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A ascensão do Poder Judiciário no Brasil democrático.

Algumas considerações sobre a judicialização da política

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2.A dimensão externa do processo de judicialização

A expansão da atividade dos tribunais de justiça nacionais e internacionais tem representado um importante fator que contribuiu para um aumento dos pronunciamentos judiciais em processos que tratam sobre política externa e o cumprimento de normas internacionais. A evolução da função jurisdicional, com o transcurso dos anos, tem afetado não só o sistema político de determinados países, como também toda uma conjuntura internacional, revelando uma tendência inovadora como novo campo da judicialização[8]. Estevão Ferreira Couto (2004, p. 10) esclarece que esse fenômeno se revela de três formas:

“a) o ato do Poder Judiciário que acarreta a responsabilidade internacional do Estado; b) as constrições colocadas sobre o Poder Executivo na condução das relações exteriores, na medida em que os tribunais constitucionais (especialmente o Supremo Tribunal Federal) exigem uma conformidade com determinada interpretação sobre os princípios e normas constitucionais que regulam a ação externa do Estado; c) mecanismos institucionais internacionais, investidos de funções judiciais, aos quais são atribuídos papéis de equacionamento de impasses entre poderes ou entre o Estado e o indivíduo/sociedade, ou que impõe outros tipos de constrangimentos sobre a política externa do Estado.”

Enquanto as possíveis causas que procuram explicar o surgimento da judicialização da política externa se podem mencionar as mudanças ocorridas no último século (consequência do fortalecimento do comércio internacional e do desenvolvimento das novas tecnologias com ênfase na redução das distâncias geográficas, que propiciou uma vinculação entre questões domésticas e internacionais) e o aparecimento de novos atores internos e externos (como as organizações civis, grupos empresariais, organismos supranacionais), os quais demandam a satisfação de interesses e uma maior participação na vida política do país.

No entanto, os tratados internacionais em matéria de direitos humanos tem significado até o presente momento, uma das maiores expressões da judicialização exterior da política. Em se tratando do continente americano, a adesão dos Estados ao disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a sua posterior integração no ordenamento jurídico destes países, acabou por outorgar a Corte Interamericana de Direitos Humanos o poder para julgar um determinado Estado-membro com respeito à aplicação das normas sobre ditos direitos, tendo como base as diretrizes previstas na Convenção supracitada[9].

De igual modo, é possível verificar a presença da judicialização de questões externas no âmbito econômico ao referir-se a aplicação das normas da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou quando se discute sobre os futuros mecanismos de caráter jurídico que poderão ser empregados para regulamentar a organização e o desenvolvimento do Mercado Comum do Sul (MERCOSUR) e da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto Ran Hirschl (2004, p. 215) sustenta que esses órgãos de adjudicação supranacionais (como o Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC) possui uma grande importância, posto que promovem a incorporação de parâmetros legais internacionais nos sistemas domésticos legais dos países. Diante do não cumprimento das determinações dessas instâncias internacionais, os Estados podem ser responsáveis internacionalmente pela violação das obrigações de direito internacional, às quais repercutirão tanto na imagem como nas suas políticas externas.

Marcelo Neves (2009, pp. 133-134) denomina de transnacionalismo, o fenômeno de integração de várias ordens jurídicas na solução de um problema-caso constitucional (de direitos fundamentais ou humanos e de organização legítima de poder) que seja de relevância internacional. Conforme M. Neves, uma das suas formas de manifestação é a que ocorre entre o direito internacional público e o direito estatal, hipótese ilustrada pelos casos que são tratados, de forma paralela, pelas cortes internacionais e nacionais. Tais situações exigiriam um diálogo consistente entre a ordem jurídica doméstica e a ordem internacional, de modo a alcançar um verdadeiro consenso em direção à resolução de problemas comuns.

Ainda sobre a relação entre a justiça e a política exterior, Eyal Benvenisti (1994, p. 426) ensina que a independência outorgada pelos Poderes Legislativo e Executivo ao Poder Judiciário, não somente configura uma concessão em troca do efeito de legitimação dos atos executivos e legislativos, mas também funciona como condição necessária à credibilidade do Estado perante a opinião pública. A independência do Terceiro Poder, em geral, e do poder de controle das leis, em específico, seriam componentes de um pacto entre tal poder e os demais. Em contrapartida, o referido acordo não tem a mínima pretensão de conceder ao Poder Judiciário, uma discricionariedade sobre a esfera da política exterior do Estado.

Com razão já não se pode ignorar a influência da política internacional como um novo campo da atuação dos juízes. Por conseguinte, o crescente aumento do poder judicial nas democracias contemporâneas, acompanhado do fortalecimento da instituição do controle de constitucionalidade abstrato das políticas públicas e de um direito transnacional, tem atribuído à política externa o status de elemento integrante do conceito de judicialização.

Ainda cabe acrescentar que o impacto da atuação do Judiciário dentro do campo da política exterior, continua sendo um tema polêmico na doutrina e na jurisprudência. Ao apreciar questões internacionais, aquele poder o faz mediante uma lógica singular e através do uso de métodos difundidos no campo judicial, o que pode trazer graves consequências ou mesmo inconvenientes no que se refere ao processo decisório no plano internacional.


3.A judicialização da política no Brasil: um fenômeno em expansão

A ampliação da efetividade do controle normativo realizado pelo Poder Judiciário sobre o processo decisório estatal tem provocado uma substancial alteração no quadro político-institucional em grande parte dos países ocidentais concorrendo, desse modo, para o surgimento da judicialização de questões políticas. O referido fenômeno (característico das democracias consolidadas e que deriva das peculiaridades relativas à ordem política, econômica e social) gerou consequências perceptíveis também na democracia brasileira.

A experiência brasileira revela que esse fenômeno jurídico-político possui um forte componente característico. Dentre as condições necessárias para o seu surgimento, conforme a classificação proposta por Neal Tate y Torbjörn Vallinder em The Global Expansion of Judicial Power (1995), se pode constatar que todas elas fazem parte da realidade do país, ainda que em diferentes graus e em razão de certos condicionamentos e particularidades (situação histórica, estrutura institucional, realidade democrática e política, transformações legais que repercutiram no exercício da função jurisdicional e os direitos fundamentais).

No entanto, foi a partir do processo de redemocratização do país (após anos de ditadura) que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, que se observou uma proeminente atuação política do Poder Judiciário, com a finalidade de assegurar rol de direitos fundamentais que passaram a receber proteção jurídica. A Constituição, então, fixou os limites e contornos para o exercício da atividade política no Estado, ademais de atribuir ao Judiciário o poder para garantir o cumprimento desses mandados constitucionais.

Com relação ao parágrafo anterior, o texto constitucional de 1988 provocou significativas alterações na jurisdição constitucional do Estado brasileiro, ao mesmo tempo em que consolidou o Supremo Tribunal Federal como uma instituição vital no projeto da democracia republicana. O novo sistema jurídico implantado, além de reforçar as atribuições e competências daquele Alto Tribunal, lhe outorgou um novo papel com respeito ao exercício do controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, elevando o debate em torno da sua legitimidade para controlar ou revisar os atos dos outros poderes[10].

Por falar no controle de constitucionalidade das leis é importante esclarecer que, no Brasil, se adotou um sistema híbrido que compreende duas modalidades distintas: um sistema difuso e outro concentrado. Através do sistema difuso, inspirado no modelo norte-americano, qualquer autoridade judicial goza de autonomia para apreciar questões relativas à constitucionalidade das leis a partir da análise de um caso concreto. De outra parte, no modelo concentrado, esse controle é atribuído a um órgão judicial (Tribunal Constitucional), que está encarregado do exame de constitucionalidade de uma determinada lei em abstrato[11].

Deste modo, na organização do sistema de justiça brasileiro, qualquer juiz ou tribunal, após o recebimento e conhecimento do mérito de uma demanda em que haja litígio entre duas partes interessadas, possui a faculdade para declarar (em caráter incidental) a inconstitucionalidade de uma lei com o propósito de eximir a sua aplicação àquele caso específico. Entretanto, somente o Supremo Tribunal Federal, mediante o exercício do controle de constitucionalidade concentrado (próprio de vários países europeus) deve decidir, de modo definitivo, se a citada lei está em conformidade ou não com a Constituição.

Como consequência disto, se constata que o controle de constitucionalidade das leis, nessas duas modalidades, tem propiciado o deslocamento de conflitos eminentemente políticos ao crivo do poder judicial, com a difusão dos procedimentos jurídicos nos espaços de deliberação popular. Paralelamente, a contribuição das ações constitucionalmente consagradas (ação popular, ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental), conferiu a um limitado número de agentes públicos, uma legitimidade ativa para interpô-las perante o STF.

Com efeito, o espaço constitucional cedido pela Constituição da República Federativa do Brasil do ano de 1988 a determinados atores sociais, em virtude do mecanismo do controle de constitucionalidade das leis, lhes possibilitou a interposição de um excessivo número de demandas perante a suprema corte de justiça brasileira. Esses atores, em sua maioria partidos políticos e governadores de Estados, contribuíram para estimular cada vez mais o papel de agente político dos juízes e tribunais na busca pela efetiva proteção dos direitos fundamentais e pela preservação do processo democrático.

Desde uma perspectiva distinta, Fiona Macaulay (2005, pp. 141-163), ao examinar as iniciativas de reformas judiciais levadas a cabo após o período de transição democrática ocorrido em 1985, cujo objetivo consistia na melhoria do modelo de administração de justiça, indica uma visível revalorização das instituições judiciais como resultado da influência política, econômica e social nos distintos conjuntos de reformas propostas. As modificações introduzidas na organização do Poder Judiciário, que o converteram em um poder mais ativo na condução da vida do país, não podem ser explicadas somente em razão do movimento constitucionalista de 1988; mas com base nas realidades políticas vigentes, nas conjunturas democráticas, no balanceamento de poder entre as três esferas do Estado, no sistema federal de governo e nos interesses corporativistas existentes dentro do Judiciário.

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Não obstante tudo quanto foi dito, se pode compreender o desenvolvimento do fenômeno da judicialização da política no Brasil a partir do controle de constitucionalidade das leis consagrado pela Constituição de 1988, que implicou substanciais modificações na condução da função jurisdicional. Além disso, a constitucionalização dos direitos e a crescente tomada de consciência por parte de vários grupos sociais de que o Poder Judiciário pode servir como instrumento para a tutela dos seus direitos, redimensionaram os horizontes da atuação daquele poder e ampliaram a repercussão das suas decisões no âmbito político[12].

3.1O Ministério Público e a judicialização dos conflitos políticos

O processo de consolidação democrática, iniciado a meados da década de 1980 cujo auge coincidiu com o advento da Constituição Federal de 1988, produziu significativas mudanças institucionais no Ministério Público, o qual passou a contribuir de forma efetiva para o fenômeno da judicialização da política. Isto se deve, em grande medida, ao uso cada vez mais constante da legitimidade ativa que possui a referida instituição para propor ações diretas de inconstitucionalidade e ações civis públicas perante o Supremo Tribunal Federal.

A participação desse agente da justiça é sintetizada por Rogério Bastos Arantes na sua obra denominada “Ministério Público e Justiça no Brasil”[13]. O autor analisa a reconstrução da trajetória institucional do MP, iniciada com o Código de Processo Civil (1971) e consolidada com a entrada em vigor do atual texto constitucional. Ao comentar sobre a origem da expansão do Poder Judiciário brasileiro, Arantes afirma que: “o problema da justiça tem suas raízes mais profundas na natureza das novas funções assumidas pelo sistema judicial, além dos aspectos estruturais e processais” (ARANTES, 2002, p. 13).

O Ministério Público, como instituição essencial no funcionamento do sistema de justiça, tem a sua estrutura organizacional regulamentada pela Lei Orgânica Nacional (Lei n° 8.625/1993), possuindo funções e poderes orientados para a garantia da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais. Para cumprir com o objetivo que lhe foi encomendado, a instituição tem desempenhado um considerável protagonismo, o que se pode comprovar através da atuação do Procurador Geral da República que, entre os anos 1988 - 2012, foi responsável por 953 (20,1%) das ações direta de inconstitucionalidade.

De fato, a sua intervenção nos conflitos políticos e sociais pôs em relevo a idéia de que os seus membros estão mais orientados ideologicamente na afirmação do papel político da instituição. Entre os motivos que servem para explicar a sua nova atuação figuram: amparar uma sociedade incapaz de defender os seus próprios interesses diante da debilidade representativa das instituições políticas do Estado. O número de ADIn´s anteriormente mencionado favorece a uma rápida percepção de que o Ministério Público tem atuado no exercício do seu papel de representação dos interesses e direitos oriundos da sociedade civil.

Ao contrário, a crise enfrentada pelo sistema de justiça, especialmente naquelas situações onde o Poder Público é omisso enquanto a execução/formulação de políticas públicas junto com a negligência do Poder Legislativo para regulamentar determinadas matérias de sua competência, acabou por legitimar uma ação política do Ministério Público na proteção dos valores sociais. Como bem destaca Rogério Bastos Arantes (2002, p.130):

“A decepção com o funcionamento do regime representativo, nos marcos da sociedade civil supostamente frágil, conduz a tentativas de contornar a esfera política em busca da efetividade dos direitos. Esse é um dos elementos que compõe o universo ideológico do voluntarismo político de promotores e procuradores de hoje, embora também remonte a uma antiga tradição de pensamento político.”

Por conseguinte, o modelo de república constitucional brasileiro, no qual a administração da justiça é responsável pela aplicação da lei além de servir como canal de expressão para que grupos reclamem a promoção dos seus direitos fundamentais, permitiu a ampliação do espaço de atuação de alguns agentes da justiça. O Ministério Público passou a ser considerado um propulsor da judicialização da política, sobretudo quando utiliza suas atribuições constitucionais para levar certos conflitos políticos ao domínio dos tribunais.

3.2A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: apresentação de casos[14]

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal tem dirimido controvérsias de grande relevância política e social. O corpo de ministros tem produzido significativas resoluções normativas sobre diferentes questões, que vão desde a garantia dos direitos fundamentais até as que tratam sobre o processo democrático. A seguir, serão expostos quatro casos emblemáticos onde o STF exerceu uma função distinta da propriamente jurídica, o que permite reconhecer a judicialização da política como uma realidade operante no Brasil.

3.2.1 Fornecimento de medicamentos e o direito constitucional a saúde

Trata-se de Recurso Extraordinário (REXT n° 271.286) onde figuram como partes Diná Rosa Vieira (portadora da chamada Síndrome da imunodeficiência adquirira - AIDS) e o Município de Porto Alegre. O STF, por unanimidade de votos e corroborando com a orientação do artigo 196 da CF/1988, determinou que o município e o Estado do Rio Grande do Sul tem o dever constitucional de fornecer gratuitamente os medicamentos para o tratamento da AIDS daqueles pacientes que não dispõem de recursos financeiros suficientes.

As alegações do Município se baseavam, especialmente, em questões orçamentárias. Sustentou que a decisão do Supremo ofende o artigo 167 da Constituição, quando o obriga a fornecer medicamentos aos doentes de AIDS, e ainda afirmou que a carta constitucional estabelece, no artigo 165, ser de competência do Executivo a elaboração de lei orçamentária anual onde estaria previsto o orçamento da previdência social, não possuindo, portanto, o Poder Judiciário atribuição para intervir em tais assuntos. Por último, alegou que a decisão deixa de observar a repartição de competência no que se refere à execução dos serviços de saúde, o que vulnerabiliza o princípio da separação de poderes (art. 198, §1°, CF).

No seu voto, o relator Celso de Mello rebateu as alegações formuladas pelo Município de Porto Alegre. Afirmou que o procedimento de licitação é dispensado nos casos de emergência, pois o atraso na compra dos medicamentos comprometeria o direito à vida. Além disso, o ministro defende que o juiz não deve se preocupar com a falta de previsão orçamentária em virtude de que esse é um problema que deve ser solucionado pelo administrador público. Com relação à alegação da violação da separação dos poderes, Mello entende que esta não se coaduna com a jurisprudência do STF. Por fim, o voto aborda o direito a saúde que, segundo o Tribunal, é um direito subjetivo assegurado a todos através do art. 196 da Constituição Federal e que, por tal motivo, o Poder Público deve velar, de modo responsável, pela formulação e implementação de políticas sociais e econômicas idôneas dirigidas a garantia do acesso universal e igualitário à assistência médica no Estado.

Assim, o órgão colegiado entendeu que o direito a saúde, ademais de um direito fundamental da pessoa humana, é compreendido como indissociável ao direito à vida e que recebe proteção jurídica da Constituição Federal. A partir de um exercício de um juízo de ponderação, aquele direito, quando confrontado com um interesse econômico do Estado, deve realmente prevalecer em nome do respeito indeclinável à vida e à saúde humana.

3.2.2 A discussão em torno à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa

Cuida-se do exame conjugado de duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC´s 29 e 30), ajuizadas pelo Partido Popular Socialista (PPS) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIn n° 4.578) interposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL), que discutem sobre a constitucionalidade da Lei Complementar n° 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Tal lei atribuiu um novo texto à Lei Complementar n° 64/1990, instituindo outras causas de inelegibilidade com relação à proteção da moralidade e da probidade administrativa no exercício do mandato eletivo, conforme o parágrafo 9° do art. 14 da Constituição Federal.

A Lei da Ficha Limpa traz na redação do seu dispositivo 2°, a hipótese de que serão considerados inelegíveis todos aqueles candidatos que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por um órgão judicial colegiado, desde a condenação até ao transcurso do lapso de oito anos após o cumprimento da pena, pelos seguintes crimes contra: a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; e também contra o meio ambiente e a saúde pública.

Por outro lado, se verifica ainda que serão declarados inelegíveis todos aqueles candidatos que tenham cometido crimes eleitorais para os quais a referida lei comine uma pena privativa de liberdade; de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.

Entre as várias incompatibilidades da lei com a Constituição brasileira, se sustentou que ela contraria os princípios constitucionais da não retroatividade, ao tornar candidatos inelegíveis por atos anteriores à sua entrada em vigor (junho de 2010). Ademais, se alegou violação ao princípio da presunção de inocência, ao levar em conta decisões judiciais ainda passíveis de interposição de recurso. O argumento central é o de que a inelegibilidade não tem caráter de pena e que, por isso, tais princípios não se aplicam ao caso da Ficha Limpa.

Após um cenário de debates marcado por entendimentos divergentes entre os ministros, o relator Luiz Fux proferiu o voto pela parcial constitucionalidade da lei ora discutida, posto que existe uma desproporcionalidade na fixação do prazo de oito anos de inelegibilidade após o cumprimento da pena (aliena “e”). Ainda de acordo com o relator, esse tempo não deveria ser computado para efeitos de contagem entre a condenação e o trânsito em julgado da sentença condenatória (instituto da detração). Ao final, O Supremo Tribunal Federal, por maioria votos (sete contra quatro), declarou a constitucionalidade da lei, que já poderá ser aplicada nas eleições que vão realizar-se neste ano e que poderá retroagir para alcançar os atos e fatos ocorridos antes da sua entrada em vigor[15].

3.2.3 O reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar

 Os ministros do STF, ao julgarem procedente a ação direta de inconstitucionalidade n° 4277 e a arguição de descumprimento de preceito fundamental n°132 interpostas pelo Procurador Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, reconheceram a união homoafetiva como uma entidade familiar. A constante luta dos movimentos sociais em favor do reconhecimento da diversidade sexual, para efeitos de equiparar a relação entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, invadiu a arena judicial em busca de uma resposta definitiva sobre o tema[16].

Dez ministros votaram a favor da união homoafetiva: Carlos Ayres Britto, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso. Já Dias Toffoli não participou do julgamento porque havia atuado em duas ações quando exercia o cargo de Advogado Geral da União. A interpretação do Tribunal sobre a união homoafetiva certificou a existência de uma quarta família, ao lado daquelas decorrentes do casamento, da formada com a união estável e da entidade familiar monoparental (todas reconhecidas pelo texto constitucional).

O relator Carlos Ayres Britto proferiu o seu voto no sentido de atribuir uma interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil, que impeça o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Ele defendeu o argumento de que o art. 3º, inciso IV, da CF, proíbe qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor de pele e que, portanto, ninguém pode sofrer um ato daquela natureza em razão da sua preferência sexual. Para Britto, o sexo das pessoas não pode servir como um meio de desigualdade jurídica e que, por isso, qualquer depreciação da união estável homoafetiva afronta o inciso IV do art. 3° da Constituição.

3.2.4 A decisão sobre a extradição do italiano Cesare Battisti

Em 2009, os governos brasileiro e italiano acompanharam o julgamento do processo de extradição de Cesare Battisti, condenado a pena privativa de liberdade pela justiça italiana por haver participado do cometimento de quatro homicídios entre 1977 e 1979. Esse caso envolveu uma discussão sobre quais seriam as situações nas quais o Judiciário poderia exercer atos de competência do Executivo, além de indagar sobre a legitimidade democrática daquele para intervir na política externa e decidir sobre a extradição de um indivíduo (matéria constitucionalmente reservada à pessoa do Presidente da República)[17].

As circunstâncias que envolveram o pedido de extradição e a importância da preservação das relações diplomáticas entre Brasil e Itália contribuíram para a ocorrência de intensos debates entre os ministros do STF. O argumento de que compete ao Tribunal Constitucional, em última instância, o controle de legalidade sobre a concessão de refúgio político de Cesare Battisti foi defendido por Cezar Peluso. Para ele, o caráter político-administrativo da decisão concessiva de refúgio não deve ser entendido de modo estrito, nem tampouco que o fato ou dever de outorga ser atribuição de competência reservada à própria União, por representar o país nas relações internacionais, lhe subtraia, de modo absoluto, os respectivos atos jurídico-administrativos ao ordinário controle jurisdicional de legalidade (judicial review). A modo de conclusão do seu discurso, C.Peluso entende que:

“Em suma, a decisão do Senhor Ministro da Justiça não escapa ao controle jurisdicional sobre eventual observância dos requisitos de legalidade, sobretudo à aferição de correspondência entre sua motivação necessária declarada e as fattispecie normativas pertinentes, que é terreno em que ganha superior relevo a indagação de juridicidade dos motivos, até para averiguar se não terá sido usurpada, na matéria de extradição, competência constitucional exclusiva do Supremo Tribunal Federal.” (Extradição n° 1085/2007 do STF)

Ao contrário do exposto, Eros Grau e Marco Aurélio de Melo afirmaram que não seria razoável que o STF interferisse em um ato de política exterior, cuja atribuição é exclusiva do Presidente da República. Segundo a opinião dos ministros, não compete àquela Suprema Corte de Justiça analisar a questão referente à concessão de refúgio e muito menos determinar a extradição de um estrangeiro. Conforme o voto de Marco Aurélio:

“Não incumbe ao Supremo Tribunal Federal extraditar, senão processar e julgar a extradição solicitada por Estado estrangeiro, se e quando o pedido lhe for remitido pelo Poder Executivo, pronunciando-se previamente, pelo seu Plenário, sobre sua legalidade e procedência. Repito: não nos cabe extraditar ninguém; quem o faz é o Presidente da República, a quem incumbe manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII da Constituição do Brasil). Um dos requisitos dessa legalidade é o da ausência da concessão de refúgio, concessão que consubstancia faculdade do Poder Executivo.” (idem)

Depois de acirrados debates sobre o tema em pauta com a presença de argumentos divergentes como os já apresentados, finalmente no dia 18 de novembro de 2009, por maioria de votos (cinco contra quatro), o Pleno do Supremo Tribunal autorizou a extradição de Cesare Battisti por estar presente os pressupostos necessários para a execução da medida. De igual forma, restou determinado que a decisão sobre a sua efetiva entrega à República da Itália estaria condicionada a palavra final do Presidente da República Federativa do Brasil.

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Sobre o autor
João Marcelo Negreiros Fernandes

Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Mestre em Direito Público pela Universidade de Salamanca (Espanha) e doutorando pela mesma Universidade.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, João Marcelo Negreiros. A ascensão do Poder Judiciário no Brasil democrático.: Algumas considerações sobre a judicialização da política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3364, 16 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22620. Acesso em: 6 mai. 2024.

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