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Segurança jurídica e uniformização de jurisprudência

04/10/2011 às 10:22
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As Turmas do STJ com competência para julgamento de causas criminais comumente têm orientações divergentes, o que acaba por transformar o momento da distribuição de processos (principalmente habeas corpus) numa verdadeira “loteria”.

A função primordial do Poder Judiciário é a aplicação do direito em casos concretos visando à pacificação de conflitos. Nesse sentido, é de especial relevância a observância dos precedentes já firmados pelos Tribunais, especialmente pelos Tribunais Superiores, que têm função estratégica de uniformização da jurisprudência, especialmente mediante a edição de súmulas. As instâncias ordinárias, quando acatam a orientação do Superior Tribunal de Justiça quanto à interpretação do legislação infraconstitucional, trabalham em prol da uniformidade e racionalização de nosso sistema jurídico, já tão abarrotado com uma demanda hercúlea por distribuição de justiça em todos os rincões de nosso país.

Apesar de o nosso sistema judicial ser de matriz romano-germânica, não parece haver inconsistência lógica na adoção do instituto da stare decisis, oriundo da common law, que consiste, basicamente, na força vinculante dos precedentes judiciais, especialmente daquelas decisões originárias de Cortes Superiores. No Brasil, esse efeito vinculante passou a existir com o advento da EC nº 45/04, que instituiu, exclusivamente no STF e apenas sobre matéria constitucional, a Súmula Vinculante (art. 103-A, CF/88), cuja nomenclatura é auto-explicativa.

Entretanto, é salutar para o nosso sistema, que os órgãos do Poder Judiciário sigam também as orientações não formalmente vinculantes de Tribunais como o STJ e o STF, pois diante dos múltiplos litígios que se apresentam para desate, é importante que no Poder Judiciário se encontre unidade e estabilidade, que se traduzem em segurança jurídica e economia processual para os jurisdicionados.

Dessas ilações, infere-se que, a contrario sensu, as divergências jurisprudenciais são aptas a causar situações de quebra de isonomia e perplexidade, especialmente quando a casos rigorosamente idênticos do ponto de vista fático são atribuídas consequências jurídicas completamente distintas. Essa situação se torna ainda mais grave quando estão em jogo valores jurídicos caros à nossa sociedade, como, por exemplo, a liberdade.

A praxis jurídica de nosso Colendo Superior Tribunal de Justiça, especificamente na seara criminal, tem revelado, em alguns casos, uma desarmonia que é prejudicial ao sistema. As Turmas do referido Tribunal que possuem competência para julgamento de causas criminais – Quinta e Sexta – comumente apresentam orientações divergentes entre si. E muitas vezes, passam anos a fio sem que haja uma uniformização no entendimento quanto a alguns temas. Essas divergências acabam por transformar o momento da distribuição de processos (principalmente habeas corpus) numa verdadeira "loteria", pois a competência firmada (Quinta ou Sexta Turmas) já decreta previamente o sucesso ou não do pleito ali deduzido. Passemos a analisar, brevemente, dois casos concretos, entre muitos outros, que tratam o problema em debate.

Quanto à questão da prática de falta grave na execução penal (como, por exemplo, fuga, motim ou posse de aparelho celular dentro do estabelecimento prisional), a Quinta Turma possui orientação no sentido de que a prática de falta disciplinar de natureza grave interrompe a contagem do lapso temporal para a concessão de benefícios que dependam de lapso de tempo no desconto de pena, salvo o livramento condicional, nos termos da Súmula nº 441/STJ, o indulto e a comutação de pena (HC nº 185.294/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, DJe 24.08.2011). Por outro lado, a Sexta Turma possui pacífico entendimento de que a falta grave não deve ser considerada como marco interruptivo na contagem de prazo dos benefícios da execução penal (EDcl no Agr no HC nº 132.955/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 22.08.2011).

Isso quer dizer que se, por exemplo, dois presos no regime semi-aberto participam de uma rebelião e tem registradas, respectivamente, a falta grave em seus assentamentos, sendo ambos regredidos para o regime fechado, a solução para os casos será diferente conforme a distribuição do processo no STJ. Se o primeiro apenado tem seu processo distribuído na Quinta Turma, a decisão será de que ele terá que cumprir, em regra, novo lapso de um sexto da pena (art. 112, da LEP) para poder solicitar nova progressão de regime. De outra banda, se o segundo apenado tiver a "sorte" de ter seu processo distribuído à Sexta Turma do STJ, a decisão será no sentido de que ele pode, independente de qualquer novo prazo, já solicitar nova progressão de regime, pois a falta grave, diante da ausência de previsão legal, não é apta para alterar a data-base para fins de concessão de benefícios. Veja-se, então, que a dissonância na jurisprudência pode gerar situações de perplexidade, em que casos idênticos são decididos de forma distinta, culminando em ofensa ao princípio da isonomia entre os jurisdicionados.

Outro caso mais emblemático ainda diz respeito à abolitio criminis temporária do crime de posse de arma de fogo. O Governo federal, em suas campanhas pelo desarmamento, considerou temporariamente atípica a conduta de ter a posse de arma de fogo, de modo a estimular os cidadãos a entregarem pacificamente suas armas. Quanto à posse de arma de fogo de uso permitido com numeração raspada, a Quinta Turma do STJ entende que a conduta é considerada atípica apenas até 23 de outubro de 2005 (HC nº 205.469/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 21.09.2011). Por sua vez, a Sexta Turma (AgR no REsp nº 1.191.405/SC, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 27.04.2011) possui firme orientação no sentido de que a posse de arma de fogo de uso permitido, com numeração raspada ou não, é conduta atípica até 31 de dezembro de 2008, conforme interpretação feita dos arts. 30 e 32 da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento).

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Imagine-se, pois, a seguinte ilustração: dois indivíduos, Caio e Tício, em locais distintos de uma mesma cidade, são processados por, na data de 05 de julho de 2007, terem sido flagrados na posse de um revólver calibre 38 (arma de fogo de uso permitido) com numeração raspada. Os dois são condenados na pena de três anos de reclusão e recorrem ao respectivo Tribunal de Justiça. A sentença é mantida em sede de apelação. Os dois, por intermédio de seus advogados, impetram habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça. O processo de Caio é distribuído à Quinta Turma e o processo de Tício é distribuído para a Sexta Turma. Conclusão: Caio terá sua pena mantida e cumprirá os três anos de reclusão em razão da posse de arma de fogo de uso permitido com numeração raspada. Tício, por sua vez, diante do mesmo contexto fático, será absolvido.

O exemplo é hipotético, mas, infelizmente, tem ocorrido diuturnamente na praxis. Existe um mecanismo processual para solucionar tais impasses no Superior Tribunal de Justiça, que é encaminhar tais temas polêmicos para julgamento perante a Terceira Seção (que é a reunião das Quinta e Sexta Turmas), com consequente uniformização de jurisprudência e edição de súmula. É preciso que nossa Corte Superior tenha sensibilidade para resolver o mais rápido possível tais questões, que envolvem o sagrado direito de liberdade de locomoção, de modo a distribuir justiça de forma equânime, tal como anseiam os jurisdicionados de nossa pátria.

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Sobre o autor
Renan Paes Felix

Analista Processual do Ministério Público Federal. Assessor de Subprocurador-Geral da República. Especialista em Direito Constitucional pelo IDP/UNISUL. Professor de Direito Constitucional. Bacharel em Direito pela UFPB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELIX, Renan Paes. Segurança jurídica e uniformização de jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3016, 4 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20129. Acesso em: 19 abr. 2024.

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