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A Súmula Vinculante nº 11 e a legitimidade do uso de algemas

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O STF julgou algumas Reclamações em que era alegado o descumprimento da Súmula Vinculante 11 e tem considerado legítimo o uso das algemas, justificada a excepcionalidade da medida, o que não contraria o enunciado.

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo investigar se o uso de algemas, apesar das restrições impostas pela Súmula Vinculante nº 11, é legítimo. Divide-se este estudo em três partes. Na primeira parte, analisa-se a legislação brasileira sobre o tema, tanto a histórica quanto a atual. Na segunda parte, são abordadas teorias criminológicase princípios gerais do direito aplicáveisao tema, tendo em vista a reduzida doutrina que trata do uso de algemas. Na terceira parte, analisa-se a edição da Súmula Vinculante nº 11, seus precedentes e a repercussão deste verbete nas jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça, de alguns Tribunais Regionais Federais e do próprio Supremo Tribunal Federal. Através de pesquisas em livros, em artigos, trabalhos acadêmicos e notícias disponíveis na internet, bem como na jurisprudência, buscar-se-á, através do método dedutivo, responder se o uso de algemas é, de fato, legítimo.

Palavras-chave: Uso de algemas. Legitimidade. Emprego da força. Abuso. Súmula Vinculante nº 11.


1 – INTRODUÇÃO

As algemas consistem em duas peças metálicas em formato circular, sendo ambas as peças ligadas por correntes ou por uma espécie de dobradiça. Cada peça circular possui uma parte móvel e dentada, que, ao ser inserida no corpo da algema, prende-se a uma trave, somente podendo a algema ser aberta com o uso de uma chave.

O diâmetro das algemas pode ser regulado pela simples inserção da parte móvel ao corpo do instrumento, adaptando-as aos pulsos de quem for detido, sem apertar de maneira a lesionar os pulsos e impedir a circulação sanguínea. 

Pela simbologia que a algema carrega, de verdadeiro instrumento do Estado para subjugar aqueles que desobedecem às suas leis, ela deve ser restrita a situações estritamente necessárias, de modo a não ferir a dignidade humana, não podendo ser feita associação entre a pessoa algemada e sua culpabilidade, desrespeitando-se a presunção de sua inocência.

As algemas não podem se prestar ao papel das cordas e das varas de madeira, utilizados pelos caçadores de outrora para carregarem lobos que dizimavam os seus rebanhos, convertendo o criminoso (que é pessoa humana, por mais bárbaro e repulsivo que seja seu crime) em um animal feroz, que deve ser caçado e, após, exibido ao povo, que clamou pela sua eliminação.

Na atualidade, tem sido recorrente a divulgação de fotos e vídeos mostrando pessoas que compõe o estrato mais alto da sociedade brasileira com algemas nos pulsos. A polícia ganha prestígio da população quando esta vê uma atuação enérgica, livre de prevenções em razão do poder econômico dos detidos.

Quando da prisão de figurões e colarinhos-brancos, alguns políticos e juristas levantam a voz contra o emprego de algemas nessas operações policiais e a divulgação de imagens desses presos com os pulsos agrilhoados. Apesar do respaldo da população às ações da polícia, há um apelo político contra o uso de algemas em pessoas que tem uma “imagem a prezar”.

No turbilhão de prisões de pessoas envolvidas com crimes financeiros, corrupção e lavagem de dinheiro, surgiu a Súmula Vinculante nº 11. A atualidade datemática, em razão da referida súmula, e as questões que ela suscita, influenciaram na escolha do presente tema. Foram suscitadas dúvidas quanto às intenções do Supremo Tribunal Federal (STF) ao editar o referido verbete sumular.

Longe de contestar as intenções do STF ao editar a Súmula Vinculante nº 11, o presente trabalho visa demonstrar se o uso de algemas é legítimo, apesar das restrições impostas pela dita súmula.

A primeira parte do estudo (Capítulo 2) trata da legislação sobre o tema, desde as Ordenações Filipinas e as leis da época do Império e do início da República, até as últimas modificações feitas no texto do Código de Processo Penal, bem como outras leis ainda vigentes. Apesar de não existir lei regulamentadora do uso de algemas, as normas que tratam do uso da força pelas agentes públicos limitam o algemamento, mesmo quando não há referência direta a esses instrumentos.

Na segunda parte (Capítulo 3), aborda-se a espetacularização do uso de algemas, analisando as teorias do Direito Penal do Inimigo e do Crime do Colarinho Branco. A análise de tais teorias é importante quando se enfrenta a temática do uso de algemas, pois tratam-se de dois tipos diversos de criminalidade: uma violenta e direta (realizada pelo criminoso perigoso) e outra que é também violenta, mas indireta (perpetrada pelo criminoso do colarinho branco).

Naterceira parte (Capítulo 4), analisa-se primeiramente o instituto da súmula vinculante e, após, o processo de edição da Súmula Vinculante nº 11. Nesse capítulo, são trazidos também os precedentes da súmula, sendo analisadas, em seguida, as jurisprudências surgidas após esse verbete sumular no Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos Tribunais Regionais Federais (TRFs) e no próprio STF.

Deve-se ter em mente que a proporcionalidade deve sempre ser observada na atuação do Estado, principalmente quando da restrição da liberdade individual.

O agente estatal, sob o argumento da discricionariedade (conveniência e oportunidade da sua atuação), não pode desconsiderar os limites legais aos seus atos.

A súmula vinculante obriga tanto o Judiciário quanto os órgãos da administração pública (e aí se incluem os órgãos da segurança pública, bem como aqueles ligados à administração penitenciária, no caso específico da Súmula Vinculante nº 11) a seguirem seu entendimento.

Através de pesquisas na legislação, na doutrina, na jurisprudência, em artigos e trabalhos acadêmicos e notícias em sites da internet, analisa-se a legitimidade do uso das algemas e seus prós e contras, com vistas tanto à atuação do Estado em seu direito de punir quanto à proteção dos direitos de quem tem sua liberdade cerceada pelo Poder Público.

Por fim, utilizando-se do método dedutivo,buscar-se-á responder,após a análise de tudo o que foi pesquisado, à seguinte questão: é legítimo o uso de algemas?


2 - A ALGEMA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O artigo 199 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Execuções Penais)[1], prevê, nas disposições finais e transitórias do referido diploma legal, que o emprego de algemas será disciplinado em decreto federal. Não se tem conhecimento da edição de qualquer norma de âmbito federal tratando especificamente do uso de algemas.

A Resolução nº 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciaria (CNPCP), de 11 de Novembro de 1994 (publicada no Diário Oficial da União em 02/12/1994), fixa Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos no Brasil, tendo em vista recomendação do Comitê Permanente de Prevenção ao Crime e Justiça Penal das Nações Unidas, sendo o texto da resolução quase idêntico ao das Regras Mínimas editadas pela ONU. O artigo 29 da resolução, ao tratar dos meios de coerção, refere-se ao uso de algemas.

Art. 29. Os meios de coerção, tais como algemas, e camisas-de-força, só poderão ser utilizados nos seguintes casos:

I – como medida de precaução contra fuga, durante o deslocamento do preso, devendo ser retirados quando do comparecimento em audiência perante autoridade judiciária ou administrativa;

II – por motivo de saúde, segundo recomendação médica;

III – em circunstâncias excepcionais, quando for indispensável utilizá-los em razão de perigo iminente para a vida do preso, de servidor, ou de terceiros.

O artigo 25 da Resolução nº 14 do CNPCP informa que algemas, correntes e camisas-de-força não serão empregados como instrumentos de punição. Fato é que a resolução, apesar de sua importância pedagógica, não tem força obrigatória, não suprindo a necessidade de lei específica tratando do emprego de algemas.

Antes e depois da Lei de Execuções Penais (LEP), diplomas legais trataram do emprego de meios de contenção, algunssem referirem-se especificamente às algemas. A existência de tais normas garante um mínimo de segurança ao cidadão, que não poderá ser algemado/detido arbitrariamente, e permite ao Estado o exercício de seu Poder de Polícia, observados os limites legais e princípios como o da proporcionalidade.

Ao mesmo tempo, de acordo com Luiz Flávio Gomes, “traz uma certa insegurança a falta desse decreto específico”[2] sobre o emprego de algemas, em razão de o Brasil adotar o sistema do civil law. Em igual sentido expressa-se Aristides Medeiros.

Com efeito, dispõe expressamente o art. 199 da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210, de 11/07/84) que "O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal", ou seja, enquanto não tiver sido efetuada a respectiva regulamentação, é óbvio que ilegal será fazê-lo sponte propria[3].(sic)

O sistema jurídico do civil law tem por premissa que todo o direito deve ser codificado. As normas programáticas não tem aplicação imediata, caracterizando simples diretiva para que o legislativo proceda à feitura de norma complementar e regulamentadora.É na categoria das normasprogramáticas que se encaixa o art. 199 da LEP.

Se o emprego de algemas deve ser disciplinado por decreto federal, tal norma deve ser editada e aprovada, a fim de legitimar o uso de tal apetrecho. Mas não se pode deixar de utilizar um importante instrumento de contenção e segurança, como o são as algemas, pelo simples fato de seu uso não haver sido disciplinado em norma federal. Antes de ser sumulado o uso de algemas pelo STF, Mirabete já escrevia que:

o uso desnecessário e abusivo de algemas fere não só o art.40 da Lei de Execução Penal, como também o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, que impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do preso.[4]

O artigo 40 da LEP estabelece que a todas as autoridades impõe-se o respeito à integridade física e moral dos presos, sejam eles provisórios ou definitivos.

De tal modo, as algemas devem continuar a ser utilizadas, em conformidade com as leis de nosso sistema jurídico que autorizam e limitam o uso da força pela polícia, devendo ao mesmo tempo ser respeitados os direitos garantidos pela Constituição Federal, a fim de evitar abusos por parte dos agentesdo Estado.

2.1–EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA DAS ALGEMAS NO BRASIL

É importante analisar a evolução histórica dos meios de contenção,de maneira ilustrativa, demostrando como o ordenamento jurídicodo passado exerce influência sobre o atual, e como os grilhões e algemas ganharam conotação negativa, apesar da necessidade de seu uso. 

No século XVI aplicava-se no Brasil o direito português, de tradição romano-germânica, em razão da colonização. Com a União Ibérica (o rei da Espanha era também rei de Portugal), vigoraram no Brasil as Ordenações Filipinas.

Como a igualdade não era um princípio consagrado no inicio da Idade Moderna, havia tratamento diferenciado para os filhos da nobreza ou para aqueles que ocupavam cargos importantes no Estado.No livro V, título CXX, das Ordenações Filipinas, fica clara a regalia proporcionada aos fidalgos e bem-nascidos, bem como a suas esposas, como se lê abaixo. 

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Mandamos, que os Fidalgos de Solar, ou assentados em nossos Livros, e os nossos Desembargadores, e os Doutores em Leis, ou em Canones, ou em Medicina, feitos em Studo universal per exame, e os Cavalleiros Fidalgos, ou confirmados per Nós, e os Cavalleiros das Ordens Militares de Christo, Santiago e Aviz, e os Scrivães de nossa Fazenda e Camera, e as mulheres dos sobreditos, em quanto com eles forem casadas, ou stiverem viuvas honestas, não sejão presosem ferros, senão por feitos, em que mereção morrer morte natural, ou civil.[5](sic)

O texto das Ordenações provinha de ordens do rei, surgindo como uma maneira de,conforme escreve Mônica Sifuentes, “compilar o direito, que se encontrava esparso”[6], sendo o rei a “fonte de toda justiça”[7].

Os grilhões, antecessores das atuais algemas, prendiam tanto os pulsos quanto os tornozelos, sendo cada grilheta ligada por correntes ou barras metálicas.Nos pés, preferia-se utilizar grilhões ligados por correntes, o que possibilitava um deslocamento mínimo ao detido, dificultando sua fuga.[8]

O termo grilhão é associado a tortura, suplício, pois os prisioneiros eram encarcerados com pés e mãos agrilhoados, chegando as correntes a serem presas às paredes das celas. De tal modo, o grilhão tem, em nossa sociedade, uma valoração negativa, comoregistra Fernanda Herbella.[9]

No Brasil Colonial, infligia-se aos escravos suplícios como o tronco, que consistia em umaestrutura de madeira com buracos, nos quais eram presos os pés ou as mãos, em um suplício que Debret[10] dizia causar “mais tédio do que dor”, tendo em vista o longo período de tempo em que os escravos permaneciam presos.

Os grilhões hoje são empregados apenas nos tornozelos e com a mesma finalidade das algemas, qual seja: impedir a fuga do prisioneiro condenado ou da pessoa detida quando do seu transporte fora da cela, acompanhado por agente do Estado.

No Brasil Imperial, apesar do nascimento das ideias liberais na Europa, eram empregadas, além das penas privativas de liberdade, penas corporais e infamantes, como a de galés.

Art. 44. A pena de galés sujeitará os réos a andarem com calceta no pé, e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos publicos da provincia, onde tiver sido commettido o delicto, á disposição do Governo.[11](sic)

O Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, que regulamentava a Lei nº 2.033, de 24 de setembro do mesmo ano, limitava o uso das algemas, mas sem levar em conta o status social do conduzido, inclusive prevendo multa a ser paga pela autoridade que não justificasse o uso da algema, o que mostra uma quebra como espírito das Ordenações Filipinas, analisadas linhas acima.

Art. 28. Além do que está disposto nos arts. 12 e 13 da Lei, a autoridade que ordenar ou requisitar a prisão e o executor della observarão o seguinte:

O preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo conductor; e quando não o justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de 10$000 a 50$000 pela autoridade a quem fôr apresentado o mesmo preso.[12](sic)

Com a Constituição Republicana de 1891, promulgada após a abolição da escravatura e o fim do período Imperial, passou o Estado brasileiro a preocupar-se com a humanização das penas. Tal humanização é representada pela extinção das penas de galés e do banimento judicial (§20, art. 72 da Constituição de 1891)[13], símbolos de um Estado autoritário e de mentalidade medieval.

Em razão da construção de muros nas prisões, bem como da própria estrutura das celas, era desnecessário que o condenado fosse acorrentado dentro de um espaço mínimo, tendo em vista a condição de vida no cárcere. Por tal motivo, algemas só seriam empregadas quando os detentos fossem conduzidos para julgamentos.

Em fins do século XIX e começo do século XX, inicia-se no Brasil a construção tardia de uma mentalidade moderna, tendo em vista o atraso social que a escravidão e a manutenção de uma sociedade estratificada e organizada nos moldes do absolutismo europeu causaram ao país. As leis imbuídas com essa mentalidade influenciaram leis posteriores, as quais impõem ao Estado o respeito ao cidadão, como se verá adiante.

2.2 – CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

O Código de Processo Penal (CPP)[14],instituído através do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, sofreu várias alterações de seu texto original.

Observe-se que o texto original não faz referência expressa às algemas.Mas o seu uso, apesar de não estar disciplinado no CPP, pode ser controlado, bastando que sejam obedecidas as disposições dessa codificação, bem como outras leis que limitam o exercício do poder de polícia.

O art. 284 do CPP disciplina que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”.

Entende Rodrigo Carneiro Gomes que o uso da algema não pode ser associado ao emprego de força, pois,

na verdade, a algema é forma de neutralização da força, contenção e imobilização do delinquente. É menos traumático, doloroso e arriscado imobilizar o meliante pelo recurso à algema, do que pelo acesso a técnicas corpóreas de imobilização.[15](sem grifo no original)

Como o policial não pode prever a reação da pessoa que será conduzida, as algemas acabam por serem empregadas, a fim de evitar surpresas à equipe policial, tais quais fugas ou reações violentas, que acabam inviabilizando uma persecução penal satisfatória.

Novamente, traz-se transcrição de um texto de Rodrigo Carneiro Gomes, que é delegado daPolícia Federal.

As algemas não servem apenas para garantia de segurança da equipe policial ou para assegurar a integridade física do preso em flagrante delito ou por ordem judicial, no caso específico de atos de polícia judiciária. Há uma terceira razão: inibir a ação evasiva do preso e atos irracionais num momento de desespero. Nesse ponto, pouco importa a periculosidade do agente, sua estrutura corpórea, idade ou status político e social.[16]

Mais à frente, o CPP prevê, em seu artigo 292, que:

Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

Neste artigo, fica a autoridade policial autorizada a deter pessoas que resistamao ato do policial em cumprimento do dever legal (de prender em flagrante) ou da ordem judicial, devendo ser lavrado termo no qual justifica-se o uso desses “meios necessários”.

O problema, segundo Fernanda Herbella, é que a norma “foi lacunosa quanto aos meios contentores da força” [17],podendo ser usadas tanto algemas quanto outros meios consideradosnecessários para vencer a resistência imposta pelo detido ou por terceiros. Por obvio, não devem ser usados meios que excedam o estrito cumprimento do dever legal, excludente de ilicitude prevista no Código Penal.

Percebe-se que, apesar de não utilizar a palavra algema, o legislador definiu comportamentos a serem seguidos pelo policial, a fim de que seja legítimoo cerceamento da liberdade através de apetrechos como as algemas, devendo o eventual excesso ser punido.

A reforma promovida pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011, inseriu no sistema jurídico brasileiro as medidas cautelares penais diversas da prisão, as quais tem o escopo de evitar que presos provisórios sejam encarcerados em um sistema prisional que pouco guarda de seu papel ressocializador. Entre tais medidas, destaca-se, para os fins do presente estudo, o monitoramento eletrônico (art. 319, IX), o qual é possibilitado com o emprego de tornozeleiras eletrônicas.

O uso da tornozeleira eletrônica

é medida que se presta a todas as finalidades das cautelares – garantia da ordem pública, da instrução criminal e da aplicação da lei penal – pois permite aos controladores verificar se o preso continua praticando infrações penais, ou se está exercendo atos indevidos de obstrução às investigações, ou ainda se está cometendo atos indicativos de fuga.[18]

No entanto, a reforma não estabeleceu como se dará o monitoramento, não fixando, sequer, deveres ao monitorando.[19]

A reforma pela qual passou o procedimento do Tribunal do Júri, com o advento da Lei n° 11.689, de 9 de junho de 2008, acabou por inserir,no texto do CPP,referênciasexpressasàs algemas, especificamente para esse procedimento.

Aprimeiraé o art. 474, § 3º,que veda a permanência do réu algemado durante sessões do Tribunal do Júri, sendo esta a regra, ressalvadas as exceções presentes no mesmo dispositivo, conforme abaixo se transcreve.

Art. 474.  A seguir será o acusado interrogado, se estiver presente, na forma estabelecida no Capítulo III do Título VII do Livro I deste Código, com as alterações introduzidas nesta Seção. (...)

§ 3º. Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.

Tal vedação tem por finalidade evitar um prejulgamento, por parte dos jurados, quanto à periculosidade do agente. Sendo juízes leigos, e partindo-se da premissa que nem todos conhecem o direito, os integrantes do conselho de sentença ficariamintimidadospela imagem do réu algemado, contribuindo para uma decisão a ele desfavorável.

A segunda é o artigo 478, em seu inciso I, que abaixo se transcreve.

Art. 478.  Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:(...)

I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado;

Com esta mudança, busca-se, mais uma vez, evitar que o fato de a pessoa estar algemada faça presumir sua culpabilidade, impedindo que seja feita referência, em Plenário, à decisão que determinou a colocação de algemas no réu.

Ressalte-se aqui que as mudanças promovidas pela Lei n° 11.689operaram-se quanto ao procedimento do júri e não aos julgamentos em juízos criminais comuns, onde o Juiz é togado e, a priori, não se influencia pela imagem do réu algemado.

2.3 – CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR

O Código de Processo Penal Militar (CPPM)[20], instituído através do Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, prevê o uso da força no caput de seu art. 234, abaixo transcrito, o qual faz referência expressa às algemas, que serão empregadas em caso de perigo de fuga ou de agressão.

Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas. (...)

§1º. O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.

Prevê o artigo 242 que devem ser “recolhidos a quartel ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão, antes de condenação irrecorrível” as seguintes pessoas:

a) os ministros de Estado;

b) os governadores ou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polícia;

c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembleias Legislativas dos Estados;

d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei;

e) os magistrados;

f) os oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados;

g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional;

h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional;

i) os ministros do Tribunal de Contas;

j) os ministros de confissão religiosa.

Entende-se que o artigo 234, ao prever que tais pessoas não serão algemadas em hipótese alguma, fere o princípio da isonomia, estabelecendo privilégio a uma pessoa em razão do cargo que ocupa ou de seu lugar na estrutura social, resgatando regalia presente nas Ordenações Filipinas. Abordando a questão da prisão especial do CPP, Tourinho Filho escreveu que:

Não se trata de privilégio, como se propaga pela imprensa, mas de uma homenagem em razão das funções que certas pessoas desempenham no cenário jurídico-político da nossa terra, inclusive o grau de escolaridade.[21]

Diante de tal problemática, caso haja risco de fuga, ou uma reação inesperada de qualquer das pessoas elencadas no art. 242 do CPPM, por que não podem ser empregadas algemas? Segundo Helga da Silva Brod:

não importa se o crime é comum ou militar, desde que se mostre imprescindível pelas circunstâncias, seja para impedir a fuga, seja para conter a violência da pessoa que está sendo presa, será admissível algemar as pessoas destacadas no artigo 242 do CPPM como qualquer outra pessoa.[22]

Tal vedação ao uso de algemas aplica-se quando as pessoas elencadas no art. 242 são acusadas de crimes militares, não sendo possível, a priori, que seja aplicadaàs mesmas quando cometam crimes comuns, previstos no Código Penal. Fernanda Herbella[23], no entanto, entende ser aplicável, por analogia, o mesmo privilégio, já que o CPP também prevê a prisão especial.

2.4 – LEIS DE SEGURANÇA DA ÁGUA E DO AR

Aqui, analisam-se duas leis, as quais contêm dispositivos que conferem aos comandantes verdadeiro poder de polícia dentro das embarcações ou aeronaves sob seu comando, como se fossem eles agentes do Estado.

A Lei 9.537, de 11 de dezembro de 1997, dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário nas águas submetidas à jurisdição do Brasil.[24] Em seu artigo 10, o referido diploma dá ao comandante poder de deter, inclusive com algemas, pessoas que coloquem em risco a segurança do tráfego aquaviário.

Art. 10. O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode: (...)

III - ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga;

A detenção com algemas, segundo a Lei 9.537, deve ocorrer quando necessário, não sendo regra a utilização desse instrumento. A conduta do detido não necessariamenteserá um crime[25], bastando que a mesma seja inconveniente a ponto de comprometer a integridade de terceiros, da carga e da própria embarcação.

A Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986, instituiu o Código Brasileiro de Aeronáutica.[26] Referida legislação, em seu artigo 167, fixa a autoridade do comandante, como se lê abaixo.

Art. 167. O Comandante exerce autoridade inerente à função desde o momento em que se apresenta para o voo até o momento em que entrega a aeronave, concluída a viagem.

Parágrafo único. No caso de pouso forçado, a autoridade do Comandante persiste até que as autoridades competentes assumam a responsabilidade pela aeronave, pessoas e coisas transportadas.

O artigo 168 estabelece os meios pelos quais o comandante exercerá sua autoridade.

Art. 168. Durante o período de tempo previsto no artigo 167, o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: (...)

II - tomar as medidas necessárias à proteção da aeronave e das pessoas ou bens transportados;

Apesar de não ser feita referência expressa às algemas, estas podem ser empregadas, a fim de evitar danos não só à aeronave, mas também às pessoas ou bens transportados.

Note-se que o comandante, tanto de embarcação quanto de aeronave, exerce função delegada do Poder Público, atuando como agente do Estado, respeitando os limites do estrito cumprimento do dever legal, impostos aos funcionários do Estado, não podendo o uso de algemas ser desmotivado e abusivo. Também não pode a prisão de uma pessoa converter-se em espetáculo, como será visto no capítulo seguinte.

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Sobre o autor
Vinícius Corrêa de Siqueira Gomes

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Vinícius Corrêa Siqueira. A Súmula Vinculante nº 11 e a legitimidade do uso de algemas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3314, 28 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22092. Acesso em: 21 nov. 2024.

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