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O Supremo Tribunal Federal e a objetivação do controle difuso de constitucionalidade

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08/01/2012 às 14:07
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A mudança de paradigma é clara. As decisões em recursos extraordinários passaram a ter seus efeitos extravasando os limites subjetivos da lide apreciada. O STF passou a adotar postura diferenciada nos julgamentos dos recursos em controle difuso de constitucionalidade.

RESUMO

O presente trabalho visa uma compreensão mais apurada acerca da objetivação do controle difuso de constitucionalidade, principalmente através das inovações legislativas que passaram a exigir a demonstração de repercussão geral da questão constitucional levada através do recurso extraordinário, e da possibilidade de edição de súmulas vinculantes acerca de matéria constitucional. Ao final, busca demonstrar que esses novos institutos possibilitam a diminuição de recursos pendentes de julgamento perante o STF, sem que isso signifique falta de prestação jurisdicional por aquela Corte, permitindo que o STF exerça suas funções institucionais, primando pela unificação da interpretação constitucional.

PALAVRAS-CHAVE:Controle difuso de constitucionalidade, objetivação do controle difuso de constitucionalidade, objetivação do controle difuso de constitucionalidade e o Supremo Tribunal Federal.

SUMÁRIO:1. Introdução. 2. Supremo Tribunal Federal e o controle difuso de constitucionalidade. 2.1. Funções institucionais do Supremo Tribunal Federal. 2.2. Controle difuso de constitucionalidade. 2.2.1. Recurso extraordinário. 2.2.2. Efeitos tradicionais da decisão no controle difuso de constitucionalidade. 2.3. Crise do Supremo Tribunal Federal. 3. Inovações legislativas no âmbito do recurso extraordinário com influência nas decisões do STF. 3.1. Remédios para solucionar a crise. 3.2. Repercussão geral da questão constitucional e sua aplicabilidade. 3.2.1. Interpretação conceitual de "repercussão geral". 3.2.2. Eficácia da decisão no âmbito da repercussão geral. 3.3. Súmula vinculante e sua aplicabilidade. 3.3.1. Requisitos para a edição e legitimados da súmula vinculante. 3.3.2. Efeitos da súmula vinculante. 3.3.3. Segurança jurídica e igualdade de tratamento como efeitos da edição de súmulas vinculantes. 4. Objetivação do controle difuso de constitucionalidade e números recentes apresentados pelo STF. 4.1. Objetivação do controle difuso de constitucionalidade. 4.1.1. Decisões paradigmas da objetivação do controle difuso. 4.2. Números apresentados pelo STF após a exigência de repercussão geral e edição de súmulas vinculantes. 5. Conclusão. 6. Referências.


1. INTRODUÇÃO

Apesar de inspirado na Supreme Court norte-americana, o Supremo Tribunal Federal brasileiro não adotou em seus estritos termos a sistemática de seu paradigma. Com sua criação, o ordenamento brasileiro também importou o recurso extraordinário, instrumento recursal utilizado no controle difuso de constitucionalidade. Ocorre, contudo, que diversamente da Constituição norte-americana, a Constituição da República Federativa do Brasil é bastante ampla, tratando de muitos temas e matérias que poderiam ser regulados pela legislação infraconstitucional. Com isso, o cabimento do recurso extraordinário acaba, também, sendo bastante vasto. Enquanto a Suprema Corte norte-americana julga 130 processos por ano, aproximadamente, o STF julga mais de 100.000 processos.

Esses números demonstram a crise que o Poder Judiciário está vivendo. O STF, órgão de cúpula do ordenamento brasileiro, não tem condições de exercer com presteza suas funções porque está assoberbado de processos para julgamento. Houve verdadeiro desvirtuamento das funções desse órgão, que deveria apenas zelar pela Constituição e, conseqüentemente, pela unidade do direito. Hoje, diversamente, trata-se de mais uma instância recursal.

Uma das causas desse problema é o efeito atribuído às decisões em controle difuso de constitucionalidade, ou seja, o efeito da decisão proferida em recurso extraordinário. Tradicionalmente, estas decisões produziam apenas efeito inter partes. Sendo assim, para finalizar a prestação da tutela jurisdicional, o STF estava obrigado a proferir uma decisão em cada uma destas ações, o que acabou por gerar o acúmulo de demandas aguardando a sua apreciação.

No controle difuso de constitucionalidade, através de recursos extraordinários ou agravos em recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal (STF) decide conflitos individuais que versam sobre direitos de particulares onde teria havido ofensa a preceito constitucional.

Por ser a constituição brasileira bastante aberta e em razão da ausência de filtros previstos para seleção dos casos que efetivamente tratassem de matéria constitucional, o STF acabou por ser abarrotado de recursos para a sua análise, atuando apenas como mais uma instância recursal.

Dessa forma, a exemplo dos tribunais de segunda instância, o STF julgava cada processo olhando os fatos já ocorridos, atuando apenas para corrigir eventuais falhas processuais ou o mérito da sentença de primeiro grau ou acórdão do Tribunal. Essa postura era diversa da adotada nas ações de controle concreto de constitucionalidade, nas quais o STF julga a ação considerando os efeitos macros que a sua decisão pode gerar. Assim, sempre houve consenso de que a decisão no controle difuso de constitucionalidade tinha efeitos inter partes, e a decisão no controle concentrado de constitucionalidade tinha efeitos erga omnes.

Visando diminuir a quantidade de demandas repetitivas que chegam para apreciação do Supremo Tribunal Federal, o legislador criou dois instrumentos processuais que passaram a atuar como verdadeiros filtros processuais: a repercussão geral da questão constitucional e as súmulas vinculantes.

Com a necessidade de demonstração da repercussão geral em preliminar do recurso extraordinário, passaram a ser conhecidos apenas os recursos cuja matéria versada apresente repercussão jurídica, política, econômica ou social. Presente essa repercussão, é selecionado o processo representativo da questão e, após decidido o recurso, sua decisão deve ser reproduzida nos demais processos sobrestados.

No tocante à edição das súmulas vinculantes, o STF, mediante a aprovação de dois terços dos seus membros, em controle difuso, passou a poder editar súmula cujos efeitos vinculam todas as demais instâncias do Poder Judiciário e a Administração Pública.

Com a inclusão destes novos instrumentos processuais, verifica-se que o STF passou a ter de adotar uma postura diferenciada perante os julgamentos dos recursos em controle difuso de constitucionalidade. Passou a ter de decidir não apenas considerando os fatos descritos na demanda e a produção dos efeitos da decisão entre as partes, mas passou a ter de considerar que os efeitos dessa decisão transcenderão os envolvidos na ação.

Este fenômeno passou a ser chamando de objetivação do controle difuso de constitucionalidade e, como será demonstrado, tem conseguido resultados promissores na tentativa de uma prestação da tutela jurisdicional de forma efetiva, proporcionando segurança jurídica e isonomia entre os jurisdicionados.


2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1 FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A criação do Supremo Tribunal Federal (STF) se deu alguns meses após a proclamação da República brasileira, através do Decreto n. 510, de 22 de junho de 1890. Posteriormente, veio previsto na Constituição de 1891 [01]. O STF sempre manteve essa denominação nos textos constitucionais republicanos de 1891, 1937, 1946, 1967 e 1988, exceto na Constituição de 1934, que o alterou para Corte Suprema [02].

Foram duas as entidades que inspiraram a instituição do STF no Brasil, segundo FERREIRA: a primeira foi a Suprema Corte dos Estados Unidos, "com o seu poder imenso de judicial review"; a segunda foi a Corte que o antecedeu, no período imperial, o Supremo Tribunal de Justiça, "constituído de Conselheiros, designados dentre os juízes togados, ‘tirados das Relações por suas antiguidades’" [03].

O nosso STF foi organizado à semelhança da corte norte-americana e, em relação ao seu antecessor pátrio, foi organizado de forma diferente na sua competência e organização existente no Império Brasileiro [04].

A Constituição norte-americana de 1787 foi a primeira a consagrar um sistema com tribunal de cúpula, a Suprema Corte. Ela visava garantir o regime federativo dos Estados Unidos, até hoje sendo encarregada de unificar o direito nacional e superar os problemas da vida federal [05]. Essa Corte é vista como órgão eminentemente político, posto que seus integrantes são escolhidos por meio de disputas políticas, além da opinião pública ter forte influência sobre as decisões, bem como a opinião do próprio Congresso; e "as suas decisões geram controvérsias no governo e no país inteiro" [06]. Ademais, explica BRAGHITTONI que, pelo simples fato de serem parte integrante do Governo, os tribunais são "instituições políticas por definição" [07]. Para os EUA, portanto, é inerente ao próprio sistema a visão de seu tribunal supremo como auxiliar dos outros dois poderes na elaboração de políticas públicas, bem como na fiscalização do funcionamento dos outros poderes.

Outrossim, sua atuação não se faz através de julgamento em tese (controle concentrado de constitucionalidade), mas por meio do controle difuso de constitucionalidade. E, para analisar os casos concretos apresentados à Corte, a sistemática norte-americana funciona da seguinte maneira, conforme escorço apresentando por DAVID:

"O Supremo Tribunal dos Estados Unidos é formado por um Chief Justice e por oito Associate Justices, que participam conjuntamente no julgamento de todas as questões. Diferentes medidas são tomadas para evitar o acúmulo de causas; é necessário, em 90% dos casos, obter do tribunal um writ of certiorari, fazendo valer special and important reasons, se se quiser que o tribunal conheça de uma questão e dê a seu respeito uma decisão adequada. O Supremo Tribunal apenas aceita, aproximadamente, uma de cada doze questões que lhe são apresentadas através do certiorari, ainda que sejam suficientes quatro votos para promover a retenção de um processo. O tribunal só redige decisões em cerca de cento e trinta a cento e sessenta casos por ano; a maior parte das vezes, julga o interesse da questão insuficiente para justificar a sua intervenção e limita-se a declarar essa circunstância" [08].

Como pode ser observado na curta descrição acima, o STF não adotou o mesmo procedimento da Corte norte-americana, absorvendo apenas algumas de suas características, entre elas: não é órgão de consultas, manifestando-se apenas em causas pendentes; não se manifesta quanto às questões puramente políticas; "examina a constitucionalidade das leis, mas só declara essa inconstitucionalidade quando a lei não é conciliável com a Constituição"; e, por fim, "não revê questões alusivas à orientação da política legislativa" [09].

FERREIRA aponta uma tríplice função desse órgão no sistema político brasileiro, no âmbito constitucional. Para ele, o STF atua como "Tribunal da Federação", "Corte Constitucional" e "Tribunal ordinário" [10]. Nesta última perspectiva, função de tribunal ordinário, o STF tem tentado afastar a sua atuação como instância recursal, conforme se verá adiante.

Como Tribunal da Federação, leciona o ex-Ministro SILVEIRA que ele

"[e]xercita, como órgão de cúpula da organização judiciária nacional, sem dúvida, o múnus eminente de árbitro dos conflitos entre os Poderes, ou entre a União e os Estados-Membros, ou destes entre si, numa autêntica função de poder moderador. [...] ‘ainda que nem sempre advertida, essa função de poder moderador será a nota dominante do Supremo Tribunal Federal, em sua história, e o seu desígnio maior no futuro. De fato, o degrau que separa o antigo Supremo Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal é o de confiar-se a este a missão precípua de guarda da Constituição e de fiscalizar a constitucionalidade das leis, verificação esta que, no Império, somente cabia ao Poder Legislativo e ao Poder Moderador’" [11].

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Como Corte Constitucional, é ele "o supremo aplicador da lei e, portanto, o mais alto servidor da justiça" [12]. Cumpre ao STF, com efeito, a guarda da Constituição, carta que abriga os valores mais caros da sociedade brasileira e que rege todo o ordenamento jurídico. Com isso, se "a Constituição é pressuposto de validade e da eficácia de toda a ordem normativa instituída pelo Estado, a sua supremacia deve ser tornada realidade" [13], sendo o STF o órgão responsável pela fiscalização e controle de sua aplicação.

Conforme MARINONI e MITIDIERO, além de a Constituição guardar os valores em que se funda a sociedade brasileira, "constituindo a base axiológica de todo o ordenamento jurídico", a ela compete "um papel unificador do Direito no Estado Constitucional". "Ao Supremo, nessa quadra, outra tarefa não poderia restar que não contribuir para a unidade do Direito no Estado Constitucional brasileiro" [14]. Essa unidade do direito pelo STF se apresenta em uma dupla perspectiva: "a uma, no plano da unidade retrospectiva, alcançada pela compatibilização das decisões; a duas, no plano da unidade prospectiva, buscada pelo desenvolvimento de novas soluções aos problemas sociais" [15].

Pode-se dizer que manter a supremacia da Constituição significa que os valores por ela adotados "estarão preservados dos ataques, tanto normativos – leis infraconstitucionais e mesmo de emendas constitucionais -, quanto da aplicação de suas normas e princípios, aos casos concretos, pelos magistrados – juízes e tribunais" [16]. Nos dizeres de XIMENES, ser guardião da Constituição "implica resguardar o próprio Estado Democrático de Direito" [17].

Buscando a identificação do STF como Tribunal Constitucional [18], ROMAN sintetiza todas as funções aqui apresentadas da seguinte forma:

Função interpretativa e de enunciação da Constituição, o que equivale dizer "que a Constituição é aquilo que o STF diz que ela é, porque, afinal, ele é intérprete último da Constituição" [19].

Função estruturante, que se revela "quando o tribunal ‘promove a adequação e a harmonização formais do ordenamento jurídico, consoante sua lógica interna e seus próprios comandos relacionados à estrutura normativa adotada’" [20].

Função arbitral, que se refere "à atuação do tribunal como mediador entre os ‘Poderes’, procurando resolver os eventuais conflitos que surjam entre as entidades constitucionais" [21]. O exercício dessa função é expresso no art. 102, I, f e o, da Constituição Federal.

Função legislativa, que se refere "ao desenvolvimento pelo tribunal de atividade da qual resulta a composição inaugural de comandos com efeitos de caráter geral" [22].

Função governativa, "que decorre da constitucionalização das orientações governativas, especialmente, pelo estabelecimento de normas programáticas (normas-fim)" [23].

2.2 CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Verificamos que uma das funções do STF é atuar como Corte Constitucional, assegurando o respeito, aplicação e efetividade às normas constitucionais.

Dentro da formatação do sistema jurídico brasileiro, as normas constitucionais são dotadas de supremacia em relação às demais leis e atos normativos que integram o ordenamento jurídico. Sua composição é formada por "um conjunto escalonado de normas jurídicas, cuja norma de maior hierarquia é a Constituição Federal, que dá fundamento de validade para todas as demais normas de hierarquia inferior" [24].

Para assegurar essa preeminência constitucional, e com isso buscar a sua efetividade, foi desenvolvido um sistema de defesa, conhecido como controle de constitucionalidade. Na lição de VELOSO, "[o] controle da constitucionalidade é o principal mecanismo, o meio de reação mais eficiente, nos países de Constituição rígida, para garantir a unidade intra-sistemática, eliminando os fatores de desagregação e ruptura, que são as leis e atos normativos que se opõem ao Texto Fundamental, conflitando com os seus princípios e comandos" [25].

Ensina SIQUEIRA JUNIOR que a finalidade do controle de constitucionalidade é verificar a compatibilidade material e formal das normas com a Constituição:

"Dentro desse contexto, entende-se por inconstitucionalidade qualquer ofensa ao texto constitucional, que quanto ao processo de elaboração legislativa a ser seguido (inconstitucionalidade formal), quer quanto ao conteúdo da norma (inconstitucionalidade material). Assim, o controle de constitucionalidade tem por finalidade impedir, dentro do sistema jurídico, a existência de atos normativos contrários à Constituição e ao próprios Estado de Direito consagrado no texto constitucional. Esse é o cerne do controle de constitucionalidade e num sentido amplo do próprio direito processual constitucional" [26].

Em razão do objetivo final deste trabalho e do amplo campo de estudo deste tema, tratar-se-á com brevidade do controle de constitucionalidade, focando no controle jurisdicional, apenas como forma introdutória ao controle difuso de constitucionalidade, objeto em estudo. Assim, podemos verificar a existência de dois grandes sistemas de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e atos normativos: o controle concentrado e o controle difuso de constitucionalidade.

De forma simplista, poder-se-ia dizer que o primeiro é apreciado, em tese, como objetivo principal da ação proposta; e o segundo como pedido incidental no curso de um processo comum [27].

Leciona VELOSO, que "[o] controle concentrado dá-se por meio de ação própria, cujo objetivo é obter a invalidade da lei ou ato normativo (resolução administrativa dos Tribunais, bem como deliberações administrativas de outros órgãos públicos), independentemente da existências de caso concreto" [28]. Essa ação própria pode ser: ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação direta de constitucionalidade (ADC), ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

O controle difuso de constitucionalidade [29], diferente do controle concentrado que é analisado em ação própria, tem como característica a possibilidade de ser analisado por qualquer juiz ou tribunal, pois se apresenta em processo que discute caso concreto entre partes litigantes. Nesse contexto, no controle difuso de constitucionalidade o pedido principal não é a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, estando este presente apenas como preliminar ao julgamento do mérito. Sua declaração, contudo, se faz necessária para o desfecho do caso concreto apresentado, decidindo determinada relação jurídica [30].

Quanto a sua funcionalidade, SIQUEIRA JUNIOR explica que

"A inconstitucionalidade arguida como preliminar é analisada e decidida pelo Poder Judiciário, na medida em que seja relevante para o deslinde da causa. Nesse caso, o Poder Judiciário deixa de aplicar a lei na relação jurídica in concreto, na medida em que é considerada inconstitucional. Assim, a norma inconstitucional não é anulada ou expurgada do sistema jurídico. Somente é desaplicada, continuando válida e, portanto, obrigando terceiros. Dessa forma, o incidente de inconstitucionalidade produz efeitos entre as partes, mantendo-se a norma impugnada obrigatória em relação a terceiros" [31].

Deste breve escorço, pode-se concluir com SIQUEIRA JUNIOR, que o controle de constitucionalidade representa um importante meio para a preservação e garantia das liberdades públicas em um Estado Democrático [32].

2.2.1 Recurso Extraordinário

Da mesma forma que o STF foi inspirado pela Suprema Corte norte-americana, também o recurso extraordinário surgiu baseado no writ of error dos Estados Unidos, sendo o art. 9°, parágrafo único, do Decreto n° 848, de 1890, cópia quase literal dos textos americanos sobre esse recurso [33]. Cumpre destacar, contudo, que nosso sistema não seguiu as mesmas linhas de seu paradigma.

Este recurso extremo é o principal instrumento utilizado para acionar o STF em controle difuso de constitucionalidade, disposto no inciso III do art. 102 da CF, in verbis:

"Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

(...)

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição;

d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal".

Assiste aos cidadãos, indistintamente, o direito de ver reconhecida a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, pela via difusa, para a preservação de seus interesses individuais. Ocorre que, dada a ampla conformação do dispositivo em apreço, é cabível a interposição do recurso em um grande número de causas. "Inclusive aquelas de pouquíssima importância, seja para o país, seja, até mesmo, eventualmente, para as próprias partes" [34]. Isto porque, conforme ROMAN, tendo em vista o conteúdo e as matérias reguladas pela Constituição Federal brasileira, "toda aplicação do Direito supõe potencialmente uma aplicação constitucional" [35].

O recurso extraordinário é um recurso constitucional utilizado para dar interpretação uniforme à norma constitucional de forma ampla e para todos em situação semelhante. Nele não é cabível apreciar matéria de fato [36], por não se tratar de mecanismo para continuar a discussão da lide entre as partes. Neste recurso deve-se analisar apenas as questões de direito, após esgotadas todas as possibilidades de recurso no tribunal de origem [37].

CASTILHO ensina que o recurso extraordinário destina-se "à estabilização da jurisprudência, à proteção das leis e da Constituição e à pacificação da interpretação em benefício da ordem e segurança jurídica e da paz social", não podendo ser utilizado como mecanismo de proteção do interesse particular da parte interessada [38].

A função que é atribuída ao recurso extraordinário, consoante THEODORO JUNIOR, é a de propiciar ao STF meio de exercer seu encargo de guardião da Constituição, e com isso fazer com que seus preceitos sejam corretamente interpretados e fielmente aplicados. "É a autoridade e supremacia da Constituição que toca ao STF realizar por via dos julgamentos dos recursos extraordinários" [39].

"[...] na medida em que qualquer questão dentre as previstas pode ser discutida por tal recurso, sem nenhum critério qualitativo que as discrimine, a importância dos julgados – e, por conseqüência, do próprio Tribunal – também se torna minorada. Em vez de tribunal máximo, de julgador das linhas mestras de orientação da jurisprudência, o Supremo se torna mais uma instância – e apenas mais uma mesmo. De ‘guardião da Constituição’ torna-se mera ‘3ª instância’" [40] (destaques do autor).

O recurso extraordinário tem importância inquestionável no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro. É instrumento de garantia dos direitos individuais e coletivos e remédio contra inconstitucionalidades praticadas pelos demais órgãos judiciários da República. Não se trata de mais um recurso ordinário no sistema recursal brasileiro, mas "o remédio de cunho político-constitucional (seus pressupostos não estão na lei processual) que permite ao STF dar cumprimento à elevada missão de guarda da Constituição (CF, art. 102, caput)" [41].

2.2.2 Efeitos tradicionais da decisão no controle difuso de constitucionalidade

Conforme acima explanado, o direito brasileiro adota tanto a forma difusa quanto a forma concentrada de controle de constitucionalidade. A primeira delas tem a marca do subjetivismo (difuso) e a outra a marca do objetivismo (concentrado) [42].

A alegação de inconstitucionalidade, no controle difuso, não é o pedido principal, mas constitui questão prejudicial suscitada incidentalmente no processo, por ser relevante e necessária para a verificação se aquela lei supostamente inconstitucional será, ou não, aplicada ao caso concreto [43].

VELOSO ensina que a consequência da declaração de inconstitucionalidade em controle difuso é a não-aplicação da lei ou dispositivo impugnado na ação proposta em juízo, não havendo a invalidação da lei de modo geral, para todos. Segundo este autor, "[a] decisão afasta, apenas, a sua incidência no caso para o caso e entre as partes. A eficácia da sentença é restrita, particular, refere-se, somente, à lide, subtrai a utilização da lei questionada ao caso sob julgamento, não opera erga omnes". Desta forma, tem-se que a lei não perde a sua força obrigatória com relação a terceiros não participantes do processo analisado. A lei continua em vigor, não perdendo a sua força obrigatória com relação a terceiros [44].

Elucidando essa restrição de efeitos às partes participantes do processo, SANTOS afirma que "o controle difuso é feito à luz de casos concretos e, como tal, produz efeitos apenas inter partes. Já no controle concentrado, ao menos no Brasil, não pressupõe caso concreto/individualizado, daí sua decisão operar efeitos erga omnes, tratando-se de uma análise em abstrato" [45].

Na configuração original do controle difuso de constitucionalidade, com base no art. 52, inciso X, da Constituição Federal, uma vez declarada a inconstitucionalidade de uma lei de forma incidental, para que essa declaração possa ter eficácia erga omnes, é necessária a manifestação volitiva do Senado Federal. "O Senado Federal ocupa importante função nesse contexto, na medida em que atua para conferir às decisões do Supremo Tribunal Federal, proferidas em âmbito incidental, a desejável eficácia erga omnes" [46].

Para levar ao conhecimento do Senado Federal, o STF oficia àquele órgão acerca de seu entendimento acerca da inconstitucionalidade de determinada lei, encontrado na apreciação de caso concreto. Explica TAVARES que este foi "mecanismo criado pela Constituição de 1934, procurando evitar um atrito entre os poderes e, ademais, inserida em um contexto no qual apenas existia o controle difuso-concreto (salvo a representação interventiva, que se pode considerar um modo de controle concentrado-concreto)" [47].

Nos termos do dispositivo constitucional, a resolução do Senado objetiva "suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal". Assim, conforme lição de TAVARES, "a resolução do Senado incide na plano da eficácia da lei, não em sua validade ou existência. A resolução não se presta a reconhecer a invalidade da lei. Ao contrário, ela deve partir da invalidade, reconhecida em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal, para alcançar a lei no plano de sua eficácia" [48].

Segundo este autor, com a resolução do Senado, a lei não pode mais ser aplicada por qualquer outro tribunal, perdendo a sua eficácia em caráter definitivo, estando o Senado Federal, inclusive, impedido de reconsiderar a sua posição [49].

Quanto à extensão dos efeitos da resolução do Senado, há divisão da doutrina. Conforme apontado por VELOSO,

"Alguns acham que a decisão do Senado tem eficácia ex nunc, semelhante à da revogação, produzindo efeito, portanto, após a sua promulgação, não prejudicando situações jurídicas constituídas anteriormente, com base na lei ou ato julgado inconstitucional. Outros pretendem que a suspensão da execução da norma tem eficácia ex tunc, apanhando o preceito inconstitucional desde o seu nascimento, e tornando sem efeito todos os atos praticados sob a égide do mesmo" [50].

Conforme será demonstrado adiante, em razão de algumas alterações legislativas e da nova postura do STF, a necessidade de resolução do Senado Federal para que haja efeito erga omnes à declaração de inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo está sendo revista.

2.3 CRISE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Após a promulgação da Constituição de 1988, a crise numérica que incidia sobre o recurso extraordinário se agravou. MENDES afirma que embora "se afigure correta a tese segundo a qual o sistema direto passa a ter precedência ou primazia, é verdade também que é exatamente após a Constituição de 1988 que se acentua a crise numérica do Supremo Tribunal Federal". Para este autor, essa "crise manifesta-se de forma radical no sistema difuso, com o aumento vertiginoso de recursos extraordinários (e agravos de instrumento interpostos contra decisões indeferitórias desses recursos)" [51].

Conforme mencionado outrora, a Constituição brasileira é tão ampla, que a probabilidade de uma decisão judicial contrariar algo ali contido é bastante grande. Ela caracteriza-se por ser analítica, detalhista e longa, veiculando matérias que poderiam ser reguladas por leis infraconstitucionais [52]. Com isso, ela também ampliou consideravelmente "o leque de questões permissíveis de interpelação junto ao STF via Recurso Extraordinário e os respectivos Agravos de Instrumentos, quando aqueles não são acolhidos" [53].

Acerca do assunto, o Min. MENDES, ex-presidente do STF, considera que:

"A explicação para a explosão numérica verificada sob a Constituição de 1988 não é única. É verdade que a massificação das demandas nas relações homogêneas é um fator decisivo para essa crise. As discussões que se encetaram em determinado período sobre planos econômicos, sistema financeiro de habitação, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, índices de reajuste do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS, podem explicar com certa plausibilidade a multiplicação de demandas, especialmente em um modelo que trata cada controvérsia judicial instaurada como um processo singular. A falta de um mecanismo com caráter minimamente objetivo para solver essas causas de massa permite que uma avalanche de processos sobre um só tema chegue até ao STF pela via do recurso extraordinário. As defesas por parte do Tribunal para essas causas pareciam ainda mais tímidas" [54].

Em um primeiro momento, quando a Constituição de 1988 criou o recurso especial, ela pretendia diminuir a quantidade de processos que subiam ao STF, deixando para este apenas o seu papel de julgar as questões constitucionais. Não foi este, contudo, o resultado alcançado, posto que não se criou, juntamente com esse novo recurso, um mecanismo de seleção das causas que poderiam ser julgadas pelo STF. A conseqüência daí advinda, conforme observação de BRAGHITTONI, foi que "em pouco tempo, o STJ já estava tão assoberbado pelo novo recurso quanto o STF, e ainda tomando muito tempo do trabalho dos presidentes das cortes locais, que têm de receber esses recursos" [55].

Disto tem-se que o STF continuou sendo uma terceira instância, como também se tornou o STJ. "A justificativa do duplo grau de jurisdição, de que o cidadão se contentaria com um único julgamento, parece se propagar para um novo grau, já que também o segundo não seria suficiente" [56].

Os números apresentados pelo STF demonstram bem essas afirmações. Dados referentes ao ano de 2000 apontam que foram distribuídos 29.196 recursos extraordinários e 59.236 agravos de instrumento. Apenas estes dois recursos representam um total de 88.432 processos, perfazendo 97,4% do total de processos distribuídos, sendo que destes, apenas o agravo de instrumento representa 65,2% dos recursos [57].

Durante o ano de 2007, chegaram ao STF 119.957 processos, dos quais 106.805 foram autuados e 111.803 distribuídos aos relatores. Os processos registrados à Presidência somaram 4.722. Em 2006, os números foram os seguintes: 127.540 protocolizados, 129.079 autuados, 116.215 distribuídos e 1.666 registrados à Presidência [58].

Nesse mesmo ano de 2007, deram entrada no STF 48.837 recursos extraordinários. Aqui, relevante a consideração feitas por MORAIS:

"Considerando-se toda a demanda anterior, todas as demais competências exercidas pela Corte e o fato de que a Corte conta com apenas 11 ministros, pode-se ter uma dimensão do tempo que se demora para que o jurisdicionado alcance uma decisão definitiva de acordo com a Constituição neste sistema de controle de constitucionalidade, sendo que a crença - ou melhor, o descrédito no Poder Judiciário seria ainda maior no caso de demandas com posicionamento já pacificado pelo próprio STF em demandas anteriores" [59].

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, apontados por FUCK, considerando-se as demandas do âmbito federal, estadual e trabalhista, estima-se que há mais de 67 milhões de processo em tramitação no Poder Judiciário brasileiro. Todos eles potenciais recursos direcionados ao STF [60].

Eis um cálculo apresentando por BRAGHITTONI: "A média dos últimos anos, como visto, ficou na expressiva (para não dizer assustadora) cifra de 100.000 julgamentos por ano, o que significa mais de 9.000 por ministro. Se não houver um único dia de descanso, e os ministros trabalharem em todos os 365 dias do ano, terão uma média de quase 25 por dia!..." [61].

Na lição de XIMENES, estes dados demonstram que o Supremo gasta muito mais tempo com agravos de instrumento, cabível quando não for admitido o recurso extraordinário no tribunal de origem, do que com ações diretas de inconstitucionalidade, que tem mais afinidade com a sua função máxima de guardião da Constituição [62].

O STF precisa julgar praticamente todos os assuntos apresentados. Por ter de julgar um grande número de causas, ele acaba impedido ou encontra dificuldades para analisar com qualidade e profundidade os hard cases, como a recente questão das pesquisas científicas com embriões humanos.

"Se tivesse um número menor de causas, o Supremo poderia se dedicar mais a elas. Se tivesse um número menor de causas, o Supremo seria mais cobrado pelo que julgasse em cada uma delas. (É realmente difícil que o povo, que paga os salários dos Ministros para que julguem, acompanhe o que eles julgam, se o volume de causas ultrapassa as dezenas de milhares!). Podendo escolher quais causas são mais importantes para o país [...], o Supremo poderia, com mais eficiência, auxiliar a determinar as grandes diretrizes que precisam ser tomadas" [63] (destaques do autor).

MARINONI e MITIDIERO afirmam que todos têm direito a um processo justo, a um devido processo legal processual, conforme o art. 5°, XXXV, da CF [64]. Para eles, isso implica organização de procedimentos capazes de viabilizar a efetiva tutela jurisdicional [65]. "O direito a um processo justo tem de levar em conta, necessariamente, o perfil judiciário brasileiro. Vale dizer: tem de ter presente as normas de organização judiciária, dentre as quais se destacam aquelas que visam a delinear a função que se acomete aos tribunais superiores em nosso país e a maneira como essa vai desempenhada" [66].

O direito a um processo justo é termo amplo que engloba, entre outras coisas, ter um Judiciário organizado. A delimitação da competência do STF é imprescindível para que este preste a tutela jurisdicional adequada à sua função, que é a de guardião da Constituição.

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Sobre a autora
Claudia Luiza da Silva Matos

Advogada em Curitiba (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS, Claudia Luiza Silva. O Supremo Tribunal Federal e a objetivação do controle difuso de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3112, 8 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20769. Acesso em: 2 mai. 2024.

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