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Eficácia dissuasória na aplicação da pena como um direito justo e a nefasta política do "hands off"

20/03/2012 às 12:56
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A aplicação da pena é uma arte desafiadora, repleta de teorias e que ainda comporta incontáveis divergências. Por lidar com um bem jurídico tão importante quanto é a liberdade, deve ser o clímax na busca pela excelência profissional, aplicando o direito justo acima de todas as coisas.

Palavras-chave: Sistema trifásico – exame criminológico – reincidência facultativa - eficácia dissuasória da pena – individualização da pena.


  Aplicar pena com maestria é tarefa árdua e complexa a qualquer magistrado, exige conhecimento interdisciplinar diferenciado e requer extremo zelo em cada caso concreto, por isso a necessidade de uma análise mais criteriosa sobre o tema.  Em síntese, os profissionais do Direito (cientes de que não existem semideuses de toga) devem sempre buscar a excelência no caso sub judice, enfrentando controvérsias como a possibilidade de aplicação de pena abaixo do mínimo legal, psicologia da conduta e finalidades da sanctio juris.

Prima facie, e por ser fruto de pretensas discussões, cumpre assinalar que conforme Lélio Braga CALHAU[1] a pena de morte, se adotada no Brasil, provavelmente somente seria aplicada na população já estigmatizada pelo nosso Direito Penal. Seria vingança pura, inútil e cara para a sociedade civil. Aliás, esta pena vedada pela Constituição já era questionada por Jean Paul SARTRE[2]: “Será que se pode julgar uma vida inteira por um ato?”

 Pois bem, conforme tem assentado o Supremo Tribunal Federal, “o processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo”[3].

Como se sabe, o Código Penal adotou o sistema trifásico (de Roberto LYRA) em seu artigo 68. Todavia, compreendemos a aplicação da pena em, pelo menos, cinco fases. Desse modo, após as aludidas três primeiras fases, o magistrado fixa o regime, diz se é possível a concessão de um benefício.

 Por fim, o juiz deve sempre fundamentar a necessidade da prisão na sentença condenatória criminal, nos termos do art.387, parágrafo único do Código de Processo Penal, essa fundamentação (jurídica, fática e sob a perspectiva da necessidade) perfaz a estrutura principal de uma sentença no âmbito penal. Ato contínuo, o magistrado fixa valor mínimo para reparação do dano na seara cível.

 Para o estabelecimento da pena-base, conforme propõe Guilherme de Souza NUCCI[4] deve-se fazer uma atribuição de pesos aos elementos do art. 59 do Código Penal que permita uma razoável compensação entre eles. Assim, o essencial é “não considerar tal procedimento como meramente aritmético”, pois o juiz deve ter a sensibilidade de avaliar o “grau de preponderância” de cada elemento, sendo o mais importante dentre eles a motivação, lastreada na prova dos autos, seguida pela personalidade do agente e culpabilidade.

 Outro ponto interessante a ser enfocado é a personalidade do agente, que não pode ser confundida com antecedentes criminais e, em regra, revela a pena adequada ao caso concreto. Em síntese, deve ser analisada antes do crime e não depois. Neste ponto, precisamente, destoa em importância o estudo da “psicologia da conduta” e a possível identificação de psicopatas, com alguns critérios referenciados por Ana Beatriz Barbosa SILVA[5].

 Nesse lume, também é de se notar a falta de bom senso na sistemática jurídica sobre a exigência e grau de depuração no exame criminológico, o que poderia evitar crimes bárbaros, como foi o conhecido caso Kayto em Cuiabá/MT -, no qual o MP deu parecer desfavorável à progressão de regime do condenado e, quando saiu, o maníaco estuprou e matou um menino de 10 anos no interior do Estado com o mesmo modus operandi do crime anterior.

 O exame criminológico não é obrigatório, muito menos foi abolido. Ele tem a sua medida no juiz. Neste sentido, aliás, a Súmula 439 do STJ: “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”. Em um dos precedentes (HC 122.850-RS) que deram ensejo à edição da súmula, o condenado foi promovido ao regime semiaberto, por decisão do juízo das execuções, que entendeu satisfeitos os requisitos de ordem objetiva e subjetiva, dispensando a necessidade de realização de exame criminológico.

 Outra circunstância digna de comentários é o comportamento da vítima, principalmente quando se tem em vista a falta de cuidados das vítimas de “crimes contra a dignidade sexual”. E, do mesmo modo, as consequências do crime, ocasião em que se deverá sopesar possível exaurimento (esgotamento) do delito, por exemplo, guando o sequestrador recebe o resgate (art.159 do Código Penal).

 Deve-se, ainda, fazer uma crítica veemente ao instituto da reincidência como circunstância obrigatória agravante, na esteira de Alberto SILVA FRANCO, pois o bom senso autoriza o juiz a aferir em cada caso concreto a recidiva criminosa, podendo ocorrer, inclusive, a incidência de uma atenuante inominada conforme as peculiaridades do crime. Em síntese, a reincidência deveria ser facultativa.

 Em outras palavras, caberia ao juiz considerar as circunstâncias do caso em concreto para decidir sobre a necessidade do recrudescimento na sanctio juris, devendo a reincidência ser legitimada pelo princípio constitucional da individualização judicial da pena (art. 5º, XLVI, CF).

 No que tange à reincidência, existe ainda a discussão acerca de suposta afronta ao princípio ne bis in idem (vedação de dupla valoração fática), sendo necessário observar-se, neste particular, a categórica dicção da Súmula 241 do STJ: “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial”.

 Em relação à polêmica pena abaixo do mínimo legal, existe a Súmula 231 do STJ versando sobre o assunto claramente: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Pois bem, entendo que o enunciado merece severas críticas. Em Direito Penal os benefícios aplicam-se da forma mais ampla possível, além do que o artigo 67, caput, parte final, do Código Penal elenca circunstâncias que “sempre atenuam”, portanto, o juiz deve sopesar “todas” as circunstâncias do crime, e não apenas “algumas”. Por conseguinte, o verbete se apoia em uma interpretação contra legem[6] e, pior, in malan partem.

 Deste modo, se a pena-base foi fixada no mínimo legal e se reconhece, por exemplo, a atenuante da confissão espontânea (CP, art. 65, III, d) ela será desconsiderada porque não poderá ser reduzida. Essa conclusão significa simplesmente desprezar a circunstância, ou não? Em outros termos, não repercutir na sanção aplicada, o que implica ofensa ao princípio constitucional da individualização da pena. Em síntese, o Magistrado não estaria legislando ou excedendo sua função, pois ele está simplesmente cumprindo a letra da lei e em benefício do agente, legitimado ainda pela Constituição Federal.

 Nesse sentido, vejamos o entendimento do Ministro Luiz Vicente CERNICCHIARO[7], invocando o princípio da individualização da pena e a própria justiça no caso concreto para defender a possibilidade da aplicação da pena abaixo do mínimo legal:

RESP – PENAL – PENA – INDIVIDUALIZAÇÃO – ATENUANTE – FIXAÇÃO ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL – O princípio da individualização da pena (Constituição, art. 5°, XLVI), materialmente, significa que a sanção deve corresponder às características do fato, do agente e da vítima, enfim, considerar todas as circunstâncias do delito. A cominação, estabelecendo o grau mínimo e grau máximo, visa a esse fim, conferindo ao juiz, conforme critério do art. 68 do CP, fixar a pena in concreto. A lei trabalha com o gênero. Da espécie, cuida o magistrado. Só assim, ter-se-á Direito dinâmico e sensível à realidade, impossível de, formalmente, ser descrita em todos os pormenores. Imposição ainda da justiça do caso concreto, buscando realizar o direito justo. Na espécie sub judice, a pena-base foi fixada no mínimo legal. Reconhecida, ainda, a atenuante da confissão espontânea (CP, art. 65, III, d). Todavia, desconsiderada porque não poderá ser reduzida. Essa conclusão significa desprezar a circunstância. Em outros termos, não repercutir na sanção aplicada. Ofensa ao princípio e ao disposto no art. 59, CP, que determina preponderar todas as circunstâncias do crime. (destacamos)

 Em relação às atenuantes inominadas, como excelente “válvula de escape” para mitigação da pena aplicada, insta assinalar a não adoção no Brasil da teoria da coculpabilidade limitada[8] do Estado, prevista em alguns países latino-americanos. De acordo com tal teoria, existem sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionada de certa maneira por causas sociais, havendo assim uma coculpabilidade com a qual a própria sociedade e o Estado deveriam arcar.

Outro ponto de destaque diz com as finalidades da aplicação da pena. Em síntese: a) prevenção geral (sociedade); b) prevenção especial (reincidência); c) repressão (retribuição pelo mal causado). Dessa mera análise, pode-se concluir que o Código Penal adotou a teoria mista ou eclética, expressamente prevista pela parte final do art.59 do Código Penal.

 Dessa expressão, ademais, surgem os princípios da desnecessidade da pena e da irrelevância penal do fato que, quando conjugados, obstam a infringência da pena a umainfração bagatelar imprópria”, conforme as circunstâncias do caso concreto e condições do autor.

 Sob outra perspectiva, sempre destacamos a eficácia dissuasória da pena, que simplesmente assinala que o mal recebido pela prática do crime deve ser flagrantemente maior que o benefício eventualmente alcançado. Em outras palavras, “o crime não compensa e não pode compensar”. Nesse sentido, percebe-se que o art.243 da Constituição Federal autoriza o Estado, inclusive, a fazer desapropriação-confisco pelo cultivo ilícito de psicotrópico.

 Podemos observá-la, ademais, nos efeitos genéricos da condenação, como a perda do produto do crime, tal como ocorreu no caso envolvendo o megatraficante colombiano Juan Carlos Abadia, uma vez que o Avião do criminoso está sendo utilizado no combate ao crime organizado. “Nós temos que golpear a espinha dorsal do tráfico de drogas. Tirando todo o dinheiro proveniente dessa atividade criminosa e aplicar esse dinheiro na prevenção”, diz o juiz federal Odilon de OLIVEIRA.

 Esta eficácia dissuasória, com a devida vênia, não foi observada em crimes tributários, pois na esteira do art. 9° da Lei 10.684/2003 o pagamento do tributo é causa de extinção da punibilidade. Aliás, esse pagamento pode ser feito a qualquer tempo, mesmo depois de recebida a denúncia (foi suprimida a restrição temporal referente à anterioridade ao recebimento da denúncia). Em outras palavras, a sonegação de tributos é uma atividade ilícita que, em termos penais, tem “risco zero”.

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 Tratando-se agora da fase da execução da pena, vale destacar a nefasta política do hands off (“lavar as mãos”, “não interferir”), muito bem explicada por Luiz Flávio GOMES[9], uma vez que a pena de prisão está sendo executada em nosso país de forma cruel e desumana, não contribuindo em absolutamente nada para a ressocialização do preso. De acordo com o autor, o Judiciário sempre se mostrou criminosamente conivente com o Poder Executivo na tarefa de enfrentar em sua raiz o problema carcerário.

 Aliás, Claus ROXIN[10] preconiza, em sua teoria dialética unificadora que, para se identificar os fins da pena, deve-se analisar cada um de seus momentos, isto é, da cominação, da aplicação e da execução, e suas particularidades, pois em cada um deles prevalece uma ideia de fim.

 Outro ponto interessante a ser destacado, objeto de algumas confusões, é o limite de cumprimento da pena em nosso país. Como se sabe, por força do art.75 do Código Penal a pena de cumprimento não pode ser superior a 30 anos de reclusão (não pode haver pena perpétua), todavia, vemos casos em que foram aplicados, por exemplo, 278 anos de prisão, e então, o que isso significa?

 Ora, esse montante final na aplicação da pena é levado em consideração apenas para o cálculo da concessão de eventuais benefícios, tais como: progressão de regime (1/6, 2/5 ou 3/5, conforme o caso) e livramento condicional (1/3, ½ ou 2/3, conforme o caso), e não para o efetivo cumprimento da pena.

 Essa conclusão, aliás, é extraída de interpretação a contrario sensu da famosa Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “A pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução”.

 Não podemos nos esquecer, ainda, de fazer a necessária distinção entre habitualidade criminosa e continuidade delitiva no caso concreto, que são conceitos, inclusive, antagônicos. Na primeira hipótese há sucessão planejada do crime, devendo o criminoso ficar sujeito a reprimenda mais severa, enquanto no crime continuado, o próprio sistema da exasperação (aumento e não soma das penas) adotado pelo Código Penal neste aspecto implica verdadeira benesse ao acusado em face das peculiaridades do caso concreto.

 Em conclusão, percebe-se que a aplicação da pena é uma arte desafiadora, repleta de teorias e que ainda comporta incontáveis divergências. Por lidar com um bem jurídico tão importante quanto é a liberdade, deve significar simplesmente o clímax na busca pela excelência profissional, desde que o magistrado ou mesmo advogado e até promotor sejam sensíveis à realidade e atentos à proporcionalidade em cada caso concreto, procurando aplicar o direito justo acima de todas as coisas.


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] CALHAU, Lélio Braga. Saddam Hussein e a Pena de Morte. Disponível na internet www.ibccrim.org.br, 27.02.2007. 

[2] SARTRE, Jean Paul. Entre Quatro Paredes. Editora: Civilização Brasileira, 5ª edição, Rio de Janeiro: 2009, p.121.

[3] HC 97256, Rel.  Min. AYRES BRITTO, julgado em 01/09/2010.

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. Editora: RT, 3ª edição, p.398.

[5] SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Editora: Fontanar, 2008.

[6] GRECO, Rogério. Curso de direito penal - parte geral. 4ª edição, Editora Impetus, 2004.

[7]RE 597270 RG-QO/RS. Rel. Min. Cezar Peluso, j. em: 26/03/2009.

[8] Cf. ZAFFARONI, Eugenio RaulPIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Ed. RT, 1997, p. 613.

[9] GOMES, Luiz Flávio. Juízes proíbem mais presos nos presídios. Fim da política do "hands off"?. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1667, 24 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10880>. Acesso em: 14 jan. 2012.

[10] ROXIN, Claus. Derecho penal parte general: Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Tomo I. Tradução e notas Diego-Manuel Luzón Pena, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madri (Espanha): 2ª Edição alemã, 1997, p. 95.


BIBLIOGRAFIA

CALHAU, Lélio Braga. Saddam Hussein e a Pena de Morte. Disponível na internet www.ibccrim.org.br, 27.02.2007.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal - parte geral. 4ª ed., Impetus, 2004.

NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: RT, 3ª ed., 2010.

ROXIN, Claus. Derecho penal parte general: Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. Madri: 2ª ed. alemã, 1997.

SARTRE, Jean Paul. Entre Quatro Paredes. Editora: Civilização Brasileira, 5ª edição, Rio de Janeiro: 2009.

SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Editora: Fontanar, 2008.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Ed. RT, 1997.

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Sobre o autor
Júlio Medeiros

Advogado criminalista. Professor de Direito Penal da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Júlio. Eficácia dissuasória na aplicação da pena como um direito justo e a nefasta política do "hands off". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3184, 20 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21323. Acesso em: 5 mai. 2024.

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