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A lei, o costume, o Direito

01/10/2001 às 00:00
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I - Introdução

Sabe-se que a lei, por excelência, é a fonte do Direito... Mas o Direito, também, nasce do costume, que nada mais é senão as práticas e usos comuns do povo.

Analisaremos alguns aspectos interessantes desse tema: quando o costume é saudável e quando ele é péssima lição de vida; quando a lei é boa para o povo e quando ela agride o povo e seus costumes.


II - Lei

De modo genérico, lei é força. Força que obriga acontecer algo na natureza, ou força que obriga seres humanos a procederem desta ou daquela maneira. Grosso modo, existem duas categorias de leis: as naturais e as humanas. As primeiras, criadas pela ordem natural das coisas; as últimas, pela inteligência humana. Aquelas regem o Universo; estas regem as relações de convívio pacífico entre os homens. A lei, qualquer que seja ela, visa à harmonia. Senão vejamos: todas as leis da Natureza convergem para um lugar comum: a harmonia perfeita do Universo. Tudo na Natureza tem uma razão de ser e uma utilidade. O que é aparentemente nocivo à vida (humana, animal ou vegetal), investiguemos, haverá de ter - e tem! - uma utilidade; até para que dessa aparente nocividade desabroche a bonança e o pronto restabelecimento da harmonia.

Mas, tratemos da Lei dos Homens.

Para que a harmonia paire, serenamente, sobre a Terra... É para isto que existem as leis. O homem é inteligente: inova, modifica, cria... destrói! O produto de sua inteligência pode levar ao que é saudável e ao que é nocivo a ele próprio, ao grupo a que pertence, à Humanidade e à Natureza. Assim, é que o próprio homem teve de inventar a lei: para reger suas próprias ações ou omissões, de modo a canalizá-las para a harmonia social e, conseqüentemente, para a harmonia universal. O homem, com sua poderosíssima inteligência - que é a sua força incomensurável -, poderia interferir na ordem natural das coisas... Antes que tal acontecesse, por obra e graça da Natureza, ele - o homem - inventou a lei, que, no fundo, é instrumento da paz social, da harmonia, da felicidade. Eis a essência da lei!

Mas... e na prática, o que é a lei?

GAIUS a definiu: "A lei é aquilo que o povo ordena e constitui."(1) Já deixamos claro que a lei busca a paz social. Logo, se ela é uma ordem do povo, é uma ordem benéfica, pois o bem comum, a paz, a harmonia é o que o povo quer para si. Agora vejamos, de forma mais precisa, do ponto de vista jurídico, o que vem a ser a lei. Segundo CLÓVIS BEVILÁQUA, lei é "a ordem geral obrigatória que, emanando de uma autoridade competente reconhecida, é imposta coativamente à obediência geral(2)".

Essa autoridade competente a que se refere o jurisconsulto é o próprio povo, politicamente organizado. Vale dizer: legitimamente representado. Por uma questão meramente racional e lógica, o povo se faz representar: pinça do meio de si alguns indivíduos e incumbe a estes a tarefa legiferante. Opera-se como que um pacto seriíssimo e solene. O legislador, que é o indivíduo humano escolhido, agirá em nome do povo e elaborará a lei. Para buscar e garantir a harmonia social, a felicidade geral de todos, leis têm de ser feitas e cumpridas. O conjunto de todas essas leis, a que se chama ordenamento jurídico, é que governa o povo. Governar é guiar; buscar o bom caminho, a satisfação material e a satisfação espiritual. Os seres humanos - e o seu conjunto é o povo - buscam subida, elevação, felicidade. Mas o governo das leis é, também, punir! O povo se auto-governa através das leis. Logo, o povo se pune a si próprio, de livre e espontânea vontade. Eis a verdade sobre a lei: ainda que seja para punir, castigar, se é a vontade do povo, é lei verdadeira! E, via de conseqüência, absolutamente necessária como instrumento que leva à paz social e à felicidade geral. Assim é que não se pode falar em lei sem levar em conta o seu conteúdo sociológico. A lei "é um resultado da realidade social. Ela emana da sociedade, por seus instrumentos e instituições destinados a formular o Direito, refletindo o que a sociedade tem como objetivos, bem como suas crenças e valorações, o complexo de seus conceitos éticos e finalísticos."(3) O povo caminha sobre a terra com objetivos claros e determinados: querendo ir para a frente, para o alto, para o mundo da bonança e da felicidade. A lei é como que o plano de metas do povo, que leva a esse desiderato. Traçar o plano, eis a questão! Más leis ou boas leis - uma questão de erro ou acerto.

Porém, algo inusitado chama-nos a atenção: feita a lei, ela é imposta à obediência geral. Pois bem: e se se cuida de uma lei má, que não espelha a realidade social e não busca os objetivos verdadeiros do povo? O julgador, aquele indivíduo a quem o povo incumbiu a missão de aplicar a lei, e, por conseguinte, aplicar o Direito, e restabelecer a paz e a harmonia, é que viverá esse grande dilema. Afinal, tal lei representa ou não representa o Direito? Para solucionar o conflito que se lhe apresenta à frente, capaz de abalar a harmonia entre os homens e comprometer os objetivos de todo o povo, um juiz - que não pode ir além do que lhe foi confiado, felizmente, ao seu dispor, não tem apenas a lei, que é a meta. Tem todo o plano, que é o Direito. Por isso que o juiz cumprirá a sua parte nessa melindrosa operação de promover o restabelecimento da paz social e da harmonia sobre a Terra, aplicando o Direito como um todo, que é o mesmo que aplicar a Justiça. Pois: "O Direito é mais que um agregado de leis. É o que torna as leis instrumentos vivos da Justiça".(4)


III. Costume

Fizemos alusão à boa lei e à lei ruim. E o costume? Haveria o bom costume e o mau costume?

Primeiramente, vejamos o que seja o costume. FERRARA, citado por HERMES LIMA, assim o conceitua: "é um ordenamento de fatos que as necessidades e as condições sociais desenvolvem e que, tornando-se geral e duradouro, acaba impondo-se psicologicamente aos indivíduos."(5)

- Julga! Garante ou restabelece a paz social! - eis o que ordena o povo ao juiz. E completa: - Usa apenas o Direito! Vale dizer: Faça-se Justiça!

Nada obstante seja a lei a principal fonte do Direito, este emerge, também, do costume do povo, das lições dos doutores(doutrina), da analogia, da jurisprudência e dos princípios gerais. Justiça é um sentimento. O povo sente-se, racional e espiritualmente, realizado e feliz diante de determinadas situações fáticas. Frisamos: ‘racionalmente’! Sim, porque o povo pode em determinadas situações passageiras perder o controle do raciocínio. E aí não há falar-se em Justiça, posto que esta sublime virtude mora no mundo da inteligência e da razão.

O Direito, então, há que levar em consideração este importante componente: o costume do povo, que são práticas usuais tornadas regras no meio social.

O nosso ordenamento jurídico consagra o acolhimento de tais regras não-escritas quando, diante do caso concreto, a lei não for satisfatória, de modo a proporcionar um julgamento justo, aquele que vá ao encontro do bem-estar social, da paz, da harmonia. A propósito, diz o art. 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito." Mas, se o Direito amplia-se, evolui, alcança progressos - e disto não se duvida -, é porque, necessariamente, ocorrem inovações em suas fontes. A vontade do povo, corporificada em leis escritas ou em regras de convivência pacífica não-escritas, segundo o fluir dos tempos, pode mudar. Tudo o que há sob o sol se transforma - eis uma verdade inconteste! Logo, é forçoso reconhecer que o costume, sendo a exteriorização mais atual da ordem do povo, é a fonte do Direito que melhor espelha essa evolução ou mudança. Não é sem razão de ser, pois, que o julgador, diante de intrincadas questões, socorre-se do costume do povo, que é Direito vivo, para julgar com Justiça. A lei, que é regra escrita, parada no tempo, pode não mais se adequar à realidade atual, revelando-se impotente como instrumento de pacificação social. No Brasil, que é nação nova, que luta contra a corrida do tempo em busca de progressos, essas regras de convivência que objetivam o Bem Comum se renovam, se ampliam de maneira inusitada. Por isso é que o nosso ordenamento jurídico recomenda o julgamento justo, em qualquer circunstância, ainda que tenha o julgador de valer-se do Direito não-escrito; vale dizer: do costume do povo.

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Mas o julgador, como o legislador, não é qualquer um: é indivíduo pinçado do meio do povo - é bem verdade -, mas com atributos morais, éticos e científicos satisfatórios para desincumbir-se do seu mister - o de operar o Direito e realizar a Justiça - com a mais absoluta desenvoltura. Assim não procedendo, não será julgador autêntico, verdadeiro. O Direito lhe fugirá das mãos e a Justiça passará de largo.


IV - Conclusão

Convém refletir: Não sendo boa a lei?... Não sendo saudável o costume?... Bem, leis corroídas pelo tempo ou leis novas elaboradas à revelia da vontade geral do povo não são leis boas; não representam o bom Direito e, portanto, não bastam, por si sós, para a realização da Justiça. O sentimento de Justiça, posicionado no tempo, há que ser proporcionado por regras escritas que exteriorizem a vontade geral do povo naquela exata quadra de tempo. A justiça de antanho nem sempre será a justiça de hoje. Assim, é que leis há, no Brasil, corroídas pelo tempo e que não mais se prestam ao papel de representar o Direito. Este, sim, que é sempre contemporâneo, atual! Pois nasce, se conserva e se renova nos atos humanos, nas relações socias, que por sua vez se transformam, se ampliam, multiplicam-se.

Por outro lado, o velho costume, esquecido, desprezado... bem como as práticas e usos irracionais, beligerantes ou de mau gosto... isto não pode representar o Direito, que é instrumento da Justiça. Frisamos linhas atrás que o povo, envolto em determinadas circunstâncias e no curso de determinada fração de tempo, pode não saber o que faz. Logo, o sentimento coletivo, assim comprometido pela irracionalidade e mesmo pela desinteligência, pode não ser capaz de divisar a Justiça, esta, a virtude sublime garantidora da harmonia sobre a Terra.

Costume, como expressão do Direito, a ser considerado pelo julgador no ato de solucionar o conflito, é aquele que se expresse em sadia mensagem para o futuro e que represente, na atualidade, a ordem racional do povo.

Se existe o Povo, existe o Direito!... Que está nas regras escritas ou nas regras não-escritas. O julgador, indivíduo a quem o povo confia a melindrosa tarefa de solucionar o conflito e restabelecer ou garantir a harmonia entre os homens, deve, antes de tudo, ter a capacidade de buscar na fonte o Direito. Bem, aplicá-lo ao caso concreto... é julgar com Justiça.


Notas

1. in DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, ed. univ.,3ª edição, vol. III-IV,Forense, p. 62.

2. Idem. Ibidem.

3. MIRANDA ROSA. Apud João Baptista Herkennhoff. Direeito e Utopia. Editora Acadêmica, 1993, p. 20.

4. RASCOE POUND. Apud SÉFORA SCHUBERT GELBECKE e outra. Frases Jurídicas. Juruá, 1999, p. 37.

5. Introdução à Ciência do Direito. Freitas Bastos, 25ª edição, p. 47.

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Sobre o autor
Oton Lustosa

juiz de direito em Parnaíba (PI), escritor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUSTOSA, Oton. A lei, o costume, o Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2113. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Texto publicado na Revista da Justiça Federal do Piauí nº 1, vol. 1, jul/dez 2000

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