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O necessário controle à liberdade de expressão.

Texto construído a partir da notícia criminal que envolve magistrado paulista

Leia nesta página:

O excesso na repressão a um delito ou a sua difusão exagerada pode ser mais grave do que o crime que se procura reprimir.

Em 13.10.2011, recebi por correio eletrônico uma matéria que expõe gravemente a imagem de um Juiz de Direito, a qual tem por título "Juiz briga na frente de distrito policial". [01] Então, resolvi divulgar a notícia sob outra perspectiva, a que vem me preocupando em relação à exposição exagerada de fatos e pessoas acusadas de tê-los praticado. Tal preocupação pode ser vislumbrada nas últimas publicações que venho fazendo. [02]

Da matéria em comento se extrai:

"Um juiz de 57 anos é averiguado pela polícia por suspeita de desacato, desobediência e ameaça e por dirigir sem carteira de habilitação e embriagado em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Na noite de anteontem, o magistrado (...), da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, se envolveu em uma briga de trânsito na Avenida Armando Italo Setti, na frente do 1.º Distrito Policial. Segundo os investigadores, o juiz estava aos berros, parecia agressivo e esmurrava o vidro de um carro. Ele negou todas as acusações.

Policiais que estavam de plantão no DP ouviram buzinas por volta das 22 horas. Foram até a rua e teriam visto o juiz alterado e o motorista acuado dentro do carro. Todos foram para a delegacia, após ordem do delegado.

Nesse momento, segundo policiais, o juiz respondeu: 'Você não grita assim comigo, não!'. Em outro momento, teria dito: 'Eu sou juiz! Isso não vai ficar assim, não!'. As declarações estão no boletim de ocorrência registrado por desacato, desobediência, ameaça, dirigir sem habilitação, embriaguez ao volante, difamação e também injúria".

Quando tratei das acusações que são feitas ao notável jurista argentinho Raúl Eugenio Zaffaroni, Ministro da Corte Nacional de Justiça da Argentina, trouxe a perspectiva de que ele tem em seu favor o estado de inocência. [03] Outras publicações que fiz tem essa preocupação porque o excesso na repressão a um delito ou a sua difusão exagerada pode ser mais grave do que o crime que se procura reprimir.

A notícia transcrita induz a acreditar que se trata de um Desembargador de Justiça, eis que se refere à lotação do magistrado como sendo a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, órgão próprio de 2ª instância. Embora ela apresente uma resposta do magistrado, expõe seu nome completo, idade etc. e, ao contrário, apenas insere os comentários dos policiais, sem identificá-los, induzindo ao excesso exclusivo do Magistrado.

Desacato (Código Penal, art. 331) é a injúria qualificada por ser praticada contra servidor público propter officium. Assim, é incabível a pretensão de ver o magistrado processado pelos dois crimes contra a mesma vítima, eis que o princípio da subsidiariedade impõe a absorção da injúria pelo desacato. [04] Todavia, como o motorista do outro veículo também é vítima potencial, a imputação de injúria contra o mesmo e desacato em relação aos policiais, em tese seria cabível. Não se olvide, no entanto, que se a ameaça se referiu ao condutor injuriado, a ameaça absorve a injúria. [05]

O delito de dirigir sem habilitação é diferente da infração administrativa de não portar documento obrigatório. Desse modo, sem maiores elementos e – com base na resposta do magistrado -, em princípio, tal delito não ocorreu.

A ameaça é crime de menor potencial ofensivo e o calor de eventual discussão pode retirar o elemento anímico (dolo específico ou o especial fim de agir) de "causar mau injusto grave" à vítima, expressamente contido no art. 147 do Código Penal. Também é delito de menor potencial ofensivo a "desobediência", sendo que a matéria não indica qual fato poderia ter ensejado referida imputação à conduta do magistrado. De qualquer modo, o Código Penal dispõe: "Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa". Assim, só se pode falar em desobediência se houver "ordem legal" a ser cumprida.

Difamar é imputar fato falso a outrem. É delito que se diferencia da injúria porque tem em vista a macular a honra objetiva, ou seja, o decoro da pessoa perante a sociedade, enquanto a injúria não exige a imputação de fato falso e tem em vista a honra subjetiva (aquele valor da vítima perante si mesma). Da notícia transcrita não é possível extrair qualquer fato que leve à difamação.

A "lei seca" (Lei n. 11.705, de 19.6.2008), ao meu sentir, é equivocada. Traz muitos rigores, sendo que a embriaguez ao volante constitui crime e pode ser provada por elementos externos (Lei n. 9.503, de 23.9.1997 – Código de Trânsito -, art. 277, § 2º). E, não obstante a vedação para aplicação da Lei n. 9.099, de 26.9.1995 (ex vi o art. 291, § 1º, inc. I, da Lei n. 9.503/1997), é delito afiançável, o que nos faz lembrar que a Lei Complementar n. 35, de 14.3.1979, dispõe:

"Art. 33 - São prerrogativas do magistrado: (...) II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado)".

Tenho dúvidas sobre a legalidade da atuação policial. Existem elementos na matéria jornalística publicada que levam a crer que a intervenção policial era necessária, mas não sei em que nível de serenidade ela foi conduzida, apenas podendo dizer que a exposição pública da vida privada de uma autoridade judicial pode ser uma ofensa mais grave do que o delito que se pretende noticiar.

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Temos o direito fundamental à dignidade, sendo que a aldeia global de comunicação em que o mundo se transformou tende a fragilizar a nossa personalidade jurídica, ante a possibilidade de desgastarem nossa imagem (maculando a nossa dignidade) por meio da exposição excessiva de fatos. Alguns desses fatos expostos são até verdadeiros, mas a exposição é desproporcionalmente ofensora da dignidade alheia.

Para Ferrajoli, não se deve incriminar a opinião. Todavia, "as liberdades são destinadas por suas naturezas à convivência, e toda vez que uma liberdade atenta contra outra alheia, quer dizer que essa liberdade se converteu em poder". [06] Por isso, tenho por necessária a limitação legal da liberdade de expressão, senão a dignidade poderá deixar de ser um direito fundamental material e passar a ser apenas letra morta na Constituição Federal.


Notas

  1. HADDAD, Camilla. Juiz briga na frente de distrito policial. São Paulo: Estadão, Jornal da Tarde, 12.10.2011. Disponível em <http://estadao.br.msn.com/ultimas-noticias/juiz-briga-na-frente-de-distrito-policial>. Acesso em: 13.10.2011, às 9h20.
  2. Um exemplo: MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. O excesso na repressão ao delito de porte de psicotrópico pode ser mais grave que o delito que se "reprime". Disponível em: <http://sidiojunior.blogspot.com/2011/10/o-excesso-na-repressao-ao-delito-porte.html>. Aces-so em: 13.10.2011, às 10h22.
  3. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Zafarraoni, "suas" casa de prostituição e inocência. Disponível em: <http://sidiojunior.blogspot.com/2011/08/neste-texto-procurarei-tratar.html>. Acesso em: 13.10.2011, às 9h25.
  4. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.959. v. 9, p. 424.
  5. Ibidem.
  6. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 746.
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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. O necessário controle à liberdade de expressão.: Texto construído a partir da notícia criminal que envolve magistrado paulista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3095, 22 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20697. Acesso em: 5 mai. 2024.

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