Resumo: O presente artigo analisa a vigência da ordem sucessiva para a declaração de nascimento prevista no artigo 52 da Lei 6.015/73 à luz da Constituição Federal de 1988, e questiona sua recepção por esta.
Palavras-Chave: Registro de Nascimento, Declaração, Pai, Mãe.
INTRODUÇÃO
A lei 6.015 de 31 de dezembro de 1973 em seu artigo 52 estabelece que:
São obrigados a fazer declaração de nascimento:
1º) o pai;
2º) em falta ou impedimento do pai, a mãe, sendo neste caso o prazo para declaração prorrogado por quarenta e cinco (45) dias;
Da literalidade de tal dispositivo, extrai-se que a mãe somente estaria legitimada para declarar o nascimento do filho na falta ou impedimento do pai.
Todavia, há que se analisar este dispositivo à luz da Constituição Federal de 1988. Relembre-se que são consideradas não recepcionadas todas as normas infraconstitucionais anteriores à nova Constituição que se apresentem incompatíveis com esta, as quais ficam revogadas.
POSICIONAMENTOS
Desta análise, dois posicionamentos emergem:
1 – O primeiro, no sentido de que continua vigente a ordem estabelecida no artigo 52 da Lei 6.015/73, em que pese a igualdade prevista no artigo 5º da Constituição Federal, bem como em seu inciso I. Fundamenta-se, grosso modo, no fato de que a Constituição não igualou o que é desigual por natureza, e que a condição de parturiente da mãe não permitiria igualá-la na obrigação de declarar o registro.
Este posicionamento, encontrado nos comentários à Lei de Registros Públicos de Walter Ceneviva, parece ter sido aceito e adotado pelo legislador brasileiro ao promulgar a lei 9.053/1995.
Tal lei incluiu o §1º ao artigo 50 da Lei 6.015/73, estabelecendo a preferência pela residência do pai sobre a da mãe na determinação da competência territorial para o registro de nascimento, o que fez reafirmando a vigência do artigo 52, com o seguinte texto:
§ 1º Quando for diverso o lugar da residência dos pais, observar-se-á a ordem contida nos itens 1º e 2º do art. 52.
2 – O segundo posicionamento afasta a vigência do artigo 52 da Lei 6.015/73 por não ter sido recepcionado pela Constituição Federal que prevê igualdade entre o homem e a mulher, não cabendo mais a preferência dada ao pai sobre a mãe na legitimação para a declaração do nascimento.
Da mesma forma, por este segundo posicionamento seria inconstitucional o §1º do artigo 50 da Lei 6.015/73, por ferir a igualdade ao prever que o domicílio do pai tem preferência ao da mãe na determinação da competência territorial para o registro.
Supõe-se que a diferença entre ambos os posicionamentos está na abordagem da ordem prevista no artigo 52 da lei de registros públicos, pois quando vista como obrigação parece justificar a desigualdade de tratamento, porém, quando vista como legitimação não se sustenta em face da constituição.
Aparentemente o posicionamento que defende a não recepção do mencionado artigo 52 deve prevalecer, sob pena de se impedir um registro declarado pela mãe quando o pai é conhecido e não o faz dentro do prazo.
O mesmo se deve dizer quanto à inconstitucionalidade do §1º do artigo 50, sob pena de se impedir um registro regular por incompetência territorial do registrador do domicilio da mãe.
QUEBRA DA ISONOMIA E QUESTÃO DE CIDADANIA
A rigor, ambas as previsões consubstanciam quebra da isonomia constitucional, a qual, segundo o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, somente estaria autorizada quando atendidos três requisitos:
1) "O traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na pessoa, coisa ou situação discriminada"; atendido no presente caso, pois a diferença reside na pessoa da mulher como parturiente;
2) Deve haver "correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele"; atendido no presente caso na medida em que logo após o parto, a parturiente tem menos condição de se deslocar para declarar o nascimento, o qual deve ser realizado o quanto antes.
3) "[I]n concreto, o vínculo de correlação supra-referido [deve ser] pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, result[ar] em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público".
É este terceiro requisito que queda não atendido, afastando a possibilidade de quebra da isonomia no presente caso. Assim se verifica:
O registro de nascimento é essencial para a cidadania, como reconhecido pela Lei 9.534/1997, pela Lei 9.265/1996 e pela Ação Direta de Inconstitucionalidade nº1800-DF, na qual se afirmou que a cidadania no Brasil se expressa por meio de um conjunto de documentos e que "por detrás como pré-requisito para esse conjunto de documentos, como ‘mãe de todos’, está o registro e a certidão de nascimento sem o qual não se obtém os demais." Uma vez que a cidadania é fundamento da República Federativa do Brasil, não há como se defender que uma quebra da isonomia que possa dificultar o registro, que é essencial à cidadania, atenda a interesses constitucionalmente protegidos.
Ressalte-se, também, que o registro de nascimento é um direito humano garantido pelo artigo 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos, e que se trata de um Direito da Criança garantido pelo artigo 7º da Convenção para os Direitos da Criança, o que o torna um dever da família, da sociedade e do Estado. Diante disso, não são aceitas previsões que, sem atender a interesse maior, têm potencial de dificultar ou de impedir o registro regular.
PATERNIDADE
Poder-se-ia argumentar que as previsões legais atenderiam ao direito da criança de ter a filiação estabelecida de maneira completa no registro, na medida em que impondo prioritariamente ao pai a obrigação de registrar a criança, sempre levaria este a reconhecer a paternidade nos termos do artigo 1.609, inciso I, do Código Civil.
Todavia, com a previsão do artigo 2º da lei 8.560/92, que possibilita à mãe indicar o suposto pai e obriga o registrador ao procedimento, fica garantido o estabelecimento da filiação, mesmo sendo a mãe a declarante (sem que se mencionem outras possibilidades de estabelecimento da paternidade no registro, como procuração e anuência do pai).
CONCLUSÃO
Diante disso, entendendo-se o registro de nascimento como essencial à cidadania, como direito humano, como direito da criança, como dever da família, da sociedade e do Estado, e aceitando-se a ordem para declaração do nascimento como ordem de legitimação e não meramente de obrigação, somente o segundo posicionamento poderia prevalecer.
Concluindo-se que as disposições contidas no artigo 52 e no §1º do artigo 50 da Lei 6.015/73, as quais dão preferência ao pai no registro de nascimento, não estão de acordo com a Constituição Federal, por ferirem a igualdade de maneira não autorizada.
LEGISLATIVA
Neste sentido, para realinhar a legislação com a Constituição Federal, tramita na Câmara de Deputados o Projeto de Lei nº 817 de 2011, que soluciona a desigualdade dos dispositivos analisados com a seguinte proposta:
Art. 1º. Os itens primeiro e segundo do art. 52 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 passam a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 52............................................................................................
1º O pai ou a mãe, isoladamente ou em conjunto.
2º No caso de falta ou impedimento de um dos indicados no item anterior, o outro terá o prazo prorrogado por quarenta e cinco dias;
"(NR) ...............................................................................................
Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CENEVIVA, Walter. Lei do Registros Públicos - Comentada. São Paulo: Saraiva, 2009.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros 1998.