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A boa-fé objetiva e o dever das empresas fabricantes de cigarro em indenizar

23/01/2012 às 15:45
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É polêmica a questão de ser ou não exigível dos fabricantes de cigarro, indenização por danos decorrentes do consumo de seus produtos. Nossos tribunais, em esmagador número de casos, indeferem os pedidos de indenização. Entretanto, parece que nosso ordenamento jurídico possui regras suficientes para a responsabilização em tais casos.

Resumo: No Brasil, estima-se que o fumo é responsável pela morte de um entre cada cinco homens e de uma em cada dez mulheres. [01] Em alguns casos, herdeiros do fumante que veio a óbito, ou, o próprio prejudicado em sua saúde, pleiteiam no judiciário ações de indenização em face das fabricantes de cigarro, que, quase em sua totalidade, são julgadas improcedentes ainda na primeira instância.

Palavras-chave: Relação de consumo. Boa-fé objetiva. Dever de Lealdade. Vulnerabilidade do consumidor. Responsabilidade objetiva do fabricante.


É polêmica a questão de ser ou não exigível dos fabricantes de cigarro, indenização por danos decorrentes do consumo de seus produtos. Nossos tribunais, em esmagador número de casos, indeferem os pedidos de indenização, ora baseando seus julgados na falta de prova que constate o nexo causal entre o ato de fumar e a enfermidade, ora por julgar que a livre opção do consumidor pelo tabagismo exclui a responsabilidade objetiva do fabricante.

Antes de ingressarmos no mérito da questão, emitindo nossa opinião quanto à possibilidade de se responsabilizar as empresas fabricantes de cigarros pelos danos provocados à saúde, cabe a nós situarmos as partes dessa relação de consumo em nosso ordenamento jurídico.

O Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 3º, caput e inciso I, trazem a seguinte redação:

"Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial".

As definições trazidas pelos dispositivos acima transcritos servem como um parâmetro para identificação das pessoas e situações que estarão sujeitas às regras e princípios insculpidos na Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).

Dito isso, é evidente ao nosso entender que as pessoas jurídicas fabricantes de cigarros se incluem na definição de fornecedor do caput do artigo 3°, como também o cigarro deve ser tido como produto, que possui valor mercadológico e produzido com intuito de comercialização. É, portanto, a relação entre fumante e fabricante, de caráter consumerista, sujeita às normas do Código de Defesa do Consumidor.

O CDC é reconhecidamente uma lei principiológica, significando que, ao invés de se buscar tutelar especificidades em seus dispositivos, cria regras gerais capazes de abarcar uma gama de situações decorrentes da relação de consumo.

Um desses princípios, talvez o mais importante atualmente, não só no campo do direito do consumidor, mas em todo o regramento cível, é o princípio da boa-fé objetiva, estampado no art. 4°:

"Art. 4° A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção dos seus interesses econômicos, a melhoria da as qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo...".

A esse respeito, o ilustre doutrinador Rizzato Nunes leciona:

"O princípio da boa-fé estampado no art. 4º da lei consumerista tem, então, como função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, compatibilizando interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico...". [02]

O próprio artigo 170 da Constituição Federal ao tratar da ordem econômica, reconhece que esta é meio pelo qual, entre outros, se busca proporcionar a existência digna da pessoa humana, e, seu inciso V prima pela defesa do consumidor. Feitas essas considerações, devemos ter em mente, portanto, que havendo conflito de interesses entre os interesses mercadológicos e os valores da pessoa humana, estes devem sempre sobrepor-se àqueles.

Importante a compreensão do entendimento acima esposado, pois passaremos agora à análise de dispositivos do Código de Defesa do Consumidor que apresentam aparente conflito dos interesses mencionados no parágrafo anterior, especialmente no que diz respeito ao comércio de cigarros, e são largamente utilizados em defesa das fabricantes, livrando-as da obrigação de indenizar os consumidores acometidos de enfermidades contraídas pelo fumo.

São eles, os artigos 8°, 9° e 10°, inseridos no capítulo IV, que trata "da qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos". Para melhor demonstrar a incongruência entre os mencionados dispositivos, lançamos mão da lição de Rizzato Nunes:

"Os arts. 8º, 9º e 10, que compõem a Seção I, guardam uma ligação entre si no que respeita ao grau de nocividade permitido. Analisando-os mais detidamente, perceber-se-á uma contradição nos termos postos em tais normas e que gera certa dificuldade de solução. O caput do art. 8º, por exemplo, diz que os produtos e os serviços não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis; o art. 9º fala em produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança; e o art. 10 refere-se à proibição de produto ou serviço que apresente alto grau de nocividade ou periculosidade.

Da leitura dos três artigos percebe-se a contradição exatamente pelo permissivo do art. 9º. O CDC aceita que haja produtos e serviços que sejam potencialmente nocivos. Enquanto o art. 8º diz que não haverá nocividade (exceto a previsível – que a seguir comentaremos) e o art. 10 proíbe os produtos e serviços altamente nocivos, o art. 9º permite a venda dos não tão altamente nocivos. Os cigarros, por exemplo, enquadram-se em que artigo?". [03]

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O artigo 10 veda a comercialização de produtos considerados altamente nocivos, o que nos permite concluir que o legislador não inseriu o cigarro nessa categoria, pois, permite sua comercialização, exigindo apenas que o fabricante faça constar as informações de periculosidade e nocividade em seu rótulo.

Teria a divulgação de tais informações, o condão de retirar a responsabilidade do fabricante em relação aos potenciais efeitos danosos causados nos consumidores? Cumprida essa exigência, estaria o fabricante isento dos riscos inerentes à sua atividade? Os seguintes julgados expressam esse entendimento, ao qual, data vênia, não nos afiliamos:

 "9219743-78.2008.8.26.0000  Apelação /Responsabilidade Civil

Relator(a): Roberto Solimene

Comarca: Ipauçu

Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado

Data do julgamento: 22/07/2010

Data de registro: 28/07/2010

Outros números: 0579414.4/2-00, 994.08.029620-9

Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. Tabagista que processa produtora de cigarros. Adesão espontânea dele ao vício. Inaplicabilidade da teoria objetiva, lnocorrência de atividade ilícita. Dever de indenizar afastado. Jurisprudência. Apelo desprovido".

"9082990-85.2006.8.26.0000  Apelação Cível / INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS

Relator(a): Natan Zelinschi de Arruda

Comarca: São Paulo

Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado

Data do julgamento: 25/10/2007

Data de registro: 06/11/2007

Outros números: 4820804500, 994.06.116101-8

Ementa: Indenização por danos morais e patrimoniais. Autor tabagista. Opção de fumar deve ter suas conseqüências suportadas pelo próprio usuário. Livre arbítrio ao iniciar o vicio. Fabricantes de cigarros exercem atividade licita. Malefício do O fumo à saúde é público e notório. Apelante não comprovou nenhuma propaganda de irresistível sedução ao uso do tabaco por ocasião do começo do consumo de cigarro. Ausentes requisitos para a indenização. Apelo desprovido".

Os julgados aqui colacionados traduzem o entendimento majoritário dos tribunais nacionais, que, retirando a responsabilidade dos fabricantes, transfere-a para o consumidor, como se este tivesse o dever de assumir os riscos da atividade.

"Como se falar em assunção se o risco é exclusivo do fornecedor e não pode ser transferido a ninguém?". [04]

Destaque-se que a responsabilidade do fornecedor, em regra, é objetiva, tornando irrelevante a existência ou não de culpa em sua atuação, ainda mais quando seu produto apresenta um grande risco em potencial para a saúde de seus consumidores.

É essa a intenção legislativa que encontramos no parágrafo único do artigo 927, do Código Civil:

"Art. 927(...) Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

A teoria da responsabilidade objetiva, construção legislativa e doutrinária, advém, dentre outros motivos, em razão da vulnerabilidade do consumidor (Art. 4°, I), que acentua-se em uma relação tabagista.

Acreditamos também que as empresas fabricantes de cigarros, não cumprem o dever de informação, princípio fundamental esculpido no inciso II do artigo 6º da lei consumerista, sendo também requisito essencial para a configuração da boa-fé objetiva que deve nortear todas as relações de consumo.

Não obstante as embalagens de cigarro trazer informações quanto à sua nocividade, incluindo fotos de mazelas decorrentes do fumo, essas práticas devem ser atribuídas à pasta do Poder Executivo, competente para a regulamentação do comércio dessas substâncias, e não às fabricantes.

Acreditamos, portanto, que nosso ordenamento jurídico possui regras suficientes e voltadas para a responsabilização daqueles que por sua atividade causem prejuízos, sejam eles sentidos em qualquer campo da sociedade.


Notas

  1. http://www.medicina.ufmg.br/noticias/?p=1821
  2. Nunes, Luis Antonio Rizzato, Curso de direito do consumidor – 6 .ed. ver. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2011. p. 177.
  3. Nunes, Luis Antonio Rizzato, Curso de direito do consumidor – 6 .ed. ver. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2011. p. 198.
  4. http://www.fiscolex.com.br/doc_848960_A_RESPONSABILIDADE_CIVIL_DAS_EMPRESAS_FABRICANTES_DE_CIGARROS.aspx
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Sobre o autor
Jessé Leal Pereira

Advogado em Goiânia (GO). Associado no escritório Levergger e Miguel Advogados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes - Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Jessé Leal. A boa-fé objetiva e o dever das empresas fabricantes de cigarro em indenizar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3127, 23 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20914. Acesso em: 18 mar. 2024.

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