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O observatório judiciário de Ronald Dworkin.

O império do Direito e o conceito de integridade

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13/01/2012 às 17:52
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O Direito como integridade pressupõe que o juiz consciente de sua função deve apreciar vários critérios, dentre eles as circunstâncias do caso concreto, a moral política da comunidade e a opinião das instituições que estão ou devem estar coerentes com o grupo social e a constituição.

Resumo: o artigo transforma metodologicamente o livro O império do direito de Ronald Dworkin em um programa de pesquisa institucional qualificado para produzir conhecimento crítico sobre os processos judiciais no cotidiano do Poder Judiciário, refutando a influência do convencionalismo e do pragmatismo jurídico. O artigo contribui desse modo na ampliação do debate das ideias desenvolvidas por Ronald Dworkin propondo uma representação metodológica inédita sobre o livro O império do direito que é testada e bem sucedida, empiricamente, no estudo das decisões judiciais.

Palavras-chave: integridade; programa de pesquisa; juiz ideal.

Summary: the article makes the book methodologically Law’s empire Ronald Dworkin in a qualified institutional research program to produce critical knowledge about the judicial proceedings in the daily of the Judiciary, refuting the influence of legal conventionalism and pragmatism. The article contributes to the wider debate of ideas developed by Ronald Dworkin proposing a novel methodological representation on the book Law’s empire that is tested and successful empirically in the study of judicial decisions.

Keywords: integrity; research program; ideal judge.


Introdução

Vários autores nacionais têm procurado compreender e simplificar nos últimos treze anos o conteúdo do livro O império do direito de Ronald Dworkin, sobretudo a partir do momento em que esta obra foi traduzida e disponibilizada editorialmente para o grande público brasileiro. Nesse período, entretanto, chama a nossa atenção o fato de que a produção acadêmica resultante das tentativas "hercúleas" dos autores nacionais aqui selecionados não formalizou tecnicamente a estrutura epistemológica do conceito de integridade como um todo, muito menos aprofundou a importância do arcabouço weberiano que faz parte, implicitamente, da fórmula de pensamento dessa virtude política definida pelo autor Ronald Dworkin.

Diante dessa lacuna epistemológica, que em nossa avaliação é um tema relevante de pesquisa ainda não enfrentado satisfatoriamente pelos críticos nacionais, procuramos acrescentar a nossa contribuição demonstrando que o conceito de integridade possui uma estrutura metodológica qualificada para integrar os princípios transcendentes com os princípios práticos do direito, contando oportunamente com a ajuda de um juiz ideal de nome Hércules, que hipoteticamente é dono de um conhecimento perfeito sobre os critérios de ligação que podem resolver a demanda constitucionalista apontada pelo autor Ronald Dworkin no livro O império do direito.

O juiz ideal Hércules apresenta uma personalidade híbrida, incluindo vários atributos de natureza moral, existencialista, hermenêutica e democrática. Por essa razão, Hércules é dotado de uma consciência crítica, reflexiva e metódica especializada para juntar o real do cotidiano judiciário com o ideal da constituição. Além disso, Hércules tem poderes argumentativos extraordinários que lhe possibilitam superar simultaneamente a influência cultural do convencionalismo e do pragmatismo jurídicos.

Em nossa hipótese de trabalho, o existencialismo do conceito de integridade recomenda ao juiz que ele valorize o tempo presente como fonte imediata de inspiração jurídica e não mais exclusivamente o passado ou futuro conforme propõem o convencionalismo e o pragmatismo jurídicos em casos difíceis ou obscuros. Do ponto de vista moral, o desafio do conceito de integridade consiste fundamentalmente em orientar a realização da justiça e da equidade de forma simultânea, evitando que a maioria da comunidade tome decisões injustas sobre os direitos individuais no julgamento ou efetivação das políticas públicas (DWORKIN, 2007, p. 214; 215. Consequentemente, o juiz nesse quadro hipotético possui não só responsabilidade técnica, mas também moral e política sobre a garantia da justiça e do bem comum em relação aos cidadãos e à comunidade nacional. Além disso, no aspecto democrático "cada ponto de vista deve ter voz no processo de deliberação, mas a decisão coletiva deve, não obstante, tentar fundamentar-se em algum princípio coerente cuja influência se estenda então aos limites naturais de sua autoridade" (ibid., p. 217). De acordo ainda com Dworkin (ibid., p. 228), uma sociedade que aceita a integridade como virtude política "se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade especial num sentido que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva". Para se defender o princípio legislativo da integridade, por exemplo, "devemos defender o estilo geral de argumentação que considera a própria comunidade como um agente moral" (ibid., p. 227).

Dworkin considerou no livro O império do direito que o processo da integridade é como se fosse um "veículo para transformação orgânica" da comunidade, mesmo que este processo nem sempre seja eficaz. O autor reconheceu, por outro lado, que o processo da integridade é menos eficiente quando as pessoas divergem, "como é inevitável que às vezes aconteça, sobre quais princípios são de fato assumidos pelas regras explícitas e por outras normas de sua comunidade" (ibid., p. 229). Positivamente, entretanto, o conceito de integridade contribui, segundo Dworkin, para aumentar a eficiência do direito, pois a partir do momento em que as pessoas reconhecem que são governadas não só por regras explícitas estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas sim por quaisquer outras regras que decorrem dos princípios que essas decisões pressupõem então:

[...] o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se, organicamente, à medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos de conflito.

A estrutura principiológica do conceito de integridade reúne uma série de princípios transcendentes ou fundamentais - responsabilidade, liberdade, igualdade, dignidade, fraternidade e legitimidade de coerção do Estado - que devem ser integrados, por sua vez, com os princípios operacionais ou práticos de natureza legislativa, jurisdicional e processual do direito (ibid., p. 212). Essa integração prático-transcendente dependerá sempre da atitude sintetizadora do juiz. Nesse sentido, a melhor estratégia para se conhecer os efeitos extremos dessa integração consiste em incluir a participação do juiz Hércules, que metodologicamente é uma hipótese auxiliar da atividade programática.

No sistema de valores do conceito de integridade o ideal de autogoverno apresenta um tópico especial que deve ser mencionado nessa parte introdutória. A observação desse aspecto, de acordo com o autor, "vai nos levar à nossa discussão principal de legitimidade e de obrigação política" (ibid., p.230). Conforme definiu Ronald Dworkin (ibid., p. 230) nesse sentido, "a integridade expande e aprofunda o papel que os cidadãos podem desempenhar individualmente para desenvolver as normas públicas de sua comunidade, pois exige que tratem as relações entre si mesmos como se estas fossem regidas de modo característico e não espasmódico, por essas normas". Ao mesmo tempo, "a integridade [...] promove a união da vida moral e política dos cidadãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando os interesses de ambos entram em conflito que interprete a organização comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania" (ibid., p. 230).

Outra característica marcante desse sistema de valores ou estrutura principiológica deste conceito de trabalho é que "a integridade infunde às circunstâncias públicas e privadas o espírito de uma e de outra, interpenetrando-as para o benefício de ambas. Essa continuidade tem valor prático e indicativo, pois facilita a mudança orgânica que já mencionei há pouco, como uma vantagem prática" (ibid., p. 230).

No processo de trabalho conceitual da integridade o que se espera do juiz e de outros agentes do direito é que suas decisões sejam coerentes, abrangentes, adequadas, justificáveis, criativas e íntegras. Por exemplo, "[...] Cada estado federado fala com uma só voz, ainda que esta não esteja em harmonia com a de outros. Em um sistema federal, porém, a integridade impõe exigências às decisões de ordem superior, tomadas em nível constitucional, sobre a divisão do poder entre o nível nacional e os níveis locais" (DWORKIN, 2007, p. 225-6). Completa ainda o autor (ibid., p. 264) afirmando que o critério da coerência é tradicionalmente associado com a repetição de decisões anteriores de modo mais fiel ou precisamente possível. Entretanto, a coerência no domínio da integridade diz respeito, para Dworkin, com a articulação de princípios e não de regras ou de exemplos passados.

A integridade é uma norma muito mais dinâmica e radical do que parece inicialmente, explicou Dworkin, porque incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo na busca da coerência com algum princípio fundamental (ibid., p. 265). Uma interpretação bem-sucedida não deve tão somente adequar-se à prática que interpreta; deve também justificá-la. Portanto, as decisões só podem ser justificadas desenvolvendo-se algum sistema geral de responsabilidade moral que se pudesse considerar como um atributo dos membros de uma comunidade, no sentido de não prejudicar os demais. Nesse sentido, Ronald Dworkin (ibid., p. 264) considerou que:

A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo.

Em suma, o conceito epistemológico ou programático da integridade reúne uma série de proposições de natureza metafísica, metodológica, axiológica, teórica, pragmática e contextual que podem ser resumidas inicialmente do seguinte modo:

- No aspecto individual, a integridade é um comportamento sintético do juiz que possui atributos da filosofia moralista, existencialista, hermenêutica e democrática.

- Institucionalmente, a integridade é um conceito de trabalho encontrado no cotidiano dos Poderes Judiciário e Legislativo.

- A integridade é uma fórmula de pensamento inventada por Ronald Dworkin usada para descrever e avaliar a ação institucional dos juízes num determinado jogo principiológico.

- A integração prático-transcendente dos princípios depende da iniciativa criteriosa e filosófica de um juiz humano produzindo conhecimento especializado sobre a prática judicial representando virtualmente uma comunidade - ou cultura judiciária - de princípios.

- A integridade se distancia obrigatoriamente de dois extremos indesejáveis: o convencionalismo e o pragmatismo jurídicos.

- A integridade é um processo de releitura constitucional que utiliza o método da interpretação construtiva semelhante ao que é praticado nos estudos literários.

- A integridade valoriza constitucionalmente a liberdade, igualdade, fraternidade, legitimidade, responsabilidade, legitimidade e a dignidade dos cidadãos no âmbito do direito e da política. Todos esses princípios são transcendentes ou superiores no esquema de raciocínio de Ronald Dworkin.

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- Da mesma forma existem princípios práticos representados pelos princípios jurisdicional, legislativo e do devido processo legal; esses três princípios são operacionais e inferiores em relação aos princípios transcendentes.

- Nessa estrutura principiológica abstraída pelo autor, a integridade é um princípio prático-transcendente; ou seja, ela sintetiza os princípios práticos com os princípios transcendentes. Em outras palavras, é um princípio intermediário ou integrador do direito.

- A ligação principiológica realizada pelo princípio da integridade desenvolve seis critérios de trabalho: coerência, adequação, abrangência, criatividade, justificação e integridade do juiz.

- O programa de pesquisa da integridade apresenta uma teoria crítica que julga a presença de outras teorias concorrentes na prática judicial.

- Este programa de pesquisa é um modo de produção de conhecimento juspolítico e pode realizar duas tarefas primordiais: diagnósticos e prognósticos dos processos legais, ou mais precisamente, descreve, interpreta, especula e transforma as informações jurídicas e judiciárias disponibilizadas pelo pesquisador.

- Idealmente, a integridade combina a estrutura principiológica do direito com o indivíduo (o juiz Hércules) proporcionando uma integração ou correlação positiva gerando conhecimento novo que indica como surge ou surgiria objetivamente uma comunidade de princípios (ou cultura principiológica) através da prática judicial.

- Vários fatores contribuem para a ausência da integridade.

- Sobrecarga de trabalho do juiz; corrupção institucional; desonestidade; falta de tempo; engajamento político-partidário; cultura convencionalista e pragmatista; massificação administrativa da lei; negação da autonomia e da criatividade do juiz; autoritarismo político e tecnicismo representam as forças centrífugas que contrariam a personalidade do juiz ideal Hércules, dificultando o aparecimento natural ou espontâneo do princípio convergente da integridade no cotidiano do Poder Judiciário.

- Conhecendo essas limitações da realidade, Ronald Dworkin inventou um juiz híbrido, com poder argumentativo extraordinário, objetivando saber hipoteticamente até onde poderia chegar o princípio da integridade se Hércules concretamente atuasse na composição de um justo processo legal do ponto de vista da totalidade constitucional.


2 Revisão bibliográfica

Vários autores nacionais, como Botelho (2008) entre outros, simplificam a teoria da integridade afirmando que Dworkin é um hermeneuta preocupado fundamentalmente em criar algum modelo de interpretação que seja democrático e inclusivo. Dworkin teria criado nesse sentido um juiz fictício, pleno de habilidades, de sabedoria, de paciência e de perspicácia sobre-humanas, o que lhe permitiria finalmente realizar uma leitura coerente do direito, maximizando a constitucionalidade e as habilidades filosóficas de certo tipo ideal de juiz dificilmente encontrado no Poder Judiciário.

Botelho observou ainda que vários autores questionam a utilidade do juiz Hércules, afirmando que ele seria apenas uma abstração idealista sem maiores consequências sobre a realidade. Nessa direção, Dworkin teria construído um sistema de ideias como se fosse produto de uma pessoa coerente e íntegra moralmente, mas isso não teria validade empírica para ser usada no direito.

Nesse ponto, Botelho avaliou que Ronald Dworkin foi longe demais com a sua idealização, divorciando-se da realidade contingente e histórica do direito. Tudo aquilo que Dworkin escreveu no seu volumoso livro existiria tão somente na medida em que Hércules não atua na realidade; é pura idealização, enfatiza o analista.

O que acontece na realidade, verdadeiramente, é que os juízes estão inseridos no contexto histórico e sofrem sérias limitações de tempo e de conhecimento, e é exatamente nesse quadro que eles vão executar as suas atividades interpretativas.

Por isso mesmo, Botelho admitiu que a melhor referência para estudar as práticas democráticas e judiciárias é Habermas, pois ele atribui poder aos vários participantes do processo argumentativo do direito no sentido de que possam construir consensos e estabelecer conteúdos paradigmáticos; e não a um único juiz, como propõe Dworkin.

Na opinião do analista Botelho, a decisão judicial deve ser um procedimento público argumentativo, no qual todos devem ter acesso de forma livre e sem coerções internas e externas. A decisão judicial decorre nesse sentido da consciência de que a lei é fruto de uma decisão racional construída em processo público argumentativo.

Em outra direção, Lima (2006) afirmou em sua dissertação de mestrado que Ronald Dworkin elaborou uma teoria baseada nos direitos individuais, enfatizando principalmente o direito à igual consideração e ao respeito, que deveriam ser triunfantes sobre o princípio clássico da maioria.

Para Dworkin, originalmente, nenhuma determinação política ou coletiva poderia triunfar sobre um autêntico direito individual. Dworkin sustentou nesse sentido a tese de que os objetivos sociais serão apenas legítimos se respeitarem os direitos dos indivíduos, diferentemente do positivismo, que se preocupa com a legalidade dos direitos.

Para Dworkin, é preciso juntar os direitos legais com os valores morais. Por conseguinte, ele argumentou que a garantia dos direitos individuais é a função mais importante do sistema jurídico e judiciário.

O conceito de integridade consiste na reunião coerente da equidade, da justiça e do devido processo legal. Consequentemente, diante dessa trilogia, aumenta sobremaneira a responsabilidade pública dos decisores do direito, de acordo com o modelo inventado por Dworkin.

Refutando o principio da discricionariedade, Dworkin afirmou que o poder criativo do juiz fica atrelado ao passado - à retroatividade da lei por meio da analogia - ou simplesmente reproduzindo o sistema de regras válidas na comunidade.

Dworkin ressaltou, por outro lado, que os juízes se deparam sempre com princípios, dentro e fora do sistema, e preocupam-se basicamente com o tempo presente. O processo judicial não é para Dworkin uma máquina lógica, produtora de verdades, pois a cada momento os decisores do direito sentem necessidade de se comportar como seres morais, imaginando que o Estado e a comunidade seriam igualmente agentes morais.

Ainda de acordo com Lima (2006), a teoria da integridade de Dworkin pretendeu descobrir até que ponto os juízes têm diante de si caminhos abertos para aperfeiçoar o direito, ao mesmo tempo em que eles buscam estratégias que representam a virtude da fraternidade republicana.

Outra possibilidade crítica é apresentada pelo autor Dawe Junior (2008), que considerou radicalmente que a obra O império do direito é falaciosa, enganosa e constitui um "gênio maligno" reproduzindo-se aqui uma expressão crítica de René Descartes.

Do começo ao fim de sua dissertação, Dawe Junior criticou o livro de Ronald Dworkin mostrando que se trata de uma obra surreal, que não tem nada a ver com a realidade ordinária dos fatos jurídicos e judiciários.

Nesse sentido, Dawe Junior foi mais além, e denunciou que nada do que foi dito por Dworkin existe no mundo, nem mesmo nos Estados Unidos. Por exemplo, a comunidade de princípios é algo absurdamente concebido e indemonstrável racionalmente. Além disso, não se pode aceitar que os juízes estejam se tornando agentes kantianos visto que a moralidade para Kant fica originalmente fora do reino do direito; na prática, portanto, a moral não tem validade jurídica a priori, o que desautoriza conceitualmente o seu uso aleatório por cada juiz. Outra crítica apresentada contra o modelo de Dworkin é que ele seria monocrático e individualista, apostando todo o processo judicial na decisão de um único juiz.

Segundo Dawe Junior, a teoria de Ronald Dworkin preferiu atribuir menos valor à "norma" e mais aos princípios; dessa maneira a teoria desse autor introduziu um grau elevado de incerteza sobre os resultados das sentenças devido à prática subjetivista dos decisores. Enfaticamente, Dawe Junior alertou que os juízes não estão autorizados a transcender a lei e a julgar moralmente; por isso mesmo os princípios morais que surgem do lado de fora do sistema jurídico serão obrigatoriamente neutralizados e invalidados por instituições reais e não imaginárias.

No comentário de Dawe Junior, na realidade existe corrupção, defeitos de linguagens nos textos jurídicos, burocratismo, sobrecarga de trabalho, desvios de comunicação, autoritarismo do Estado, desinformação, etc., que invalidam radicalmente a figura do juiz Hércules usando o princípio da integridade ou da moralidade política.

Reforçando essa visão crítica, Dawe Junior considerou que a integridade é um absurdo, pois não é verdadeira, nem contingente, nem palpável, nem empírica. É, segundo ele, "uma teoria desnecessária".

Dawe Junior questionou, por exemplo, como Ronald Dworkin poderia falar de isonomia, igualdade e integridade num país governado pelo presidente Bush e pelas fraudes eleitorais e políticas arbitrárias?

Concluindo a sua análise crítica, Dawe Junior afirmou que a teoria da integridade não ajuda, atrapalha! Ironizou inclusive a respeito da confusão filosófica criada por Dworkin ao querer introduzir o reino da moral (que é individualista ao extremo) no reino ou império do direito (que é comunitarista).

Diante dessas críticas, o autor Dawe Junior concluiu que a teoria da integridade não possui nenhum valor científico, pois fecha os olhos para os conflitos e a impureza da realidade. O autor finaliza a sua crítica observando que as alegações que Dworkin ofereceu ao direito versam sobre fenômenos e sobre uma realidade inobservável.

No artigo do autor Arêas (2005), por outro lado, não encontramos uma leitura falsibilista do conhecimento por completo, como realizou anteriormente Dawe Junior (2008) contrapondo o realismo e ceticismo político contra o idealismo de Dworkin; descritiva ou estagnante como fez Lima (2006) reescrevendo as proposições do livro O império do direito. Particularmente na crítica do autor Arêas foi realizada uma abordagem surpreendentemente degenerativa do conhecimento da integridade aplicado ao estudo da súmula de efeitos vinculantes. Afirmamos surpreendentemente porque o autor no começo do seu trabalho exaltou a teoria da integridade, mas acabou concluindo que esse conceito não funciona diante do instituto da súmula vinculante, chegando ao ponto inclusive esse mesmo autor de negar o espírito de rebeldia constitucional do juiz Hércules que, como se sabe, é adversário perpétuo do convencionalismo jurídico no tempo e no espaço.

No primeiro momento, Arêas reescreveu a teoria da integridade contra o convencionalismo, porém, na parte final do seu artigo ele argumentou que o juiz Hércules seria, em outras palavras, derrotado pelo convencionalismo da súmula vinculante, sem direito à resistência no presente e no futuro. Arêas não considerou, por exemplo, que quando existe algum ponto nebuloso, obscuro ou controverso na súmula vinculante aí surge um espaço convidativo para Hércules começar suas atividades constitucionais, democráticas, moralistas, hermenêuticas e existencialistas do direito. Conforme definiu o próprio Dworkin, no capítulo intitulado As leis, não existem casos difíceis, nem fáceis no direito, mas casos obscuros, contestáveis, duvidosos, que demandam uma metodologia judiciária de esclarecimento, argumentação, coerência, abrangência e de adequação através da integridade do juiz. Entretanto, de acordo com a observação empírica de Arêas, a súmula vinculante impede, a priori, o florescimento do princípio da integridade, pois a Emenda Constitucional n. 41, de 2005 declara que os juízes são forçados por Lei a seguirem o mesmo padrão decisório:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Admitiu Arêas - na primeira fase do seu artigo - que o direito como integridade começa no tempo presente e apenas se volta para passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine.

A integridade não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. O que o juiz Hércules faz é relativizar a teoria da intencionalidade do locutor incluindo outras vozes no debate da lei.

Segundo o que estabeleceu originalmente Dworkin, a teoria da integridade pretende justificar o que os legisladores fizeram (às vezes incluindo, o que disseram) formando uma história geral digna de ser recontada pelo juiz Hércules; uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser reorganizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. Admitiu Arêas neste ponto que o direito como integridade deplora [grifo nosso] o mecanismo do antigo ponto de vista de que "lei é lei".

De acordo ainda com esse analista, Dworkin nos proporcionou uma alternativa entre o convencionalismo e o pragmatismo. Paradoxalmente, entretanto, no segundo momento do seu artigo Arêas negou, por completo, essa definição ontológica, que ele mesmo enalteceu, e passou a atribuir ao juiz Hércules uma atitude conformista e autodestruidora dos seus poderes de juiz; pouco a pouco, Hércules se torna uma figura acomodada, sem função e impotente diante da determinação do convencionalismo imposto pela súmula vinculante no futuro. Em outras palavras, Arêas não estabeleceu com clareza que a súmula vinculante seria naturalmente respeitada por Hércules até o momento que surgisse um ponto crítico ou obscuro nos padrões decisórios, pois é justamente nesse ponto crítico que surge a batalha jurídica entre o dogmatismo do passado e a integridade do presente. Basicamente, essa incompatibilidade contextual constitui o cerne ou núcleo do modelo programático de Ronald Dworkin. Portanto, negar essa tese significa condenar o programa de pesquisa de Ronald Dworkin à degeneração ou fracasso, usando-se aqui, oportunamente, o critério avaliativo do epistemólogo Imre Lakatos (ver MONTARROYOS, 2006)

De acordo ainda com o que escreveu textualmente Arêas, é forçoso afirmar que, analisada a doutrina de Dworkin sob tal aspecto, o sistema de súmula vinculante adotado recentemente no Brasil representaria "séria afronta" à visão do direito como integridade, uma vez que impossibilitaria o juiz de inovar quanto à interpretação já solidificada.

Se a súmula vinculante exige que todos os juízes sigam a interpretação sumulada pelo Tribunal, essa proposta - a despeito dos existentes aplausos que recebe de parte da doutrina por tornar o processo mais célere - acabaria por "engessar" o direito da "integralidade". Por outro lado, Arêas observou que a súmula vinculante estaria impedindo a natural evolução do direito da integridade conforme a modificação das exigências dos valores socialmente estabelecidos.

A ilustração feita originalmente por Dworkin, ao recorrer ao juiz Hércules para demonstrar a completeza do direito, demonstrou que dentre as várias possíveis soluções jurídicas para o caso judicial sempre há alguma que se apresenta como sendo a mais acertada.

Tal recurso, segundo Arêas, serviria para desvendar respostas aos casos que, não solucionáveis "prima facie" pelo direito, e precisariam de um raciocínio mais profundo no qual trabalhar-se-iam várias hipóteses, todas elas dentro do direito.

Assim, para as demais questões que não se incluiriam na categoria dos casos difíceis (hard cases), não seria necessário socorrer-se de tal procedimento, pois seria de pouca utilidade tendo em vista a fácil tarefa de encontrar soluções jurídicas para elas. Aqui, contudo, permanece a seguinte questão polêmica: "o instituto da súmula vinculante se compatibilizaria com a tutela dos casos considerados fáceis?" Talvez essa pergunta não seja de grande utilidade, escreveu o analista, no contexto da imposição da súmula vinculante.

O que se apreende disso tudo é que, fazendo um estudo comparativo entre a integridade do direito e o novo sistema da súmula vinculante, ambos não guardam grande compatibilidade entre si. O efeito vinculante das súmulas impede a natural evolução dos conceitos e interpretações jurídicos. Infelizmente, porém, o ilustre analista não considerou que a incompatibilidade entre texto-contexto (relevante na escola hermenêutica!) é exatamente o núcleo do livro O império do direito e também o ponto de partida do programa de pesquisa de Ronald Dworkin.

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Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito da UNIFESSPA MARABÁ, PARÁ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. O observatório judiciário de Ronald Dworkin.: O império do Direito e o conceito de integridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20850. Acesso em: 23 abr. 2024.

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