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A dignidade da pessoa humana pode ser considerada um direito absoluto?

25/01/2012 às 10:10
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A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que irradia em todo o ordenamento jurídico brasileiro. Diante da grande importância que o princípio representa, surge a problemática de se saber se é um princípio absoluto e, portanto, insuscetível de limitação, ou se diante do caso concreto, em situações excepcionais, é passível de restrição.

Inicialmente, cumpre asseverar que a dignidade da pessoa humana é um princípio de difícil conceituação por tratar-se de um preceito de contornos vagos e imprecisos, não sendo possível esgotar em uma simples definição o seu amplo significado, sob pena de relativizá-lo.

Nesse diapasão, merece destaque o entendimento perfilhado pelo Ilustre doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet: "Costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui uma categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-lo de maneira fixista(...)" [01].

Insta mencionar, ainda, que a dignidade da pessoa humana é um atributo pré-constituinte e inerente a toda e qualquer pessoa humana e, nesse sentido, não pode ser considerada um direito propriamente dito, até porque se o fosse, certamente encontrar-se-ia expressa no Título II – da Constituição Federal que trata dos direitos e garantias fundamentais.

Nos dizeres do Mestre Marcelo Novelino "A dignidade da pessoa humana não é um direito, mas um atributo que todo ser humano possui, independentemente de sua origem, sexo, idade, condição social ou qualquer outro requisito. O ordenamento jurídico não confere dignidade a ninguém, mas tem a função de protegê-la contra qualquer tipo de violação" [02].

Com efeito, é no artigo inaugural da Magna Carta - parte integrante do Título I – Dos princípios fundamentais – que a dignidade da pessoa humana tem previsão como fundamento da República Federativa do Brasil, configurando-se, portanto, como elemento de legitimação para a atuação do Estado brasileiro. A arquitetura constitucional não é aleatória, sendo o tal princípio expresso no art.1º da Constituição Federal em razão de cumprir relevante papel de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais.

Nesse prisma, sedimentou-se na doutrina o entendimento de que o mencionado princípio é o valor que dá unidade ao conjunto de direitos fundamentais, servindo de aplicação, interpretação e integração de todo o ordenamento jurídico, de maneira a garantir-lhe coerência.

Com a costumeira sapiência assevera o renomado doutrinador Daniel Sarmento que "o princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico (...) pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao se humano – razão última do Direito e do Estado" [03] .

Postas essas considerações é de se concluir que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que irradia em todo o ordenamento jurídico brasileiro, além de tratar-se de uma noção universal, o que significa dizer que "deverá ser a mesma em qualquer lugar, não sendo cabível ao ordenamento jurídico a definição do seu conteúdo, mas apenas dos meios necessários para sua proteção, promoção e concretização por meio de outras normas jurídicas" [04].

Diante da grande importância que o princípio em questão representa, surge a problemática de se saber se a dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto e, portanto, insuscetível de limitação, ou se diante do caso concreto, em situações excepcionais, é passível de restrição.

Vale mencionar que a doutrina diverge a respeito de tal questão exatamente em razão da função que a dignidade da pessoa humana representa como valor estruturante de todo o ordenamento jurídico.

O preclaro doutrinador e Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes lembra que o Mestre Robert Alexy sustenta a relatividade deste valor ao asseverar que "em palavras do próprio Alexy, o princípio da dignidade da pessoa comporta graus de realização, e o fato de que, sob determinadas condições, com um alto grau de certeza, preceda a todos os outros princípios, isso não lhe confere caráter absoluto, significando apenas que quase não existem razões jurídico-constitucionais que não se deixem de comover para uma relação de preferência em favor da dignidade da pessoa sob determinadas condições" [05].

O lustre Ministro prossegue afirmando adotar o mesmo entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet ao dizer que "todas as pessoas são iguais em dignidade (...) e existindo, portanto, um dever recíproco da dignidade alheia (...), poder-se-á imaginar conflito direto entre dignidades de pessoas diversas, impondo – também nesses casos – o estabelecimento de uma concordância prática (ou harmonização), que necessariamente implica a hierarquização ou ponderação dos bens em rota conflitiva, neste caso, do mesmo bem (dignidade) concretamente atribuído a dois ou mais titulares" [06], e conclui que "a dignidade da pessoa humana, porque sobreposta a todos os bens, valores ou princípios constitucionais, em nenhuma hipótese é suscetível de confrontar-se com eles, mas tão-somente consigo mesma (...)" [07].

Em sentido contrário manifesta-se o renomado doutrinador Daniel Sarmento [08] ao ponderar não concordar, neste particular, com Robert Alexy "quando este afirma que o princípio da dignidade da pessoa humana pode ceder, em face da ponderação com outros princípios em casos concretos. (...) reiteramos nosso entendimento de que nenhuma ponderação de bens pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o fim último desta ordem" [09].

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Fato é que, caracterizando-se como princípio, a dignidade da pessoa humana se submete, diante de eventuais colisões com outros princípios, ao juízo de ponderação, ou seja, sua aplicação "não será no esquema do ‘tudo ou nada’, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou situações de fato" [10].

Nas palavras do ilustre doutrinador Luís Roberto Barroso "A colisão de princípios, portanto, não é só possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. (...) A aplicação dos princípios se dá, preponderantemente, mediante ponderação" [11].

O que se quer dizer com tais afirmações é que seria impossível afirmar-se que a dignidade da pessoa humana sempre deve prevalecer ou apontar em que casos ela deve preponderar, sendo que, somente diante da análise do caso concreto, é possível ponderar, ou seja, pesar sua aplicação.

Sendo assim, em que pese o entendimento respeitável no sentido da caracterização da dignidade da pessoa humana como princípio absoluto, não parece ser este o melhor entendimento diante da infinidade de situações concretas que restariam sem resolução partindo-se de tal premissa, especialmente em caso de conflito entre dignidade de pessoas diversas. Se tal princípio fosse considerado absoluto não seria possível, por exemplo, apresentar solução à questão posta em debate através da ADPF nº 54 em que se discute o aborto em caso de anencefalia, situação em que há claro conflito entre a dignidade da mãe e a do feto anencéfalo.

Diante do exposto, há de se convir que a dignidade da pessoa humana, mediante juízo de ponderação, pode ser relativizada em situações extremamente excepcionais considerando o inegável valor supremo que ela representa, sem que se desconsidere que "não há como transigir no que tange à preservação de sua essência, já que sem dignidade o ser humano estaria renunciando à própria humanidade" [12].


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.

NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Método, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1ª edição – segunda tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

SILVA, JOSÉ AFONSO DA. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29ª edição. São Paulo: Malheiros, 2007.


NOTAS

  1. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.103.
  2. NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Método, 2008, p.210.
  3. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1ª edição – segunda tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 59-60.
  4. NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Método, 2008, p.210-211.
  5. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p.151.
  6. Exemplo de colisão entre dignidades encontra-se na ADPF nº 54 em que se discute a possibilidade ou não de aborto em caso de anencefalia, em que há claro conflito entre a dignidade da mãe e a dignidade do feto.
  7. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p.152.
  8. No mesmo sentido aponta a lição de Santos, Fernando Ferreira dos. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p. 94-96.
  9. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1ª edição – segunda tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.76.
  10. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p.352.
  11. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p.355.
  12. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.112.
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Sobre a autora
Natacha Moreira de Almada

Assistente Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduada lato sensu em Direito Público pela Universidade Anhanguera - Uniderp/LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMADA, Natacha Moreira. A dignidade da pessoa humana pode ser considerada um direito absoluto?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3129, 25 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20925. Acesso em: 4 mai. 2024.

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