff foi o propulsor da técnica moderna da então chamada fecundação artificial [90].

Nas plantas, tem-se notícia de que "Os árabes e os babilônios praticavam a inseminação artificial em palmeiras, para obter maior número de tâmaras." [91]

Já nos seres humanos, a primeira inseminação artificial teria ocorrido na Idade Média: Arnaud de Villeneuve, médico de reis e papas, teria obtido sucesso na inseminação artificial, em 1494-5, da Rainha D. Joana de Portugal, esposa de Henrique IV de Castela, "O Impotente". [92] Heloisa Helena Barboza, contudo, registra que a tentativa resultou inexitosa. [93]

Não obstante, a conquista da primeira experiência científica em seres humanos que obteve sucesso pleno é atribuída a John Hunter. Relata-se que o êxito se deu "[...] em 1791 ao inseminar artificialmente, com o sêmen do marido, a esposa de um lord que padecia de hipospadia (desenvolvimento insuficiente da uretra em seu trajeto peniano, do qual resulta a abertura anormal desta na face ventral do pênis) e desejava perpetuar seu nome." [94] Deflui-se que a modalidade experimentada é, pois, homóloga.

No tocante à inseminação artificial heteróloga, a primeira ocorreu em 1884 e foi feita por Pancoast, ginecologista americano, na Filadélfia, Pensilvânia, sendo que a indicação para a conduta foi azoospermia (ausência de espermatozóides ativos no sêmen ejaculado) resistente à terapia. [95] Nesta senda, convém anotar a controvérsia lembrada por Tycho Brahe Fernandes em relação ao profissional e ao momento em que se deu a primeira inseminação artificial heteróloga mencionados por Eduardo de Oliveira Leite:

[...] Nelson Carneiro, embora confirme a data, atribui o fato ao médico Robert Dickinson [...], sendo que Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos afirma que este realmente realizou a primeira inseminação artificial com sêmen de doador, porém isso, somente teria ocorrido em 1899 [...]. [96]

Não se pode olvidar que Tycho Brahe Fernandes também esclarece que a assertiva de Eduardo de Oliveira Leite não é isolada, sendo seguida por Stela Marcos de Almeida Neves Barbas, Liz Chemin Guimarães, Regina Fiuza Sauwen e Severo Hryniewicz [97].

Após a constatação de que os gametas masculinos poderiam ser conservados através do resfriamento, surgiram os denominados "bancos de sêmen" nos Estados Unidos:

[...] em 1945, o biologista Jean Rostand observou que os espermatozóides submetidos ao frio, sem emprego do glicerol, podiam se conservar por muito tempo, sem alteração de sua viabilidade. O congelamento do esperma permitiu a criação dos bancos de esperma. [98]

Atenta-se que o advento dos bancos de esperma coincide com a época da segunda guerra mundial. Assim sendo, Heloisa Helena Barboza estampa em sua ensinança o seguinte acontecimento:

Fato é que, durante aquele período, foram realizadas maciçamente inseminações pelo exército americano, transportando por avião esperma dos soldados que lutavam no Pacífico, sem saber quando retornariam à América. Em 1945, o jurista BORRELL noticia o nascimento de vinte mil crianças fruto de inseminação artificial, as quais foram consideradas filhos legítimos, por decisão sem precedentes tomada pelo juiz Henry Greenberg, da Corte Suprema de Nova York. .. O mesmo se verificou relativamente às tropas inglesas na Coréia, o que levou os ingleses a incrementar tais práticas, de tal sorte que a questão chegou à Câmara dos Comuns, que proibiu a inscrição de filho concebido por esperma de doador anônimo como legítimo em 19 de abril de 1945. [99]

Na década de 1950, a técnica de crioconservação do sêmen foi aperfeiçoada por Polge e Rowson, sendo que em 1953 se obteve a primeira inseminação artificial exitosa com esperma congelado. [100]

A partir de então, as pesquisas e experiências continuaram a se desenvolver, bem como as tecnologias cada vez mais avançadas. Giza-se o progresso da ciência, da engenharia genética e da biotecnologia em curto lapso temporal. Destarte, tem-se hodiernamente consagrada a inseminação artificial.

Na fecundação in vitro, a evolução experimental também se iniciou com animais para posterior prática em seres humanos. "A pré-história da FIV remonta ao século XIX, mais precisamente a 1878, quando Schenk, na tentativa de fertilizar óvulos de cobaias, incubou oócitos foliculares com espermatozóides não obtendo sucesso na sua experiência." [101] A primeira fecundação in vitro comprovadamente bem sucedida em animais ocorreu em 1959, na reprodução de coelhos [102].

A fecundação in vitro em seres humanos apenas se iniciou quase na metade do século XX. Indica-se, pois, alguns dados relevantes.

Em 1944, Rock e Menkin, dois biologistas, obtiveram quatro embriões normais a partir de mais de uma centena de óvulos humanos colhidos nos ovários e colocados em presença de espermatozóides. Três anos após, ou seja, em 1947, Chang transferiu um ovo fertilizado e congelado entre 5º e 10ºC. Smith, no ano de 1953, conseguiu congelar embriões em fase de pré-implantação e provou que o congelamento é compatível com o desenvolvimento normal de ovos de mamíferos. [103]

Tycho Brahe Fernandes elucida que, nos seres humanos, as experiências tiveram início em 1960, na Austrália [104]. Não obstante, apenas em 1978 é que se obteve o primeiro grande resultado frutífero da fecundação in vitro em seres humanos: "[...] o nascimento de Louise Brown, em 25 de julho de 1978 [...]" [105], na Inglaterra.

No mesmo ano, nascia o segundo bebê de proveta do mundo, na Índia, pelo Dr. Saroj Kanti Bhattacharya, professor de ginecologia e obstetrícia da Universidade de Calcutá. Em 14 de janeiro de 1979 nascia o terceiro bebê de proveta, Alastair Montgomery, em Edimbourg (Escócia), igualmente fruto do trabalho persistente da dupla Stepoe e Edwards [que foram os responsáveis pelo primeiro bebê de proveta]. [106]

No Brasil, o primeiro "bebê de proveta" foi Anna Paula Caldeira, nascida em 07 de outubro de 1984, em São José dos Pinhais, Paraná, tendo sido a fecundação in vitro realizada pela equipe do professor Nakamura [107].

Destaca-se ainda que, em 1980, na Austrália, foi criado o primeiro banco de embriões de seres humanos congelados [108].

Tem-se conveniente, mais uma vez, grifar a relevância da crioconservação dos gametas (espermatozóides e óvulos) e dos embriões diante da influência para o êxito da técnica da fecundação in vitro. Neste diapasão, Tycho Brahe Fernandes menciona que "[...] a primeira gestação com um embrião congelado foi obtida na Austrália, no ano de 1983, por equipe dirigida pelo cirurgião Wood." [109]

Com tais resultados, as pesquisas, os estudos e as tecnologias não se estagnaram, permanecendo em contínuo processo de construção, reconstrução e desenvolvimento para o melhor aperfeiçoamento possível.

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Sobre a autora
Francieli Pisetta

- Autora do livro "Responsabilidade civil das prestadoras de serviço público: um enfoque sobre o não usuário" (Editora LTr)<br>- Autora do livro "Reprodução assistida homóloga post mortem: aspectos jurídicos da filiação e do direito sucessório" (Editora Lumen Juris)<br>- Especialista em Direito Público com habilitação para mercado de trabalho e exercício do magistério superior – pela FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau) <br>- Especialista em Direito Processual Civil com habilitação para mercado de trabalho – pela Rede de Ensino LFG (Luiz Flávio Gomes) em parceria com a UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina); - - Especialista em Direito Civil com habilitação para mercado de trabalho e exercício do magistério superior – pela FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau) e UNERJ (Centro Universitário de Jaraguá do Sul)<br>- Trabalhou como docente do Curso de Direito na UnC (Universidade do Contestado)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PISETTA, Francieli. A filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil brasileiro de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3000, 18 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20022. Acesso em: 19 mar. 2024.

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