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Da responsabilidade civil do estado por omissões

01/10/2001 às 00:00
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É de conhecimento geral o fato de que, em face do disposto no art. 37, § 6o. da Constituição Federal, o Estado e os prestadores de serviços públicos respondem objetivamente, isto é, sem considerações acerca da culpa ou dolo, pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros. Tal construção teórica é, em última análise, uma conseqüência do princípio da isonomia, posto que se toda a sociedade se beneficia das vantagens da atuação do Estado, não seria admissível que somente alguns arcassem com os danos decorrentes dessa atuação.

A construção da teoria da responsabilidade objetiva do Estado confunde-se com a própria evolução do Estado de Direito e com o progressivo reconhecimento dos direitos individuais, limitando o campo de atuação do Estado em defesa do cidadão. De fato, desde os tempos do absolutismo, em que, identificando-se o Estado à pessoa do rei, se negava a possibilidade de responsabilização do Estado ("the king can not do wrong") até os dias que correm, em que o Estado, tal qual os particulares, deve submeter-se completamente às leis e reparar quaisquer danos por ele causados, o que se vê é uma afirmação, cada vez maior, do princípio da solidariedade social.

Assim, a moderna doutrina publicística tem afirmado, quase unanimemente, que para configurar-se o dever de indenizar do Estado, basta ao lesado comprovar a existência do dano e o nexo causal entre este dano e a atividade estatal.

Isto não obstante, alguns pontos da teoria da responsabilidade objetiva, notadamente no que se refere às omissões do Estado, continuam causando perplexidade e dissenso entre os operadores do Direito. É que, segundo a maior parte dos doutrinadores, não pode haver nexo causal entre uma omissão e um dano. A omissão, entendida como abstenção de um comportamento, nada pode causar, posto que no plano físico, apenas existem ações, daí observar Ricardo C. Nuñes(1) que "inexiste uma relação de causalidade física entre a omissão e o resultado, uma vez que, carecendo a inatividade de eficácia ativa, vigora aqui o princípio de ex nihilo nil fit". Assim, têm a maior parte da doutrina e da jurisprudência entendido que para efeito de caracterizar-se a responsabilidade civil do Estado em face de uma omissão é necessário que haja o descumprimento, por parte do Estado, de um dever jurídico de agir. Assim, somente se poderia pleitear uma indenização do Estado por ato omissivo quando esta omissão representasse uma violação direta de um dever expresso em uma norma jurídica, o que faria com que a responsabilidade deixasse de ser objetiva para tornar-se subjetiva, posto que seria necessário verificar-se a existência da culpa anônima da administração. Neste sentido, lapidar é a lição de Celso Antônio Bandeira de Melo, para quem

Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser o autor do dano. E se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo. Deveras, caso o poder Público não estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razão para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as conseqüências da lesão. Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito. E sendo responsabilidade por ilícito é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do estado que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo). Culpa e dolo são justamente modalidades de responsabilidade subjetiva(2).

Tal entendimento em diversas oportunidades já foi acolhido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, valendo citar um acórdão a título de exemplo:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. DANO MORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. ATO OMISSIVO DO PODER PÚBLICO. MORTE DE PRESIDIÁRIO POR OUTRO PRESIDIÁRIO: RESPONSABILIDADE SUBJETIVA: CULPA PUBLICIZADA: FAUTE DE SERVICE. C.F., ART. 37, § 6. I – A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, ocorre diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. II – Essa responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, admite pesquisa em torno da culpa da vítima para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público ou da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público. III – Tratando-se de ato omissivo do Poder Público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, numa de suas três vertentes, negligência, imperícia ou imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a faute de service dos franceses. IV – Ação julgada procedente, condenando o Estado a indenizar a mãe do presidiário que foi morto por outro presidiário, por dano moral. Ocorrência da faute de service. V – RE não conhecido. (Recurso extraordinário no. 179.147/SP, 2a. T, Rel. Min. Carlos Veloso, DJU 27.02.98).

Assim, em sede de responsabilidade civil do Estado, tem se sustentado serem aplicáveis em nosso sistema jurídico tanto a teoria objetiva (risco administrativo) quanto a teoria subjetiva da culpa anônima, sendo esta última reservada aos atos omissivos. Ocorre, entretanto, que a partir da leitura da Constituição Federal, não há como, de um ponto de vista eminentemente técnico, sustentar-se a responsabilidade subjetiva, mesmo que a culpa seja anônima (falta do serviço). De fato, dispondo o art. 37, § 6o., da CF que "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros(...)", resta evidente que o dever do Estado de indenizar surge independentemente de culpa ou dolo, seja em face de condutas comissivas seja em face de omissões. Aliás, a própria ressalva feita pela CF quanto ao direito de regresso contra o agente, em que deverá ser verificada a culpa ou dolo, está a confirmar que em face da Administração não se levará em conta qualquer aspecto subjetivo da conduta do agente ou mesmo da regularidade da prestação do serviço (culpa anônima da administração). Daí não decorre, entretanto, que a Administração Pública deva assumir um dever geral de indenizar, sendo responsável por qualquer fato ou ato, comissivo ou omissivo no qual esteja envolvida, direta ou indiretamente, transformando-se naquilo que Gilmar Ferreira Mendes espirituosamente chama de seguradora universal(3). Afirmar-se que a responsabilidade do estado, em face da Constituição é sempre objetiva, mesmo em face de atos omissivos, não implica em advogar-se a teoria do risco integral, vez que ainda assim seria necessária a comprovação, por parte do lesado, da existência de dano e de nexo causal. Creio que é justamente neste ponto que residem as maiores dificuldade para o correto enquadramento da teoria da responsabilidade objetiva.

É que no mais das vezes, ao tratar do nexo causal em sede de atos omissivos, têm os operadores do direito utilizado-se de elementos das ciências naturais, em que impera o princípio da causalidade, expresso por postulados do tipo "se ‘A’ é, então ‘B’ é ". Daí a afirmação freqüente de que a omissão nada pode causar, que fundamenta a teoria da aplicação da responsabilidade subjetiva às omissões. A rigor, entretanto, o nexo funcional que necessita ser comprovado para a configuração da responsabilidade Estatal não deve ser pesquisado com base em princípios das ciências naturais. De fato, sendo o Direito uma ciência normativa, que parte do princípio da imputação, e não da causalidade, é de se ter claro que a ligação do dano à atividade estatal deve ser feita com base em postulados do tipo deve-ser (Se ‘A’ é, então ‘B’ deve ser). Neste sentido, relativamente às diferenças entre causalidade e imputação escreveu Kelsen(4):

Causalidade e imputação, como já observado, são dois diferentes modos de um nexo funcional, dois diferentes modos nos quais duas questões de fato são ligadas uma com a outra como condição e conseqüência.

A diferença entre ambos subsiste na circunstância de que a imputação (isto significa a relação entre uma conduta determinada como condição e a sanção como conseqüência descrita numa lei moral ou jurídica) é produzida por um ato de vontade, cujo sentido é uma norma, enquanto a causalidade (isto significa a relação de causa e efeito descrita numa lei da natureza) é independente de toda e qualquer intervenção.

Assim, sendo a imputação o modo de nexo funcional próprio das ciências normativas, como sói ser o Direito, e sendo este nexo funcional um produto da vontade da norma, nada impede que uma norma impute a uma conduta omissiva a responsabilidade por ressarcir um dano. Não há, portanto, que se falar em aplicação da teoria da responsabilidade subjetiva em relação aos atos omissivos, vez que nada impede, a priori, que o Estado venha a ser responsabilizado por suas omissões independentemente de verificação de culpa do agente ou de culpa administrativa.

Formulada nestes termos, entretanto, pode a afirmação da responsabilidade objetiva do estado dar margens a abusos e iniqüidades, pelo que é necessário tornar claro quais os limites à imputação da lesão a um ato omissivo do estado. Neste sentido, tenho que pode ser de extrema importância a utilização da teoria da imputação objetiva, que atualmente vem ganhando corpo no âmbito do Direito penal como um limite à configuração do nexo causal. Entre a conduta do agente e o resultado.

Segundo os partidários desta teoria, a imputação da responsabilidade por um dado evento lesivo deve necessariamente ter em conta o estado atual de desenvolvimento alcançado pela sociedade concreta, de modo que, em face da multiplicidade de fatores aptos a serem considerados como "causa" do dano, deve ser selecionado aquele que, em face do caso concreto e das expectativas sociais, objetivamente consideradas, atue como fonte de risco determinante. É preciso ter em conta que numa sociedade de massas como a nossa, a infinidade de contatos anônimos que se estabelecem diariamente entre os indivíduos e grupos sociais (aí se incluindo o próprio Estado como partícipe) somente é possível se aceitarmos a possibilidade da ocorrência de alguns danos. A dizer, se tentássemos evitar a ocorrência de todo e qualquer dano, fatalmente estaríamos decretando a paralisação da vida social. Assim, tem-se que a sociedade depende, para sua própria existência, da pré-determinação de quais papéis serão vividos pelos diferentes sujeitos sociais. O Direito atua, assim, prevendo expectativas de comportamentos. Assim, no âmbito da teoria da imputação objetiva

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Imputam-se os desvios a respeito daquelas expectativas que se referem a um portador de um papel. Não são decisivas as capacidades de quem atua, mas as capacidades de um portador de um papel, referindo-se a denominação papel a um sistema de posições definidas de modo normativo, ocupado por indivíduos intercambiáveis. Trata-se, portanto, de uma instituição que se orienta com base nas pessoas. (5)

Em resumo, tem-se que todos os sujeitos que vivem em sociedade (inclusive o Estado) estão na condição de portadores de um papel, e somente quando violação deste papel for determinante para a produção do evento lesivo é que este pode ser imputado ao sujeito, devendo a verificação da adequação da conduta às expectativas ser feita de modo objetivo, isto é, de acordo como grau de desenvolvimento de uma determinada sociedade. Assim, por exemplo, imagine-se uma hipótese em que fosse descoberto que um medicamente largamente utilizado há vários anos, tendo sido aprovado pela agência governamental responsável pela liberação do uso de medicamentos, pudesse causar, a longo prazo, efeitos nocivos à saúde. Uma omissão da agência em, após a descoberta, proibir a comercialização do medicamento, seria causa de responsabilidade do estado. O fato de ter erroneamente autorizado a comercialização antes da descoberta, entretanto, não torna o Estado responsável por eventuais danos, vez que a liberação teria ocorrido de acordo com as normas técnicas e científicas até então aceitas, e não é exigível que um medicamente somente seja liberado para uso pela população quando for absolutamente comprovada a inexistência de qualquer risco, sob pena de impedir-se os avanços da farmacologia e dos tratamentos médicos. Assim, ainda que se pudesse falar em culpa da administração, não haveria, nesta hipótese qualquer violação ao papel desempenhado pelo Estado, que, de acordo com o conhecimento científico existente à época, liberou o medicamento. Objetivamente, então, os danos provocados pela liberação do medicamento não seriam imputáveis ao estado.

Há, portanto, um espaço de risco permitido no atuar dos atores sociais que é determinado pelo desenvolvimento da sociedade em concreto, já que não faz parte do papel de ninguém (nem mesmo do Estado) a eliminação total de todos os riscos ínsitos à vida social. Ademais, é de se ter claro que também funciona como limite à imputação objetiva de danos o princípio da confiança: numa sociedade complexa, a divisão do trabalho e a especialização das funções exige que em suas interações, os atores sociais possam confiar uns nos outros, ou seja, não faz parte do papel de ninguém controlar permanentemente todos os demais. Ao cumprir seu papel, assim, deve o sujeito confiar que os demais atores sociais também cumprirão o seu, de modo que inexistindo violação do papel por parte do Estado, não pode ele ser responsabilizado pelo descumprimento de outrem(6). Outro limite à imputação objetiva de danos é o relativo à proibição de regresso, pelo qual a prática de um ato que invariavelmente é inofensivo, ainda que este ato seja utilizado por outrem numa atividade lesiva, não enseja responsabilidade. Assim, por exemplo, se um ladrão utiliza um transporte público para transportar o produto de seu roubo, não pode a concessionária deste serviço ser responsabilizada pelo dano causado pelo ladrão, ainda que este tivesse contado com o serviço público para conseguir seu intento. Cabe ainda referir à responsabilidade exclusiva da vítima do dano como forma de exclusão da imputação, vez que nesta hipótese, sendo o atuar da vítima o fator determinante para a produção do dano, não cabe falar-se em responsabilidade do Estado.

Assim, e em resumo, tem-se que a responsabilidade civil do Estado, tanto por atos comissivos quanto por atos omissivos, independe da pesquisa acerca de culpa ou dolo do agente ou da ocorrência da culpa anônima da Administração, critérios claramente violadores da Constituição. A responsabilidade do estado exsurge sempre que, comprovada a existência de um dano a um particular, este dano for objetivamente imputável ao Estado, isto é, sempre que o dano for conseqüência da violação do papel destinado ao Estado nas relações sociais, podendo ser a imputação excluída sempre que o dano estiver dentro dos limites do risco permitido, quando for possível aplicar-se o princípio da confiança, quando o ato, por si só, for invariavelmente inapto a causar danos ou quando a própria vítima for responsável pelo dano.

Revele-se, por fim, que tais princípios, de forma mais ou menos explícita, vêm sendo constantemente acolhidos pela doutrina e pela jurisprudência, apenas sendo justificados com base em construções teóricas que não se enquadram adequadamente no sistema jurídico-positivo brasileiro, como a teoria da faute de service, por exemplo. Assim, a linha de idéias aqui defendida, longe de pretender modificar o entendimento dominante em nossos tribunais, visa tão somente a buscar uma melhor fundamentação da responsabilidade (e principalmente da exclusão da responsabilidade) do Estado por atos omissivos, conciliando os dispositivos constitucionais com os reclamos de justiça.


NOTAS

1. APUD Damásio de Jesus, Direito Penal, vol. 1, p. 252

2. APUD Rui Stocco, Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. P. 272

3. Gilmar Ferreira Mendes, Perplexidades acerca da responsabilidade civil do Estado: União seguradora universal?, in <www.jusnavigandi.com.br/doutrina/segunive.html>, acessado em 09.06.01

4. Hans Kelsen. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Safe, 1986.

5. Günther Jakobs. Imputação objetiva. Trad. André Luis Callegar, São Paulo: RT, 2000, p. 20.

6. Vale aqui ressaltar que muitas vezes o papel do Estado consiste exatamente em verificar o cumprimento, por parte dos cidadãos, de certas obrigações. Nestas hipóteses, por óbvio, não cabe falar-se em princípio da confiança, cuja aplicação como excludente de responsabilidade somente pode ocorrer quando o sujeito tiver cumprido seu papel. Por hipótese, imagine-se uma situação em que alguém adquira um automóvel, tendo antes da aquisição diligenciado junto aos órgãos competentes para saber se o mesmo era produto de furto. Se posteriormente verifica-se que o automóvel era roubado, mas o proprietário não tinha registrado o roubo, não cabe falar em responsabilidade do Estado.

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Sobre o autor
Marcio Luiz Coelho de Freitas

Juiz Federal titular da 2ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas. Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas. Professor da Escola Superior de Magistratura do Estado do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Marcio Luiz Coelho. Da responsabilidade civil do estado por omissões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2247. Acesso em: 17 abr. 2024.

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