“A lei não esgota o Direito, como a partitura não exaure a música”.
Mário Moacyr Porto
RESUMO: O artigo objetiva examinar possíveis conexões entre Direito e Música e de que maneira estas podem contribuir para o aprimoramento da interpretação/aplicação do Direito. Destaca que, tanto no Direito, como na Música, a interpretação exerce relevante peso no produto final da obra. Afirma que a Música, como expressão artística que é, revela aspectos profundos da natureza humana que a razão não penetra. Dessa forma, como o ser humano não é só razão, o Direito, para não se afastar da realidade, não deve se orientar apenas em premissas racionais. Ao contrário, o operador jurídico, na solução de casos, deve também agir com sensibilidade e perspicácia, captando e apreendendo os sentimentos e emoções que estão presentes – porém ocultas – nas relações jurídicas intersubjetivas. Com esta postura, acredita-se, ampliam-se os caminhos de convergência entre Direito e Justiça; ou, por outras palavras, emergem outras possibilidades para se chegar a um Direito Justo.
Palavras-chave: Direito – Música – Interpretação – Razão – Emoção – Justiça.
ABSTRACT: The article aims to examine possible connections between Law and Music and how it can contribute to the improvement of the interpretation/application of Law. It emphasizes that, both in the Law and in the Music, the interpretation has significant importance in the final product of the work. States that the Music, as artistic expression, reveals deep aspects of human nature where the reason can not penetrate. Thus, as the human beings are not only governed by reason, the Law should not be labored just on rational, otherwise the law could deviate from reality. Instead, the legal operator must also act with sensibility and insight to solve the conflicts. He should capture the feelings and emotions that are present – but hidden – in the relationships among people. With this approach, the paths of convergence between Law and Justice could be enlarged; or, in other words, new possibilities could arise to get a fair trial.
Keywords: Law – Music – Interpretation – Reason – Emotion – Justice.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a analisar possíveis conexões entre Direito e Música. Embora, a princípio, sejam áreas incompatíveis e inconciliáveis entre si, um olhar mais atento revela que esta circunstância não impede que se identifiquem zonas de influência e de aprendizado recíprocos. Nesta sede, porém, concentrar-se-á em alguns pontos em comum entre Direito e Música para, na sequência, avaliar de que forma a Música pode contribuir para uma melhor aplicação/interpretação do Direito.
Tem-se por objetivo geral destacar que a Música, enquanto expressão artística (Estética), transita por caminhos que as premissas racionais do Direito, em tese, não ingressam, mas que também interferem nas relações jurídicas, uma vez que estas têm como protagonistas seres humanos, os quais não são dotados apenas de razão.
Tem-se por objetivo específico ressaltar que os operadores e estudiosos do Direito, a exemplo do que ocorre na Música, podem laborar a partir do sensível, das emoções e dos sentimentos que compõe e integram o ser humano, e não apenas ficarem circunscritos aos postulados lógico-formais que, muitas vezes, formatam o raciocínio jurídico.
Esta abertura de horizontes, todavia, suscita questionamentos, tais como: as conexões entre Direito e Música guardam pertinência entre o Justo e o Belo? A aproximação entre Direito e Música pode contribuir para a concretização de um Direito Justo? Ao ampliar o leque de interpretação/aplicação do Direito para o “sensível”, não há riscos de uma subjetividade demasiada, comprometendo a segurança jurídica?
O texto, porém, não tem pretensão exaustiva, tampouco se assenta juízos definitivos. Busca-se tão-somente empreender novas possibilidades de laborar com o Direito na tentativa de aproximá-lo da Justiça. Se fomentar a reflexão no leitor, independentemente de sua adesão às ideias expostas, já se terá atingido seu desiderato.
2. APORTES APROXIMATIVOS
Há um ditado no meio jurídico, de autoria incerta, que diz: “quem só sabe Direito, não sabe nem Direito”. É neste contexto que, de alguns anos para cá, o Direito tem sido estudado não só sob uma perspectiva jurídica isolada, mas também a partir de possíveis interconexões com outras áreas. Assim, traçam-se paralelos entre Direito e Literatura[1], Direito e Cinema[2], Direito e Psicanálise[3], Direito e Matemática[4], Direito e Física[5], Direito e Neurociência[6] e, inclusive, Direito e Música.
Esta postura aberta de estudar o Direito amplia o espectro do investigador, ressaltando elementos humanísticos, superando a mera técnica jurídica, o que contribui para uma visão do Direito mais percuciente e sensível, apromixando-o da Justiça. Isto faz lembrar Miguel Reale que, em referência ao orador Romano, alertou: “nas lições de Cícero...devemos conhecer perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direto”[7].
É exatamente este o mote desses estudos transdisciplinares. Busca-se conhecer o ser humano em sua amplitude e complexidade; suas paixões, dramas, ilusões e sentimentos. Não se deixa esquecer que o ser humano é “luz”, mas, ao mesmo tempo, “sombra”; “médico” e “monstro”, como bem apreendido por Robert Louis Stevenson[8]; que a esperança, como consta da lendária Caixa de Pandora, é indissociável componente humano. Em suma, que o ser humano é formado por desejos, sonhos, medos, traumas, ideais; que, em sua efêmera passagem nisto convencionamente chamando mundo, convive com a angústia da morte e com as incertezas da vida, a qual pode ser bela ou dramática, conforme as experiências, valores ou significados que cada qual atribua aos episódios com os quais se deparar. São estes, dentre vários outros componentes, que acompanharão o ser humano e, por conseguinte, influenciarão o convívio social, razão pela qual não podem ser desconsiderados pelo Direito e por seus operadores, pesquisadores, estudiosos.
Nesta conformidade, conhecendo melhor o ser humano, crê-se que o Direito pode ser melhor interpretado e aplicado, pois, uma vez mais próximo da realidade da vida, maiores as oportunidades de se alcançar o aspirado “bom senso”, tão apregoado onde quer que o Direito seja reclamado, mas de tão difícil consenso. Realidade, vida, Direito e ser humano devem ser vistos sob um mesmo panorama, até porque, como advertiu George Ripert: “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”[9].
Como diz o milenar brocado: “ex factum oriutur jus” (o Direito advém dos fatos), de maneira que se o Direito visa regular as relações humanas de maneira harmoniosa – vocábulo que já remete à ideia de música –, deve, antes, ter presente essa realidade e, em especial, esse ser humano; a natureza humana, a condição humana, haja vista que, em última análise, é este o destinatário final do Direito. É este “conhecer” que a aproximação entre Direito e Música aspira. Isto porque, a música, longe de ser mera combinação de sons, ritmos, melodias, tem acompanhado a humanidade desde seus primeiros passos, expressando sentimentos, emoções, instintos, enfim revelando o outro lado da nossa espécie, que não se esgota na razão, na vontade ou no consciente. Ao contrário, resulta da combinação destes (emoção e razão).
Um simples olhar na História comprova o que aqui se pretende dizer. Traços musicais estão presentes desde as civilizações Pré-Históricas, assim como nas Antigas Civilizações, como Mesopotâmia, Egito e Grécia só para citar algumas. Não é por acaso que a música, de maneira direta ou indireta, esteve e está presente em inúmeras manifestações sociais, desde liturgias religiosas, a celebrações militares e patrióticas, ou como forma de expressar sentimentos de liberdade, amor, paixão, tristeza ou indignação. Daí a grande variedade de gêneros musicais, que vão da música erudita ao hip hop; do country ao jazz; da música típica dos pigmeus Baka do Gabão ao sertanejo de raiz ou MPB brasileiros.
Música e ser humano caminham lado a lado. Aquela é manifestação, expressão, sublimação, catarse deste. Revela-o. Daí por que se afigura essencial para o Direito melhor conhecer e mais se aproximar deste mesmo ser humano, o que, seguramente, trará efeitos sociais benéficos.
No Brasil, já existem estudos, embora pioneiros, sobre uma possível aproximação entre Direito e Música. Sobre o tema se destaca a obra de Mônica Sette Lopes, professora de Direito e juíza do trabalho em Minas Gerais, com o sugestivo título “Uma Metáfora: Música e Direito”[10].
Na mesma linha, mediante simples pesquisa na internet, podem ser encontrados outros ensaios com esse viés, caso de “Direito e música é tema rico e pouco explorado”, de Vladimir Passos de Freitas[11], ou apenas “Direito e Música”, de Diogo Ferreira de Freitas [12].
Por certo, esses trabalhos permitem a identificação de pontos de convergência e influência mútua entre Direito e Música; ou, se preferir, de que forma a Música pode auxiliar na compreensão, interpretação e aplicação do Direito. A contribuição, aliás, é mais evidente quando se percebe que a Música, não raramente, expõe ao estudioso do Direito os “pontos cegos” que os limites da razão lhe impedem o acesso. Em síntese: a música revela o que as obras jurídicas, ordinariamente, não revelam.
3. A INTERPRETAÇÃO NA MÚSICA E NO DIREITO
Direito e Música podem ser analisados sob diversos aspectos. Um destes diz respeito à interpretação. Mas de que forma? Quais os pontos em comum e/ou de divergência entre a interpretação no Direito e a interpretação na Música?
Para responder a estas indagações, observa-se, por primeiro, que, tanto a Música, como o Direito, em linhas gerais, têm um referencial de partida. No Direito, pode-se apontar a lei, uma das principais fontes jurídicas, como esse ponto de partida. De modo equivalente ocorre com a Música, que, por sua vez, toma por base a partitura.
Esta conexão entre tais áreas fica mais evidente quando se constata que, por mais objetiva e universal que seja a linguagem musical (signos), não raramente transpondo limites de tempo e de espaço, a interpretação de cada artista será, consciente ou não, uma leitura e, por conseguinte, uma obra personalíssima e peculiar. Este detalhe não passou despercebido por Eros Grau que, em seu Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, anotou:
A interpretação musical e teatral importa compreensão + reprodução (a obra, objeto da interpretação, para que possa ser compreendida, tendo em vista a contemplação estética, reclama um intérprete; o primeiro intérprete compreende e reproduz e o segundo intérprete compreende mediante a – através da – compreensão/reprodução do primeiro intérprete) (ainda que nessa segunda compreensão se manifeste, também, a construção de uma nova forma de expressão).[13]
Para deixar claro isso, Eros Grau, na mesma obra – destaque-se: jurídica –, sustenta que há duas formas de expressão artística; a das artes “alográficas” e a das artes “autográficas”. E explica:
nas artes alográficas (música e teatro), a obra apenas se completa com o concurso de dois personagens: autor e intérprete; nas artes autográficas (pintura e romance), o autor contribui sozinho para a realização da obra.[14]
A posição de Eros Grau fica mais palpável quando se verifica que intérpretes de uma mesma música, valendo-se de idênticos critérios objetivos (partitura, letra etc.), jamais (re)produzirão uma obra de maneira igual. A nona sinfonia de Beethoven não será a mesma se executada pela Orquestra Filarmônica de Berlim, de Londres ou de Viena. É pelo mesmo motivo que a música Yesterday, dos The Beatles, uma das mais regravadas da História da Música, e nos mais variados estilos, de Frank Sinatra a Roupa Nova; de Elvis Presley, Plácido Domingo a Ray Charles, passando por The King Sisters, nunca foi interpretada da mesma forma. Cada interpretação trouxe o traço pessoal de seu intérprete; seu marco individual; suas características específicas, seu talento próprio.
De modo similar o Direito. Por mais objetiva que seja a linguagem jurídica contida na lei, ela sempre será objeto de significação por parte do intérprete do Direito. Segundo estudos mais recentes da hermenêutica, da filosofia da linguagem e da semiótica jurídicas, interpretar os signos linguísticos longe está de estabelecer o “exato alcance e real significado” da expressão veiculada no texto normativo. Mas, sim, em atribuir sentido a este; impor significação aos vocábulos (signos) contidos na lei. Para realizar este processo de significação, o intérprete toma o texto legal como base, mas seu efetivo significado somente se aperfeiçoará após situá-lo no contexto fático em que será aplicado para dirimir o conflito ali existente. Por exemplo: o vocábulo “idoso” contido no art. 77, § 5º, da CF[15], previsto como critério de desempate em hipótese afeta a eleições presidenciais, não necessariamente terá como pressuposto a idade de 60 (sessenta) anos, apesar da redação taxativa do art. 1º, da Lei 10.471/2003 (Estatuto do Idoso)[16]. Isto só confirma que, por vezes, uma mesma palavra, pode receber significações diversas, o que enaltece, assim como na Música, o papel do intérprete.
Essa necessidade de significações de expressões normativas em sintonia com a faticidade no processo interpretativo do Direito é a base do fenômeno que vem sendo nominado como mutação constitucional, proveniente do Direito Alemão[17]. Para quem adere a esta corrente (mutação constitucional), os vocábulos contidos da Constituição de 1988 não devem ser lidos, apreendidos, interpretados e, sobretudo, significados de acordo com a realidade jurídico-político-econômico-social de 1988. Ao contrário, devem ser em conformidade com a realidade contemporânea, isto é, conforme as circunstâncias e contingências da época em que é realizada a interpretação; no caso, 2012.
Um exemplo pode ilustrar o que se pretende dizer. Em seu artigo 150, inc. VI, alínea “d”, a Constituição Federal, está prevista a imunidade tributária para livros. Mas o que é “livro”? É claro que o conceito de livro de 1988 irá diferir do conceito de 2012, isto porque, naquela época, não se falava – sequer se cogitava – em livros eletrônicos, CD-Rooms, sites, PDFs, tablets etc. Isto quer dizer que a interpretação jurídica não é, nem deve ser um processo mecânico e automatizado, muito menos deve se realizar mediante operações lógico-matemáticas, que aspiram, contra a dinâmica da vida, significações unívocas ou pretensamente exatas. Ao contrário, carece de intervenção humana, o que traz à tona o pensamento de Carlos Maximiliano, ao expor a necessidade do intérprete/aplicador do Direito, como um autêntico intermediário, um “mediador esclarecido” (...) “entre a letra morta dos códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade”.[18]
É ainda Carlos Maximiliano, já agora traçando um paralelo entre interpretação do Direito e interpretação Musicial, quem diz: “Comparável seria o magistrado ao violinista de talento, que procura compreender bem a partirura, e imprime à execução cunho pessoal, um brilho particular, decorrente da própria virtuosidade”[19].
Em resumo, não há como interpretar a Música sem o ser humano. E a leitura, a contribuição, a percepção deste é que dá vida à Música; é o intérprete quem revela os sentimentos e mensagens internas que suas letras ou melodias albergam, mas que estão, até então, ocultas. Da mesma forma, o Direito. Seus intérpretes, valendo-se de técnicas, assim como também ocorre na Música, é que produzirão um Direito em sintonia com a realidade social respectiva, desvelando e revelando os sentidos dos vocábulos normativos, porém atentos aos sentimentos, emoções, dramas e angústias que se inserem e se escondem nas relações intersubjetivas que meros textos legais ou partituras são incapazes de captar e expressar por si só.
4. ESTÉTICA E DIREITO
Outros palalelos podem ser traçados entre Direito e Música. A Estética é uma delas. A palavra Estética advém do grego αισθητικ? ou aisthésis e quer dizer “faculdade de sentir”, “compreensão dos sentidos”, “percepção totalizante”[20]. Para Maria Francisca Carneiro, sob o prisma filosófico, a Estética pode ser entendida como “teoria sobre a natureza da percepção sensível, designando-se também assim o conhecimento da arte e do belo”.[21]
Como já dito, a Música toca em sentimentos. “Fala” de coisas da vida; de experiências de vida, de conflitos íntimos e pessoais e interpressoais. Música é Estética. Logo, a música nos tem muito a dizer[22]. Muitas vezes entre a experiência de sentimentos e emoções e sua constatação e compreensão há um abismo intransponível imposto pelos limites da razão, mas que a arte – e só ela, despida que é dessas barreiras – consegue transpor, permitindo o esclarecimento de abstratas e complexas emoções, o que conduz, inclusive, ao autoconhecimento. Nesse sentido, as palavras de Sigmund Freud:
A arte é o único domínio em que o poder soberano de ideias se tem conservado até os nossos dias. E só na arte que os homens atormentados pelo desejo podem obter como que uma satisfação; e, graças à ilusão artística, este jogo produz os mesmos efeitos afetivos que produziria se se tratasse de algo real. Com razão se fala em magia da arte e se compara o artista a um mago.[23]
A Música, expressão artística que é, penetra em espaços profundos do ser, motivo pelo qual, além das emoções que permite vazar, muito nos esclarece e nos ensina. Vladimir Passos de Freitas, no ensaio mencionado, destaca uma série de músicas como “Saudosa Maloca”, de Adoniram Barbosa; “O pequeno burguês”, de Martinho da Vila, e “Charles anjo 45”, de Jorge Benjor, que tratam, respectivamente, de temas como cumprimento da lei, mercado de trabalho dos bacharéis em Direito e dos efeitos no morro da prisão de um criminoso que ali mantinha a ordem[24].
Mas o que isso tem a ver com o Direito?
Num primeiro momento, numa visão apressada: nada, haja vista que não guarda pertinência com as técnicas e métodos de interpretar/aplicar o Direito, ou com a Ciência do Direito, que, mesmo na interpretação dos fatos, objeto de prova em processos judiciais, vale-se de critérios pré-estabelecidos para sua valoração, caso, por exemplo, dos princípios da presunção de inocência; da comunhão da prova; do “in dubio pro reo” ou “in dubio pro operario” etc.
No entanto, uma visão mais acurada, permite verificar que a interpretação/aplicação do Direito transcende a simples técnica ou operações lógico-dedutivas. Se não fosse assim, os próprios operadores do sistema jurídico seriam dispensáveis. Bastaria recorrer a programas computacionais, forjados mediante códigos binários, para se atingir o resultado correto; objetivo e exato para a solução dos casos. Mas assim não é. O Direito precisa do ser humano para sair das “folhas de papel”. Tanto é que a decisão judical é chamada de “sentença”. Vocábulo, a propósito, que advém do latim “sententia” e emana de “sentiendo”, gerúndio do verbo “sentire”, isto é, sentimento, emoção, intuição. É por isso que Tourinho Filho afirma que, pela sentença, “o juiz declara o que sente (‘quod judex per eam quid sentiat declaret)”.[25]
Este aspecto nos remete a um dos símbolos mais conhecidos do Direito, ou seja, o símbolo da Justiça dos Romanos, representado pela deusa “Iustitia”, que apresentava os olhos vendados, ao contrário do símbolo de Justiça dos Gregos, representado pela deusa Diké, filha de Zeus e Themis, que tinha os olhos abertos.[26] Assim, poder-se-ia dizer que o símbolo da Justiça dos Gregos seria mais adequado, pois, com olhos abertos, sugere uma maior atenção por parte daqueles que atuam com temas ligados à Justiça, além de que afastaria críticas e comentários de pessoas menos avisadas ou mal-intencionadas, que, não raramente, afirmam em tom jocoso que a “justiça é cega!”.
Todavia, os Romanos, dotados que eram de elevado senso prático, não se distanciaram da realidade como ela se apresentava. Assim, não demoraram a perceber que o Direito não se esgota na lei, como destacado por Mário Moacyr Porto. É preciso algo mais. Mais do que simples “visão”, que por vezes cega para o óbvio; é preciso sentir, perceber, captar os sentimentos que envolvem uma relação jurídica para se produzir, atingir, materializar um Direito Justo.[27] Não por acaso, para o jurista romano Celso: “Direito é a arte do bom e do equitativo” (“ius est ars boni et aequi”) (DIGESTO, I, 1, 1). Aqui, pois, pode-se traçar um paralelo entre Direito e Estética; entre Direito e Justiça; em suma, entre o Justo e o Belo. Esse paralelo é destacado por Mário Moacyr Porto:
Cedo vislumbrei, ao contato da admirável eurritmia que caracteriza as construções jurídicas, que o Direito é, essencialmente, uma obra de arte. O necessário afinamento que deverá existir entre a disciplina jurídica e a realidade social, a harmonia que se impõe a fim de que o Direito se revele uma verdade de quilate válido entre o "dado" dos chamados "fatos normativos" e o processo técnico de elaboração do positivismo jurídico, expressa, essencialmente, uma revelação estética, uma identificação entre o justo e o belo.[28]
E, mais adiante:
A lei não esgota o Direito, como a partitura não exaure a música. Interpretar é recriar, pois as notas musicais, como os textos de lei, são processos técnicos de expressão, e não meios inextensíveis de exprimir. Há virtuosos do piano que são verdadeiros datilógrafos do teclado. Infiéis à música, por excessiva fidelidade às notas, são instrumentistas para serem escutados, e não intérpretes para serem entendidos. O mesmo acontece com a exegese da lei jurídica. Aplicá-la é exprimi-la, não como uma disciplina limitada em si mesma, mas como uma direção que se flexiona às sugestões da vida.[29]
O Direito, portanto, não é apenas fruto de um paradigma fundado no racional, no científico, na objetividade, na certeza, próprios de uma modernidade cartesiana e newtoniana de outrora. Ao contrário, para se chegar à Justiça, a interpretação/aplicação do Direito carece de elementos próprios da Estética, notadamente da sensibilidade, sob pena de fazer do Direito e da Justiça duas realidades diversas e inconciliáveis. É aqui que emerge uma abordagem transdisciplinar entre Direito e Música, colimando-se, em essência, a aproximação, interconexão e indissociação entre Direito e Justiça.