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As diretrizes do projeto de Código de Processo Civil.

A constitucionalização vertical e horizontal do processo no contexto da quarta onda renovatória

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6.O princípio da sociabilidade

Conforme nossa percepção, a sociabilidade cria uma bilateralidade atributiva interna nos direitos subjetivos. Segundo Miguel Reale, o Direito é bilateral-atributivo na medida em que ao atribuir um direito a um sujeito, impõe um dever a outro, tornando garantida a pretensão do credor em virtude da exigibilidade a ser exercitada contra o devedor.[14] Entretanto, essa bilateralidade é externa, ou seja, existente entre os sujeitos da relação jurídica.

O código civil de 2002, e agora o nosso código de processo civil, seguindo a sistemática constitucional, procuram inserir o dever de sociabilidade dentro dos direitos subjetivos, originando, portanto, o que podemos chamar de bilateralidade atributiva interna, segundo a qual o exercício de um direito está condicionado ao respeito ao bem comum. Dessa forma, inaugurou-se uma convivência necessária entre o direito de pretender algo e, concomitantemente, o dever de exercer essa faculdade conforme sua finalidade social, sob pena, por exemplo, de abuso de direito e, portanto, de responsabilidade civil segundo artigo 187, do código civil. Para o professor Nelson Rosenvald, por meio de uma metáfora, sintetiza toda sistemática da sociabilidade. Segundo ele, “cada membro da orquestra porta seu instrumento, cada qual com sua finalidade. O maestro deverá reger sem a vaidade de sobrepor-se aos músicos, mas apenas para encaminhar a perfeita execução da harmonia, cujos limites encontram-se na partitura.”[15]

O projeto de código de processo civil, nessa linha de sociabilidade, prevê que ao aplicar a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, observando sempre os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (art. 6º).

Aliás, não é por outro motivo, que defendemos a necessária intimação prévia e liminar da Defensoria Pública nas demandas contra grupo de pessoas necessitadas, despidas de organização associativa ou sindical, sob pena de nulidade do processo. A proposta é no sentido de instituirmos o que Luis Fernando Coelho denomina “dialética da participação”[16] no processo civil, para a partir dessa realidade e da conscientização do papel do direito e das Instituições Democráticas, frente à conflituosidade social, contribuirmos para a implementação de um processo efetivamente democrático, pluralista e participativo.

Ainda com foco social, o princípio em tela serve de fundamento à nossa proposta de ampliarmos as possibilidades do pagamento parcelado, hoje residente no artigo 745-A do atual CPC. De fato, defendemos que o pagamento em frações, independentemente da anuência do credor, configura um verdadeiro direito material e, como tal, pode ser exercido por meio de qualquer ação ou exceção, e não apenas no bojo da ação de execução, desde que justificada sua mora (Cf. Repro/RT nº 166). E agora vamos além ao propormos que o juiz poderia melhorar as condições de pagamento, ainda menos onerosas ao devedor que aquelas já previstas, desde que ouvidas as partes. Então, no artigo 872 do projeto enviado à Câmara dos Deputados, sugerimos a inclusão de outros dois parágrafos: § 4º. O juiz poderá melhorar as condições de pagamento previstas no caput deste artigo, segundo a situação econômica do devedor, ouvidas previamente as partes. § 5º. O direito previsto neste artigo também poderá ser exercido pelo devedor por meio de ação ou de defesa, desde que justificada a sua mora.

No nosso sentir, somente com propostas como tais é que construiremos um processo civil com verdadeira função social e instrumento de redução das desigualdades sociais e da marginalização (no caso, da marginalização/exclusão civil), livre da mera retórica e do patrimonialismo selvagem. 


7. O princípio da eticidade

A expressão ética não possui um sentido unívoco. No entanto, na presente abordagem, tal termo deve ser entendido como o conjunto de valores selecionados pela experiência cultural de determinada sociedade voltados a regulamentar a conduta de seus membros. A boa-fé objetiva, por sua vez, é um valor ético cujo objeto regulamentado é a conduta do homem enquanto sujeito de uma relação jurídica material ou processual. Para Judith Martins, no conceito de boa-fé objetiva “estão subjacentes idéias como: “regra de conduta, fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado.”[17] O código civil, por exemplo, acolhera três funções desempenhadas pelo princípio da boa-fé objetiva, quais sejam, a função interpretativa/integrativa, a função de fonte de obrigações e a função de limite dos direitos subjetivos. [18]

Portanto, a boa-fé objetiva, enquanto reflexo da dignidade da pessoa humana nas relações jurídicas, é um princípio inelidível e inderrogável na luta pela justiça e no combate à desigualdade social, constituindo, dessa forma, um instituto de ordem pública e índole democrática.

Assim, não nos estranhemos se o legislador exigir das partes certa postura colaborativa no processo civil. Assim, dispõe o projeto que as partes e seus procuradores têm o dever de contribuir para a rápida solução da lide, colaborando com o juiz para a identificação das questões de fato e de direito e abstendo-se de provocar incidentes desnecessários e procrastinatórios (art. 8º).

     Mas, essa exigência ética não se limita às partes, mas atinge o juiz, do qual se espera uma postura ativa, substancial e responsável. Não é mais admissível que o Poder Judiciário se limite a meras questões formais, muitas delas colhidas de uma filosofia liberal-individualista já superada e incompatível com o Estado Democrático de Direito, deixando de enfrentar o mérito, por exemplo, de uma ação coletiva cuja causa de pedir se fundamenta em improbidade administrativa ou em dano a meio ambiente.[19]

Em feliz dizer, Cândido Rangel Dinamarco afirma, em uma de suas obras[20] dedicadas ao estudo das Instituições de Direito Processual Civil, que o “juiz mudo tem também algo de Pilatos e, por temor ou vaidade, afasta-se do compromisso de fazer justiça”.

No entanto, não nos iludamos. Esse discurso, embora muito lógico e coeso, não navega em águas mansas, especialmente na prática judiciária. Realmente, alguns falsos moralismos ou “eticismos” são levantados a fundamentar posturas mais neutras, omissas e irresponsáveis de parte de nossa Magistratura. Aliás, o mais grave é que esse discurso, às vezes, encontra eco e certa acolhida, em algumas circunstâncias. Por exemplo, militantes do chamado “consequencialismo da decisão” fizeram incluir no texto do Código de Ética da Magistratura Nacional, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, Res. 60/2008) que incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências de pode provocar (art. 25).

Ora, não negamos que o juiz deve ser prudente, mas a afoita e desavisada aplicação dessa orientação pode servir de álibi à conduta omissiva do magistrado, o que se agrava quando ele é submetido análise de casos de violação a direitos fundamentais, especialmente em conflitos de massa. Infelizmente, já presenciei um juiz negar um pedido de tutela de urgência para a interdição de uma cadeia pública feminina, em estado de superlotação e de surto epidêmico de sarna entre as presas, pois, segundo ele, o sistema carcerário não está preparado para suportar o “peso” de eventual concessão da medida. Em outra ocasião, um magistrado negara medida de urgência para determinar à concessionária de energia elétrica a restabelecer o fornecimento em imóvel que abrigava uma criança que utilizava de aparelho elétrico de ventilação, pois, segundo ele, sua decisão poderia incitar a inadimplência entre os outros consumidores.

Em suma, o que não podemos admitir é que essa falsa “ética prudencial” possa exonerar o Poder Judiciário ou parte dele de suas responsabilidades.

De fato, o juiz, no exercício da atividade jurisdicional, possui não só um poder, mas, também, a responsabilidade (dever) da jurisdição, com a adoção de medidas de ofício, se necessárias. Por exemplo, o projeto prevê que em casos excepcionais ou expressamente autorizados por lei, o juiz poderá conceder medidas de urgência de ofício (art. 277). Em outra parte, quanto trata da sentença, dispõe: o juiz proferirá sentença de mérito sempre que puder julgá-lo em favor da parte a quem aproveitaria o acolhimento da preliminar (art. 475), num processo livre dos grilhões do formalismo liberal e concretizado com certa flexibilidade procedimental, podendo o juiz, por exemplo, dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova adequando-os às necessidades do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico (art. 118, V).[21]

Aliás, não é por outro motivo que entendemos que o juiz não pode indeferir uma tutela urgente, por falta de provas dos seus requisitos, sem que antes permita à parte que as produza, ainda que liminarmente. Defendemos que, feito o pedido liminar, o juiz deveria designar audiência de justificação, para a produção de provas orais pertinentes, antes de indeferi-lo por insuficiência probatória. É medida de efetividade da tutela jurisdicional. Aliás, pondera José Carlos Barbosa Moreira sobre a efetividade do processo: “Qualquer instrumento será bom na medida em que sirva de modo prestimoso à consecução dos fins da obra a que se ordena: em outras palavras, na medida em que seja efetivo. Vale dizer: será efetivo o processo que constitua instrumento eficiente de realização do direito material.”[22]

Enfim, a tese da obrigatoriedade da audiência de justificação, para a complementação probatória, atende exatamente aos ditames dessa tutela mais efetiva, justa, célere e adequada.


8.O princípio da operabilidade

Operabilidade significa realizabilidade e efetividade. São virtudes de um sistema apto a interagir com a realidade e com as peculiaridades de cada caso concreto. Por exemplo, para assegurar essa concretude ao sistema de Direito Privado, utilizou o código civil de alguns meios. Por exemplo, em diversos artigos, ele concedeu ao juiz o poder de decisão em matérias que exigem, para a formulação de uma solução equânime, uma análise apurada das particularidades do caso. Isso ocorre, por exemplo, na lesão, quando a pessoa que estava em perigo não pertence à família do declarante (art. 156, parágrafo único). Nesse caso, o juiz decidirá conforme as circunstâncias. Em outro artigo, dispõe o código civil que o juiz poderá se recusar a homologar a separação do casal caso ela não preservar os interesses dos filhos ou de um dos cônjuges ( art. 1574, parágrafo único).

Vale a pena anotar que essa atribuição de poderes ao magistrado se coaduna com o sistema jurídico aberto e é uma exigência do mundo contemporâneo, cenário de contínua e permanente proliferação de relações jurídicas complexas, plurissubjetivas e multifacetárias, cujos conflitos de interesses exigem do ente pacificador a liberdade e a força necessárias à sua satisfatória dissolução. Sobre esse contexto, observa Kazuo Watanabe que o Poder Judiciário “passou a solucionar não somente os conflitos intersubjetivos de interesses, segundo o modelo liberal individualista, como também a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo, político e jurídico, e também implementando o conteúdo promocional do Direito, como o contido nas normas constitucionais e nas leis que consagram direitos sociais e protegem o meio ambiente, o consumidor e outros interesses difusos e coletivos”.[23]

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No processo civil tradicional, o juiz sempre ostentou importantes poderes, especialmente instrutórios, que tornam a tutela mais operável. Agora, o projeto de novo código, a seu turno, com o objetivo de simplificar o procedimento e torná-lo mais concreto, por exemplo, extingue a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação (art. 17: Para propor a ação é necessário ter interesse e legitimidade); redefine os institutos da conexão e da continência (arts. 55 e 56); extingue com o incidente de exceção de incompetência (art. 64. A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como preliminar de contestação, que poderá ser protocolada no juízo do domicílio do réu); dentre outras inovações.

Merece destaque a preocupação do legislador com a definição dos recursos cabíveis. Parece, ao menos numa análise preliminar, que o projeto teria adotado a seguinte regra: se a decisão acolher as matérias dos artigos 467 ou 469 e colocar fim a alguma fase processual será sentença, recorrível por apelação, salvo se houver previsão expressa de agravo de instrumento (por exemplo, no incidente de desconsideração da personalidade jurídica - art. 79. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento; na concessão da justiça gratuita – art. 99, § 2º Das decisões relativas à gratuidade de justiça, caberá agravo de instrumento, salvo quando a decisão se der na sentença; na decisão que conceder ou negar a tutela de urgência e a tutela da evidência, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. Parágrafo único. A decisão será impugnável por agravo de instrumento – art. 271).

Importante indicarmos, ainda, a redefinição do conceito de sentença, com a adoção de um critério misto (material e formal), o que acabaria com recentes debates e divergências sobre o que seria sentença, especialmente após a Lei nº 11.232, de 2005, que alterou o artigo 162, § 1º, e deixou sua redação um tanto quanto deficiente e ambígua: Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei. Com o projeto, sentença será o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 472 e 474, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como o que extingue a execução (art. 170).

Ademais, o projeto exige a intimação pessoal do devedor para o cumprimento da sentença, pondo fim a intensos debates (art. 590); define o que consiste “preço vil” (art.841: não será aceito lance que ofereça preço vil. Parágrafo único. Considera-se vil o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação, salvo se outro for o preço mínimo estipulado pelo juiz para a alienação do bem), dentre outras normas mais claras e precisas.

Em suma, o legislador finalmente entendeu que o texto simples torna mais intensa e efetiva a aplicação da norma e operável o sistema de tutela de direitos.

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Sobre o autor
Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré

Defensor Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP. Membro do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania da DPESP. Autor do livro "A responsabilidade civil como um sistema aberto" (Editora Lemos e Cruz, 2007) e de vários artigos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. As diretrizes do projeto de Código de Processo Civil.: A constitucionalização vertical e horizontal do processo no contexto da quarta onda renovatória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3261, 5 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21936. Acesso em: 19 abr. 2024.

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