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A ascensão do Poder Judiciário no Brasil democrático.

Algumas considerações sobre a judicialização da política

A ascensão do Poder Judiciário no Brasil democrático. Algumas considerações sobre a judicialização da política

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A presença do Poder Judiciário, como via de acesso ou instrumento de transmissão das reivindicações coletivas e individuais, consiste em um fator de grande transformação social no Estado brasileiro.

Introdução

A consolidação do Estado constitucional de direito, em muitos países do mundo ocidental após o término da Segunda Guerra Mundial, transformou os antagonismos jurídicos e políticos em conflitos resolúveis em um espaço determinado pela primazia dos valores e normas de natureza constitucional. Essa nova forma de organização político-estatal, que se apresenta como máxima tipificação do chamado modelo de Estado legislativo de direito, consagrou a Constituição como a norma fundamental de todo o sistema jurídico.

As Constituições, nos países onde se notam a sua presença, disciplinaram o modo de produção das leis e dos atos normativos, assim como impuseram limitações à atuação do Estado, que se manifesta através de órgãos e instituições que possuem uma enorme presença na vida pública. O termo Jurisdição Constitucional se traduz na aplicação e interpretação do texto constitucional pelos órgãos judiciais de modo direto, isto é, dos preceitos contidos naquele; ou indireto, na medida em que serve como parâmetro para o exame de validade de uma norma de classe inferior ou quando se deseja atribuir um melhor sentido a tal norma.

Esse cenário de significativas transformações na arquitetura jurídica estatal, a partir da assunção do papel normativo da Constituição, coincidiu com uma concreta expansão do Poder Judiciário[1], ilustrando sua maior participação no âmbito político e configurando um novo modo de pensar e de praticar a ciência do Direito. Essa ampliação da jurisdição e, igualmente, do discurso jurídico tem sido atribuída por muitos estudiosos à instituição do controle de constitucionalidade das leis, considerado como principal responsável pela ascensão do Judiciário como uma nova força política nas democracias contemporâneas[2].

Esse protagonismo do Direito e dos tribunais de justiça nos últimos tempos é, sem dúvida alguma, um acontecimento que tem causado uma serie de preocupações em uma grande quantidade de juristas e cientistas políticos, uma vez que parece apontar para movimentos profundos de transformação da democracia derivados da esperança depositada na administração de justiça, como garantia de um Estado democrático de direito frente a uma possível crise política. Diante disso, o presente artigo tem como objetivo realizar um breve estudo acerca da crescente participação do Terceiro Poder na vida política da sociedade brasileira, fenômeno conhecido pelo nome de Judicialização da Política.


1 A expansão do Poder Judiciário nas democracias contemporâneas

1.1.A judicialização da política e os seus distintos significados

Nas últimas décadas, se tem observado uma tendência global com respeito à intensificação das atividades jurídicas e também dos seus procedimentos sobre as diversas esferas da vida do Estado. Surgiu, assim, um debate sobre a juridificação da política e das relações sociais como resultado do labor dos tribunais sobre as ações dos Poderes Legislativo e Executivo, tendo em conta que o sistema democrático fornece as devidas condições para uma atividade interpretativa por parte do Judiciário sobre as leis vigentes.

O crescimento da justiça sobre a política, tema que tem gerado um grande volume de estudos e que foi cunhado pela literatura especializada como Judicialização da Política, consiste na resolução em sede judicial de assuntos de conteúdo político que antes se solucionavam pelas instâncias representativas. Dito de outro modo, esse fenômeno reside na maior inserção do Poder Judiciário no terreno político para expressar a expansão da sua importância e participação na melhoria da qualidade da democracia de um determinado país.

Por outro lado, a judicialização de questões políticas induz a pensar em uma efetiva transferência de poder político para as instituições judiciais em detrimento das instâncias deliberativas. A relação entre os três poderes no contexto social e globalizado em que se vive, tem fomentado um papel mais ativo do Poder Judiciário no que se refere à revisão dos atos políticos e na execução ou formulação de políticas públicas[3]. Resulta lógico afirmar que o crescimento da jurisdição e do campo de incidência do Direito revelou uma nova fronteira entre a política e o funcionamento da justiça. Nas palavras de Pilar Domingo (2009, p. 37):

“A judicialização da política significa, em primeiro lugar, uma maior presença da atividade judicial na vida política e social; em segundo lugar, nos fala que os conflitos políticos, sociais ou entre o Estado e a sociedade se resolvem cada vez mais nos tribunais; em terceiro lugar, é fruto do processo pelo qual diversos atores políticos ou sociais, veem como vantagem recorrer aos tribunais com o fim de proteger ou promover os seus interesses. A utilização de estratégias jurídicas, de alguma forma, amplia o poder político dos juízes. Por último, a judicialização da política aponta, em certo modo, para uma tendência talvez crescente de que a legitimidade do sistema político vai ligado com a capacidade do Estado democrático moderno de cumprir com as suas promessas do Estado de direito, de proteger os direitos do cidadão, de garantir o principio de dito processo e os mecanismos de rendição de contas dos governantes.”     

Dentre um dos mais importantes estudos sobre o aumento do poder dos juízes nas sociedades atuais está a obra “The Global Expansion of Judicial Power” dirigida por Neal Tate y Torbjörn Vallinder, que reúne trabalhos de outros especialistas sobre o tema. Daí que a apresentação do fenômeno se faz a partir da adoção da decisão judicial para resolver controvérsias no espaço político. Com isso, se amplia a área de atuação dos tribunais mediante o recurso de revisão judicial dos atos legislativos e executivos com fundamento na constitucionalização dos direitos; no mecanismo de checks and balances; e, por fim, na introdução de instrumentos propriamente judiciais no âmbito do Legislativo e Executivo.

No Brasil, merece destaque a obra “A Judicialização da Política e das Relações sociais no Brasil”, desenvolvida por Luis Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Borges. Os autores formulam duas linhas de investigação: uma teórica, que expõe os fatores sociais que levaram a presença da judicialização da política na sociedade brasileira; outra empírica, que apresenta as mudanças institucionais após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Na intenção de reconstruir a origem do fenômeno a partir dos reflexos da vida social e das modificações de paradigma de Estado, Werneck Vianna et al (1999, p. 15) indicam que:

“O que se constata é que a vocação expansiva do princípio democrático tem implicado em uma crescente institucionalização do direito na vida social, invadindo espaços antes inacessíveis a ele, como certas dimensões da esfera privada. Foi a emergência dos novos titulares dos direitos, especialmente o movimento obreiro a mediados do século passado que pôs fim a rigorosa separação entre Estado e sociedade civil nos termos da doutrina liberal.”

Cabe ainda considerar o controle da política pelos tribunais, como um projeto contemplativo de uma noção material de democracia que se baseia no bem comum, na cidadania, na solidariedade e na concepção de uma justiça distributiva. Sobre a base dessas idéias, não se pode negar que esse fenômeno jurídico-político tem se convertido em uma referência no discurso sobre a jurisdição constitucional como área da democracia deliberativa em direção à concepção de participação popular. Sendo assim, o Judiciário tem-se mostrado um poder mais preocupado por responder às necessidades sociais crescentes[4].

Ante o exposto, a expansão do Direito sobre a política pode significar importantes avanços no que se refere ao esquema organizacional do Estado. O emprego do método judicial na resolução de conflitos políticos, em razão de uma possível falta efetividade das instituições majoritárias, cria condições para que o Poder Judiciário forneça novos canais de mobilização e de deliberação pública. As decisões judiciais sobre as ações de natureza coletiva trazem a tentativa de reafirmar os valores cidadãos, na medida em que fortalece aquele poder como um cenário de reivindicações no contexto de uma sociedade de massas.

1.2 Algumas causas e condições para o surgimento da judicialização da política[5]

A judicialização da política apresenta os seus primeiros registros históricos nos Estados Unidos sendo, posteriormente, reconhecida em uma grande quantidade de Estados democráticos. Com respeito aos fatores que tentam explicar a crescente influência do Poder Judiciário sobre as instituições políticas e sociais, eles podem variar significativamente conforme a trajetória constitucional (organização institucional, formação histórica, configuração da Carta constitucional, etc.,) de cada país individualmente considerado.

Em um primeiro momento, a crescente intervenção do Judiciário nas democracias contemporâneas, na visão de N. Tate e T. Vallinder, guarda uma estrita relação com o fim da ex União Soviética e com a permanência dos Estados Unidos como potência econômica mundial. Esse aspecto histórico, em específico, propiciou a difusão do funcionamento institucional do sistema norte-americano de revisão judicial (judicial review), que tem sido responsável pela expansão dos métodos de controle jurisdicional em vários países do globo.

De outro lado, não cabem dúvidas de que a nova atuação do Poder Judiciário está ligada à implementação de novas políticas públicas em uma grande maioria de países ocidentais durante o pós-guerra, as quais fomentaram um acelerado crescimento tanto no campo econômico como social. Tais políticas estimularam importantes reformas nas leis e, sobretudo, no que se refere à estrutura organizacional que conforma o Poder Judiciário, com o propósito de impedir eventuais abusos de poder por parte das instâncias representativas.

Além do já mencionado, a difusão de modernas teorias sobre o direito e as novas construções teóricas em torno ao significado de justiça, acompanhada da publicação de obras de autores como John Rawls (A Theory of Justice), em 1971, e Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously), em 1978, promoveram intensos debates públicos sobre a garantia e a efetividade dos direitos e liberdades individuais. Uma nova linguagem dos direitos tem sido importante para o discurso sobre o fortalecimento do Estado de direito e da democracia.

Também não se pode deixar de lado a importância atribuída à proteção dos direitos humanos no contexto da promulgação de documentos internacionais (Declaração Universal dos Direitos do Homem – 1948 e a Convenção Europeia de Direitos Humanos – 1950), e a criação do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que acrescentaram novas perspectivas ao exercício da função judicial, uma vez que praticamente todos os Estados reconheceram a obrigação dos juízes em aplicar tais instrumentos em substituição da própria lei nacional.

Posteriormente, se inserem as novas perspectivas em torno aos interesses econômicos globais que incentivaram o fenômeno da judicialização da vida política, tendo em vista que se requer a presença de um sistema judicial forte e independente, capaz de estabelecer as bases para a instituição de um modelo de governabilidade democrática. Sobre esse aspecto, Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 27) assegura que a administração da justiça é essencialmente um serviço prestado pelo Estado à comunidade, como forma de preservar a paz social e facilitar o desenvolvimento econômico por meio da resolução de conflitos.

Na concepção de Perfecto Andrés Ibañez, a mudança de comportamento da jurisprudência dos tribunais fez com que eles passassem a atuar em função das lacunas institucionais deixadas pelos poderes Legislativo e Executivo. Segundo aquele autor, estas circunstâncias têm sido motivadas, em grande medida, pelas alterações procedidas na cultura interpretativa das escolas jurídicas (crise do positivismo jurídico), pela delegação ou omissão do Legislativo e Executivo, pelo aperfeiçoamento das instituições jurídicas do Estado, pela pressão exercida pela sociedade civil sobre os órgãos de justiça e, sobretudo, pela constitucionalização dos direitos fundamentais (IBAÑEZ, 2003, pp. 31-47).

Além das causas que justificam a ocorrência da judicialização da política, Neal Tate y Torbjörn Vallinder enumeram algumas das condições políticas necessárias a sua concretização. Após utilizar uma série de exemplos extraídos de alguns países, aqueles autores desenvolveram um interessante quadro condicional que confirma a presença daquele fenômeno jurídico-político como uma realidade operante nas sociedades contemporâneas.

1.2.1 A democracia

O pensamento político dominante durante o transcurso do século XX sempre esteve diretamente relacionado com a escolha da melhor forma de governo, o que desde logo põe em evidência a importante discussão sobre a relação entre a função jurisdicional e o regime democrático. Neste mesmo sentido, as inúmeras propostas sobre um sistema judicial mais receptivo às diversas demandas sociais com a finalidade de realizar os princípios legais, sociais e políticos têm influenciado, de maneira decisiva, o estudo sobre a teoria do Direito.

Conforme Antoine Garapon, a expansão das funções do Terceiro Poder é derivada, mais que tudo, de um largo e gradual processo de transformação do regime democrático. O magistrado francês afirma, com bastante veemência, que quanto mais a democracia se emancipa em sua dupla forma de organização política e de sociedade, mais ela buscará na justiça uma espécie de proteção; é exatamente aí onde se encontra a unidade profunda que justifica o fenômeno da vigorosa ascensão da justiça (GARAPON, 1997, pp. 19-20).

No entanto, não é demais reconhecer que dificilmente seria possível compatibilizar governos autoritários com a expansão do Judiciário em virtude dos obstáculos impostos ao princípio da independência funcional dos juízes. No Brasil, a trajetória histórica do órgão de máxima instância da justiça brasileira (Supremo Tribunal Federal), comprova que foi somente a partir do processo de redemocratização, com a consequente promulgação da Constituição Federal de 1988 (após vários anos de um duro regime militar), que o Poder Judiciário obteve a possibilidade de exercer o veto constitucional sobre as ações promovidas pelo Executivo, denotando assim uma intervenção daquele poder na vida política do país.

1.2.2 A separação dos poderes

O clássico tema da separação dos poderes, cuja fórmula supõe a eliminação de todo e qualquer abuso de poder e de uma atuação arbitrária das instituições públicas, funciona como condição ao surgimento da judicialização da política. Mais que uma teoria direcionada a manutenção da estabilidade do poder político mediante uma fórmula de equilíbrio entre três autoridades estatais distintas, a doutrina da divisão de poderes contribuiu para gerar um Judiciário independente e com capacidade para influenciar na tomada de decisões políticas.

O jurista italiano Mauro Cappelletti, para quem a ampliação da atuação do Terceiro Poder é resultado do crescimento das atribuições do próprio Estado com o objetivo de lograr um sistema administrativo capaz de integrar e de dar atuação as novas intervenções legislativas, entende que: “a expansão do papel do Poder Judiciário representa o necessário contrapeso em um sistema democrático de checks and balances, levando em consideração a paralela expansão dos ramos políticos do Estado moderno” (CAPPELLETTI, 1999, p. 19).

O certo é que a contemporaneidade tem se caracterizado, sem nenhuma margem de dúvida, por conflitos que envolvem práticas judiciais, legislativas e executivas e pelo avanço de uma esfera de poder sobre as outras. Essa circunstância tem demandado um esforço de reconfiguração do esquema paradigmático da separação dos poderes estatais, ao mesmo tempo em que ilustrou uma intervenção do Poder Judiciário no cenário político, o que põe em relevo a preponderância do método judicial na condução do sistema político-estatal.

1.2.3Os direitos políticos

Outra condição importante é a presença de uma chamada política de direitos (politics of rights), ou seja, na existência de um catálogo de direitos formalmente estabelecidos pela Constituição ou, na ausência deste catálogo, pela simples aceitação de que os indivíduos são titulares de direitos oponíveis as ações praticadas por uma maioria no Estado. Nessa mesma direção, a política de direitos contribuiu para a aplicação e interpretação das normas em favor dos interesses de uma minoria, possibilitando-lhes o acesso às instâncias judiciais para garantir a tutela dos seus direitos fundamentais. Como expõe Mauro Barberis (2008, p. 127):

“O texto constitucional representa um projeto de vida em comunidade que se divide em duas partes, as quais delineiam as principais funções de uma Constituição: a primeira consiste na declaração de direitos como limitação ao poder do Estado mediante um catálogo de direitos que ele não pode violar; a segunda reside na forma de governo que institui o poder político, conferindo aos órgãos ou conjunto de órgãos as três funções estatais, que a partir da doutrina de Montesquieu, se denominam Legislativo, Executivo e Judiciário.”

1.2.4 A utilização dos tribunais por grupos de interesses

A expansão dos direitos (incluindo os direitos políticos) procede de uma intensa e incansável trajetória de lutas e pressões exercidas por parte de organizações de caráter social, materializada através de movimentos ou mesmo da ação dos grupos de interesses. Em muitos países da América Latina, o que se vê é que tais grupos passaram a disputar os espaços de deliberação pública junto com os partidos políticos e, para tanto, consideraram a possibilidade de utilização do veto nos tribunais com o fim de alcançar os seus objetivos.

Partindo dessa idéia, a propagação da judicialização da política se relaciona com a efetiva participação desses grupos de interesses nas ações judiciais promovidas perante os tribunais. Para melhor ilustrar a tese que aqui se pretende defender, no caso brasileiro é possível verificar que das 4.751 ações direta de inconstitucionalidade (ADIn´s) que chegaram ao Supremo Tribunal Federal entre 1988 – 2012, um total de 1.202 (25,3%) foram interpostas pelas Confederações Sindicais ou Entidades de Classe de Âmbito Nacional[6].

Os dados anteriores levam inevitavelmente a conclusão de que aqueles atores sociais (Confederações Sindicais ou Entidades de Classe de Âmbito Nacional) têm participado ativamente no ambiente judicial, motivados pela finalidade de alcançar os seus objetivos institucionais. Tal diagnóstico parece apontar para o fato de que no Brasil, o procedimento judicial está cada vez mais disseminado no âmbito político e que os juízes estão mais envolvidos na resolução de assuntos de competência das esferas representativas do Estado.

1.2.5 O uso dos tribunais pelos partidos de oposição

Os partidos de oposição, sem conseguir suspender as pretensões da maioria, se valem dos tribunais de justiça com o claro objetivo de obstaculizar ou inviabilizar aquelas alterações legislativas que se encontram em curso. Deste modo, na medida em que esses partidos ou o próprio governo tentam, de todas as maneiras, modificar a legislação vigente ou mesmo paralisar as iniciativas governamentais através das ações judiciais, o Poder Judiciário adquire necessariamente uma potestade para tomar decisões na arena política.

Com base no anteriormente dito, os dados fornecidos pelo Supremo Tribunal Federal indicam que, durante os anos de 1988-2012, das mesmas 4.751 ações direta de inconstitucionalidade, 819 (17,2%) foram interpostas por partidos políticos com representação no Congresso Nacional. Estes dados advertem que a utilização dos tribunais por aqueles partidos é uma realidade no Estado brasileiro e que, além disso, a interposição das ADIn´s tem se convertido em um importante instrumento de contestação pública[7].

1.2.6 A ineficiência das instituições majoritárias

Intimamente relacionado com o item anterior, Neal Tate y Torbjörn Vallinder mencionam a incapacidade das instituições majoritárias para fazer frente às novas e crescentes demandas sociais, em razão de fatores como: os altos índices de corrupção, os impasses políticos que obstruem a tomada de decisões sobre questões fundamentais para a preservação da vida do Estado; e, finalmente, a presença de uma gama de partidos políticos sem grande expressão no cenário nacional para desenvolver políticas públicas concretas.

Sob essa perspectiva, tal realidade é facilmente observada nos países da América Latina, onde sobrevive uma patente dificuldade dos países subdesenvolvidos para promover políticas públicas com partidos políticos sem grande importância e com problemas de manutenção das maiorias parlamentarias. Esse quadro de ineficiência das instituições políticas, por sua vez, favoreceu a submissão das causas políticas à apreciação judicial.

1.2.7 A delegação de assuntos pelas instituições majoritárias

A última condição radica em torno à delegação de questões políticas a esfera judicial pelas instâncias majoritárias. Por vezes, o Legislativo e o Executivo preferem manter-se à margem de uma solução sobre assuntos de grande polêmica (ex. reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar), tendo em vista o alto custo político-eleitoral que a adoção de uma decisão possa vir a provocar. Assim, tais assuntos têm sido cada vez mais submetidos ao controle jurisdicional, enaltecendo o Judiciário como recurso de salvaguarda das expectativas cidadãs em direção à consecução dos fins institucionais do Estado.


2.A dimensão externa do processo de judicialização

A expansão da atividade dos tribunais de justiça nacionais e internacionais tem representado um importante fator que contribuiu para um aumento dos pronunciamentos judiciais em processos que tratam sobre política externa e o cumprimento de normas internacionais. A evolução da função jurisdicional, com o transcurso dos anos, tem afetado não só o sistema político de determinados países, como também toda uma conjuntura internacional, revelando uma tendência inovadora como novo campo da judicialização[8]. Estevão Ferreira Couto (2004, p. 10) esclarece que esse fenômeno se revela de três formas:

“a) o ato do Poder Judiciário que acarreta a responsabilidade internacional do Estado; b) as constrições colocadas sobre o Poder Executivo na condução das relações exteriores, na medida em que os tribunais constitucionais (especialmente o Supremo Tribunal Federal) exigem uma conformidade com determinada interpretação sobre os princípios e normas constitucionais que regulam a ação externa do Estado; c) mecanismos institucionais internacionais, investidos de funções judiciais, aos quais são atribuídos papéis de equacionamento de impasses entre poderes ou entre o Estado e o indivíduo/sociedade, ou que impõe outros tipos de constrangimentos sobre a política externa do Estado.”

Enquanto as possíveis causas que procuram explicar o surgimento da judicialização da política externa se podem mencionar as mudanças ocorridas no último século (consequência do fortalecimento do comércio internacional e do desenvolvimento das novas tecnologias com ênfase na redução das distâncias geográficas, que propiciou uma vinculação entre questões domésticas e internacionais) e o aparecimento de novos atores internos e externos (como as organizações civis, grupos empresariais, organismos supranacionais), os quais demandam a satisfação de interesses e uma maior participação na vida política do país.

No entanto, os tratados internacionais em matéria de direitos humanos tem significado até o presente momento, uma das maiores expressões da judicialização exterior da política. Em se tratando do continente americano, a adesão dos Estados ao disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a sua posterior integração no ordenamento jurídico destes países, acabou por outorgar a Corte Interamericana de Direitos Humanos o poder para julgar um determinado Estado-membro com respeito à aplicação das normas sobre ditos direitos, tendo como base as diretrizes previstas na Convenção supracitada[9].

De igual modo, é possível verificar a presença da judicialização de questões externas no âmbito econômico ao referir-se a aplicação das normas da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou quando se discute sobre os futuros mecanismos de caráter jurídico que poderão ser empregados para regulamentar a organização e o desenvolvimento do Mercado Comum do Sul (MERCOSUR) e da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto Ran Hirschl (2004, p. 215) sustenta que esses órgãos de adjudicação supranacionais (como o Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC) possui uma grande importância, posto que promovem a incorporação de parâmetros legais internacionais nos sistemas domésticos legais dos países. Diante do não cumprimento das determinações dessas instâncias internacionais, os Estados podem ser responsáveis internacionalmente pela violação das obrigações de direito internacional, às quais repercutirão tanto na imagem como nas suas políticas externas.

Marcelo Neves (2009, pp. 133-134) denomina de transnacionalismo, o fenômeno de integração de várias ordens jurídicas na solução de um problema-caso constitucional (de direitos fundamentais ou humanos e de organização legítima de poder) que seja de relevância internacional. Conforme M. Neves, uma das suas formas de manifestação é a que ocorre entre o direito internacional público e o direito estatal, hipótese ilustrada pelos casos que são tratados, de forma paralela, pelas cortes internacionais e nacionais. Tais situações exigiriam um diálogo consistente entre a ordem jurídica doméstica e a ordem internacional, de modo a alcançar um verdadeiro consenso em direção à resolução de problemas comuns.

Ainda sobre a relação entre a justiça e a política exterior, Eyal Benvenisti (1994, p. 426) ensina que a independência outorgada pelos Poderes Legislativo e Executivo ao Poder Judiciário, não somente configura uma concessão em troca do efeito de legitimação dos atos executivos e legislativos, mas também funciona como condição necessária à credibilidade do Estado perante a opinião pública. A independência do Terceiro Poder, em geral, e do poder de controle das leis, em específico, seriam componentes de um pacto entre tal poder e os demais. Em contrapartida, o referido acordo não tem a mínima pretensão de conceder ao Poder Judiciário, uma discricionariedade sobre a esfera da política exterior do Estado.

Com razão já não se pode ignorar a influência da política internacional como um novo campo da atuação dos juízes. Por conseguinte, o crescente aumento do poder judicial nas democracias contemporâneas, acompanhado do fortalecimento da instituição do controle de constitucionalidade abstrato das políticas públicas e de um direito transnacional, tem atribuído à política externa o status de elemento integrante do conceito de judicialização.

Ainda cabe acrescentar que o impacto da atuação do Judiciário dentro do campo da política exterior, continua sendo um tema polêmico na doutrina e na jurisprudência. Ao apreciar questões internacionais, aquele poder o faz mediante uma lógica singular e através do uso de métodos difundidos no campo judicial, o que pode trazer graves consequências ou mesmo inconvenientes no que se refere ao processo decisório no plano internacional.


3.A judicialização da política no Brasil: um fenômeno em expansão

A ampliação da efetividade do controle normativo realizado pelo Poder Judiciário sobre o processo decisório estatal tem provocado uma substancial alteração no quadro político-institucional em grande parte dos países ocidentais concorrendo, desse modo, para o surgimento da judicialização de questões políticas. O referido fenômeno (característico das democracias consolidadas e que deriva das peculiaridades relativas à ordem política, econômica e social) gerou consequências perceptíveis também na democracia brasileira.

A experiência brasileira revela que esse fenômeno jurídico-político possui um forte componente característico. Dentre as condições necessárias para o seu surgimento, conforme a classificação proposta por Neal Tate y Torbjörn Vallinder em The Global Expansion of Judicial Power (1995), se pode constatar que todas elas fazem parte da realidade do país, ainda que em diferentes graus e em razão de certos condicionamentos e particularidades (situação histórica, estrutura institucional, realidade democrática e política, transformações legais que repercutiram no exercício da função jurisdicional e os direitos fundamentais).

No entanto, foi a partir do processo de redemocratização do país (após anos de ditadura) que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, que se observou uma proeminente atuação política do Poder Judiciário, com a finalidade de assegurar rol de direitos fundamentais que passaram a receber proteção jurídica. A Constituição, então, fixou os limites e contornos para o exercício da atividade política no Estado, ademais de atribuir ao Judiciário o poder para garantir o cumprimento desses mandados constitucionais.

Com relação ao parágrafo anterior, o texto constitucional de 1988 provocou significativas alterações na jurisdição constitucional do Estado brasileiro, ao mesmo tempo em que consolidou o Supremo Tribunal Federal como uma instituição vital no projeto da democracia republicana. O novo sistema jurídico implantado, além de reforçar as atribuições e competências daquele Alto Tribunal, lhe outorgou um novo papel com respeito ao exercício do controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, elevando o debate em torno da sua legitimidade para controlar ou revisar os atos dos outros poderes[10].

Por falar no controle de constitucionalidade das leis é importante esclarecer que, no Brasil, se adotou um sistema híbrido que compreende duas modalidades distintas: um sistema difuso e outro concentrado. Através do sistema difuso, inspirado no modelo norte-americano, qualquer autoridade judicial goza de autonomia para apreciar questões relativas à constitucionalidade das leis a partir da análise de um caso concreto. De outra parte, no modelo concentrado, esse controle é atribuído a um órgão judicial (Tribunal Constitucional), que está encarregado do exame de constitucionalidade de uma determinada lei em abstrato[11].

Deste modo, na organização do sistema de justiça brasileiro, qualquer juiz ou tribunal, após o recebimento e conhecimento do mérito de uma demanda em que haja litígio entre duas partes interessadas, possui a faculdade para declarar (em caráter incidental) a inconstitucionalidade de uma lei com o propósito de eximir a sua aplicação àquele caso específico. Entretanto, somente o Supremo Tribunal Federal, mediante o exercício do controle de constitucionalidade concentrado (próprio de vários países europeus) deve decidir, de modo definitivo, se a citada lei está em conformidade ou não com a Constituição.

Como consequência disto, se constata que o controle de constitucionalidade das leis, nessas duas modalidades, tem propiciado o deslocamento de conflitos eminentemente políticos ao crivo do poder judicial, com a difusão dos procedimentos jurídicos nos espaços de deliberação popular. Paralelamente, a contribuição das ações constitucionalmente consagradas (ação popular, ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental), conferiu a um limitado número de agentes públicos, uma legitimidade ativa para interpô-las perante o STF.

Com efeito, o espaço constitucional cedido pela Constituição da República Federativa do Brasil do ano de 1988 a determinados atores sociais, em virtude do mecanismo do controle de constitucionalidade das leis, lhes possibilitou a interposição de um excessivo número de demandas perante a suprema corte de justiça brasileira. Esses atores, em sua maioria partidos políticos e governadores de Estados, contribuíram para estimular cada vez mais o papel de agente político dos juízes e tribunais na busca pela efetiva proteção dos direitos fundamentais e pela preservação do processo democrático.

Desde uma perspectiva distinta, Fiona Macaulay (2005, pp. 141-163), ao examinar as iniciativas de reformas judiciais levadas a cabo após o período de transição democrática ocorrido em 1985, cujo objetivo consistia na melhoria do modelo de administração de justiça, indica uma visível revalorização das instituições judiciais como resultado da influência política, econômica e social nos distintos conjuntos de reformas propostas. As modificações introduzidas na organização do Poder Judiciário, que o converteram em um poder mais ativo na condução da vida do país, não podem ser explicadas somente em razão do movimento constitucionalista de 1988; mas com base nas realidades políticas vigentes, nas conjunturas democráticas, no balanceamento de poder entre as três esferas do Estado, no sistema federal de governo e nos interesses corporativistas existentes dentro do Judiciário.

Não obstante tudo quanto foi dito, se pode compreender o desenvolvimento do fenômeno da judicialização da política no Brasil a partir do controle de constitucionalidade das leis consagrado pela Constituição de 1988, que implicou substanciais modificações na condução da função jurisdicional. Além disso, a constitucionalização dos direitos e a crescente tomada de consciência por parte de vários grupos sociais de que o Poder Judiciário pode servir como instrumento para a tutela dos seus direitos, redimensionaram os horizontes da atuação daquele poder e ampliaram a repercussão das suas decisões no âmbito político[12].

3.1O Ministério Público e a judicialização dos conflitos políticos

O processo de consolidação democrática, iniciado a meados da década de 1980 cujo auge coincidiu com o advento da Constituição Federal de 1988, produziu significativas mudanças institucionais no Ministério Público, o qual passou a contribuir de forma efetiva para o fenômeno da judicialização da política. Isto se deve, em grande medida, ao uso cada vez mais constante da legitimidade ativa que possui a referida instituição para propor ações diretas de inconstitucionalidade e ações civis públicas perante o Supremo Tribunal Federal.

A participação desse agente da justiça é sintetizada por Rogério Bastos Arantes na sua obra denominada “Ministério Público e Justiça no Brasil”[13]. O autor analisa a reconstrução da trajetória institucional do MP, iniciada com o Código de Processo Civil (1971) e consolidada com a entrada em vigor do atual texto constitucional. Ao comentar sobre a origem da expansão do Poder Judiciário brasileiro, Arantes afirma que: “o problema da justiça tem suas raízes mais profundas na natureza das novas funções assumidas pelo sistema judicial, além dos aspectos estruturais e processais” (ARANTES, 2002, p. 13).

O Ministério Público, como instituição essencial no funcionamento do sistema de justiça, tem a sua estrutura organizacional regulamentada pela Lei Orgânica Nacional (Lei n° 8.625/1993), possuindo funções e poderes orientados para a garantia da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais. Para cumprir com o objetivo que lhe foi encomendado, a instituição tem desempenhado um considerável protagonismo, o que se pode comprovar através da atuação do Procurador Geral da República que, entre os anos 1988 - 2012, foi responsável por 953 (20,1%) das ações direta de inconstitucionalidade.

De fato, a sua intervenção nos conflitos políticos e sociais pôs em relevo a idéia de que os seus membros estão mais orientados ideologicamente na afirmação do papel político da instituição. Entre os motivos que servem para explicar a sua nova atuação figuram: amparar uma sociedade incapaz de defender os seus próprios interesses diante da debilidade representativa das instituições políticas do Estado. O número de ADIn´s anteriormente mencionado favorece a uma rápida percepção de que o Ministério Público tem atuado no exercício do seu papel de representação dos interesses e direitos oriundos da sociedade civil.

Ao contrário, a crise enfrentada pelo sistema de justiça, especialmente naquelas situações onde o Poder Público é omisso enquanto a execução/formulação de políticas públicas junto com a negligência do Poder Legislativo para regulamentar determinadas matérias de sua competência, acabou por legitimar uma ação política do Ministério Público na proteção dos valores sociais. Como bem destaca Rogério Bastos Arantes (2002, p.130):

“A decepção com o funcionamento do regime representativo, nos marcos da sociedade civil supostamente frágil, conduz a tentativas de contornar a esfera política em busca da efetividade dos direitos. Esse é um dos elementos que compõe o universo ideológico do voluntarismo político de promotores e procuradores de hoje, embora também remonte a uma antiga tradição de pensamento político.”

Por conseguinte, o modelo de república constitucional brasileiro, no qual a administração da justiça é responsável pela aplicação da lei além de servir como canal de expressão para que grupos reclamem a promoção dos seus direitos fundamentais, permitiu a ampliação do espaço de atuação de alguns agentes da justiça. O Ministério Público passou a ser considerado um propulsor da judicialização da política, sobretudo quando utiliza suas atribuições constitucionais para levar certos conflitos políticos ao domínio dos tribunais.

3.2A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: apresentação de casos[14]

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal tem dirimido controvérsias de grande relevância política e social. O corpo de ministros tem produzido significativas resoluções normativas sobre diferentes questões, que vão desde a garantia dos direitos fundamentais até as que tratam sobre o processo democrático. A seguir, serão expostos quatro casos emblemáticos onde o STF exerceu uma função distinta da propriamente jurídica, o que permite reconhecer a judicialização da política como uma realidade operante no Brasil.

3.2.1 Fornecimento de medicamentos e o direito constitucional a saúde

Trata-se de Recurso Extraordinário (REXT n° 271.286) onde figuram como partes Diná Rosa Vieira (portadora da chamada Síndrome da imunodeficiência adquirira - AIDS) e o Município de Porto Alegre. O STF, por unanimidade de votos e corroborando com a orientação do artigo 196 da CF/1988, determinou que o município e o Estado do Rio Grande do Sul tem o dever constitucional de fornecer gratuitamente os medicamentos para o tratamento da AIDS daqueles pacientes que não dispõem de recursos financeiros suficientes.

As alegações do Município se baseavam, especialmente, em questões orçamentárias. Sustentou que a decisão do Supremo ofende o artigo 167 da Constituição, quando o obriga a fornecer medicamentos aos doentes de AIDS, e ainda afirmou que a carta constitucional estabelece, no artigo 165, ser de competência do Executivo a elaboração de lei orçamentária anual onde estaria previsto o orçamento da previdência social, não possuindo, portanto, o Poder Judiciário atribuição para intervir em tais assuntos. Por último, alegou que a decisão deixa de observar a repartição de competência no que se refere à execução dos serviços de saúde, o que vulnerabiliza o princípio da separação de poderes (art. 198, §1°, CF).

No seu voto, o relator Celso de Mello rebateu as alegações formuladas pelo Município de Porto Alegre. Afirmou que o procedimento de licitação é dispensado nos casos de emergência, pois o atraso na compra dos medicamentos comprometeria o direito à vida. Além disso, o ministro defende que o juiz não deve se preocupar com a falta de previsão orçamentária em virtude de que esse é um problema que deve ser solucionado pelo administrador público. Com relação à alegação da violação da separação dos poderes, Mello entende que esta não se coaduna com a jurisprudência do STF. Por fim, o voto aborda o direito a saúde que, segundo o Tribunal, é um direito subjetivo assegurado a todos através do art. 196 da Constituição Federal e que, por tal motivo, o Poder Público deve velar, de modo responsável, pela formulação e implementação de políticas sociais e econômicas idôneas dirigidas a garantia do acesso universal e igualitário à assistência médica no Estado.

Assim, o órgão colegiado entendeu que o direito a saúde, ademais de um direito fundamental da pessoa humana, é compreendido como indissociável ao direito à vida e que recebe proteção jurídica da Constituição Federal. A partir de um exercício de um juízo de ponderação, aquele direito, quando confrontado com um interesse econômico do Estado, deve realmente prevalecer em nome do respeito indeclinável à vida e à saúde humana.

3.2.2 A discussão em torno à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa

Cuida-se do exame conjugado de duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC´s 29 e 30), ajuizadas pelo Partido Popular Socialista (PPS) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIn n° 4.578) interposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL), que discutem sobre a constitucionalidade da Lei Complementar n° 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Tal lei atribuiu um novo texto à Lei Complementar n° 64/1990, instituindo outras causas de inelegibilidade com relação à proteção da moralidade e da probidade administrativa no exercício do mandato eletivo, conforme o parágrafo 9° do art. 14 da Constituição Federal.

A Lei da Ficha Limpa traz na redação do seu dispositivo 2°, a hipótese de que serão considerados inelegíveis todos aqueles candidatos que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por um órgão judicial colegiado, desde a condenação até ao transcurso do lapso de oito anos após o cumprimento da pena, pelos seguintes crimes contra: a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; e também contra o meio ambiente e a saúde pública.

Por outro lado, se verifica ainda que serão declarados inelegíveis todos aqueles candidatos que tenham cometido crimes eleitorais para os quais a referida lei comine uma pena privativa de liberdade; de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.

Entre as várias incompatibilidades da lei com a Constituição brasileira, se sustentou que ela contraria os princípios constitucionais da não retroatividade, ao tornar candidatos inelegíveis por atos anteriores à sua entrada em vigor (junho de 2010). Ademais, se alegou violação ao princípio da presunção de inocência, ao levar em conta decisões judiciais ainda passíveis de interposição de recurso. O argumento central é o de que a inelegibilidade não tem caráter de pena e que, por isso, tais princípios não se aplicam ao caso da Ficha Limpa.

Após um cenário de debates marcado por entendimentos divergentes entre os ministros, o relator Luiz Fux proferiu o voto pela parcial constitucionalidade da lei ora discutida, posto que existe uma desproporcionalidade na fixação do prazo de oito anos de inelegibilidade após o cumprimento da pena (aliena “e”). Ainda de acordo com o relator, esse tempo não deveria ser computado para efeitos de contagem entre a condenação e o trânsito em julgado da sentença condenatória (instituto da detração). Ao final, O Supremo Tribunal Federal, por maioria votos (sete contra quatro), declarou a constitucionalidade da lei, que já poderá ser aplicada nas eleições que vão realizar-se neste ano e que poderá retroagir para alcançar os atos e fatos ocorridos antes da sua entrada em vigor[15].

3.2.3 O reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar

 Os ministros do STF, ao julgarem procedente a ação direta de inconstitucionalidade n° 4277 e a arguição de descumprimento de preceito fundamental n°132 interpostas pelo Procurador Geral da República e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, reconheceram a união homoafetiva como uma entidade familiar. A constante luta dos movimentos sociais em favor do reconhecimento da diversidade sexual, para efeitos de equiparar a relação entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, invadiu a arena judicial em busca de uma resposta definitiva sobre o tema[16].

Dez ministros votaram a favor da união homoafetiva: Carlos Ayres Britto, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso. Já Dias Toffoli não participou do julgamento porque havia atuado em duas ações quando exercia o cargo de Advogado Geral da União. A interpretação do Tribunal sobre a união homoafetiva certificou a existência de uma quarta família, ao lado daquelas decorrentes do casamento, da formada com a união estável e da entidade familiar monoparental (todas reconhecidas pelo texto constitucional).

O relator Carlos Ayres Britto proferiu o seu voto no sentido de atribuir uma interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil, que impeça o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Ele defendeu o argumento de que o art. 3º, inciso IV, da CF, proíbe qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor de pele e que, portanto, ninguém pode sofrer um ato daquela natureza em razão da sua preferência sexual. Para Britto, o sexo das pessoas não pode servir como um meio de desigualdade jurídica e que, por isso, qualquer depreciação da união estável homoafetiva afronta o inciso IV do art. 3° da Constituição.

3.2.4 A decisão sobre a extradição do italiano Cesare Battisti

Em 2009, os governos brasileiro e italiano acompanharam o julgamento do processo de extradição de Cesare Battisti, condenado a pena privativa de liberdade pela justiça italiana por haver participado do cometimento de quatro homicídios entre 1977 e 1979. Esse caso envolveu uma discussão sobre quais seriam as situações nas quais o Judiciário poderia exercer atos de competência do Executivo, além de indagar sobre a legitimidade democrática daquele para intervir na política externa e decidir sobre a extradição de um indivíduo (matéria constitucionalmente reservada à pessoa do Presidente da República)[17].

As circunstâncias que envolveram o pedido de extradição e a importância da preservação das relações diplomáticas entre Brasil e Itália contribuíram para a ocorrência de intensos debates entre os ministros do STF. O argumento de que compete ao Tribunal Constitucional, em última instância, o controle de legalidade sobre a concessão de refúgio político de Cesare Battisti foi defendido por Cezar Peluso. Para ele, o caráter político-administrativo da decisão concessiva de refúgio não deve ser entendido de modo estrito, nem tampouco que o fato ou dever de outorga ser atribuição de competência reservada à própria União, por representar o país nas relações internacionais, lhe subtraia, de modo absoluto, os respectivos atos jurídico-administrativos ao ordinário controle jurisdicional de legalidade (judicial review). A modo de conclusão do seu discurso, C.Peluso entende que:

“Em suma, a decisão do Senhor Ministro da Justiça não escapa ao controle jurisdicional sobre eventual observância dos requisitos de legalidade, sobretudo à aferição de correspondência entre sua motivação necessária declarada e as fattispecie normativas pertinentes, que é terreno em que ganha superior relevo a indagação de juridicidade dos motivos, até para averiguar se não terá sido usurpada, na matéria de extradição, competência constitucional exclusiva do Supremo Tribunal Federal.” (Extradição n° 1085/2007 do STF)

Ao contrário do exposto, Eros Grau e Marco Aurélio de Melo afirmaram que não seria razoável que o STF interferisse em um ato de política exterior, cuja atribuição é exclusiva do Presidente da República. Segundo a opinião dos ministros, não compete àquela Suprema Corte de Justiça analisar a questão referente à concessão de refúgio e muito menos determinar a extradição de um estrangeiro. Conforme o voto de Marco Aurélio:

“Não incumbe ao Supremo Tribunal Federal extraditar, senão processar e julgar a extradição solicitada por Estado estrangeiro, se e quando o pedido lhe for remitido pelo Poder Executivo, pronunciando-se previamente, pelo seu Plenário, sobre sua legalidade e procedência. Repito: não nos cabe extraditar ninguém; quem o faz é o Presidente da República, a quem incumbe manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII da Constituição do Brasil). Um dos requisitos dessa legalidade é o da ausência da concessão de refúgio, concessão que consubstancia faculdade do Poder Executivo.” (idem)

Depois de acirrados debates sobre o tema em pauta com a presença de argumentos divergentes como os já apresentados, finalmente no dia 18 de novembro de 2009, por maioria de votos (cinco contra quatro), o Pleno do Supremo Tribunal autorizou a extradição de Cesare Battisti por estar presente os pressupostos necessários para a execução da medida. De igual forma, restou determinado que a decisão sobre a sua efetiva entrega à República da Itália estaria condicionada a palavra final do Presidente da República Federativa do Brasil.


Conclusões

No Brasil, as intervenções judiciais têm crescido paulatinamente tanto em número, como também no grau de importância das questões enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. Nesse sentido, se tem notado com certa frequência, a participação de políticos e de um conjunto de atores da vida pública no ambiente daquele Alto Tribunal, contribuindo intensamente para o estímulo de um fenômeno que tem sido denominado de judicialização da política, onde o corpo judicial assume o papel de verdadeiro protagonista no que se refere ao cumprimento das promessas do modelo de democracia constitucional.

A presença do Poder Judiciário, como via de acesso ou instrumento de transmissão das reivindicações coletivas e individuais, consiste em um fator de grande transformação social no Estado brasileiro. Entretanto, é necessário flexibilizar ou relativizar essa atuação inovadora, posto que pode levar à conversão do processo e dos tribunais, em uma arma na mão de partidos políticos para alcançar seus objetivos institucionais e, com isso, se manterem no poder. Tal hipótese compromete a legitimidade e independência daquele poder, necessárias para a manutenção da democracia e a proteção dos direitos fundamentais.

Enfim, a judicialização da política não pode trazer consigo a idéia de substituição das instâncias majoritárias pelos órgãos judiciais, posto que eles não devem se apoderar dos espaços deliberativos institucionalmente atribuídos aos poderes públicos, segundo a lógica democrática. Sob essa diretriz, o Poder Judiciário não deve se transformar no único canal apto para processar os pedidos e reivindicações da sociedade brasileira; porém, lhe compete promover o acesso dos cidadãos às instâncias de poder no sentido de fomentar um debate público sobre temas relevantes e conciliar os interesses divergentes no espaço político.


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Notas

[1] A expansão da atuação do Poder Judiciário no mundo está intimamente ligada à terceira onda de democratização que produziu um conhecimento acerca do controle judicial das leis. Mais de três quartos dos países do mundo consagram alguma forma de controle judicial de constitucionalidade ou de revisão judicial. Sobre isso, veja o artigo do norte-americano HOROWITZ, Donald. L. On Constitucional Court. Journal of Democracy, vol. 17, n° 4, october 2006, p. 125.

[2] O mecanismo de controle de constitucionalidade das leis teve uma grande influência sobre os sistemas de justiça de vários países ocidentais, constituindo um importante elemento político que outorga preponderância ao Poder Judiciário, como órgão central nas democracias modernas. Sua instituição e aplicação não só confere aquele poder à faculdade de invalidar os atos legislativos e executivos, como lhe cede uma margem de discricionariedade para atuar tanto no controle do processo legislativo como na execução de políticas públicas. Sobre o instituto do controle de constitucionalidade, veja LINARES, Sebastián. La (i) Legitimidad Democrática del Control Judicial de las Leyes. 1ª ed., Barcelona: Marcial Pons, 2008.

[3] HABERMAS, Jürgen. Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en término de Teoría del Discurso: Facticidad y Validez. 3ª ed., Madrid: Trotta, 1996. Com respeito à distinção entre a atuação política e jurídica tem lugar a contribuição de Habermas. O sociólogo alemão parte de duas concepções inspiradas no sistema político norte-americano (liberal e republicana) para construir uma concepção normativa fundada no discurso racional denominada de procedimental de política deliberativa (peça nuclear do processo democrático e da noção de democracia). Tal modelo normativo, fundado na argumentação racional, envolve o equilíbrio entre esses dois interesses e fornece condições para que a judicialização da política alcance legitimidade. Para J. Habermas, a deliberação democrática e racional funciona como requisito essencial à legitimidade do Direito, onde a jurisdição constitucional aceita um papel procedimental de preservação dos direitos fundamentais com o propósito de cumprir com o processo democrático. Em função de tudo isso, o Poder Judiciário possui a prerrogativa de restringir a vontade da maioria com a finalidade de salvaguardar os valores e princípios democráticos, sem que essa intervenção na esfera dos demais poderes possa atentar contra a organização e manutenção do próprio Estado.  

[4] Neste ponto, faz-se necessário estabelecer uma distinção entre o que se denomina por ativismo judicial e a judicialização da política. Embora ocorram, com bastante frequência, algumas confusões em quanto ao uso dessas duas expressões, elas não só possuem origens distintas como também os seus fatores determinantes procedem de causas diversas. Primeiramente, a judicialização da política se refere à expansão da competência dos tribunais para controlar ou invalidar leis os atos normativos das instâncias representativas, a qual se materializa em função de um dado modelo constitucional adotado. Já a doutrina do ativismo judicial sugere aos juízes uma interpretação livre de todo vínculo com o texto da lei, ou seja, favorece a livre criação do direito constitucional por parte daqueles agentes da justiça com o fim de adaptar os valores constitucionais às necessidades da vida real, que só os juízes podem identificar mediante os seus sentimentos de justiça.

[5] É imprescindível advertir que a exposição das causas e condições necessárias ao surgimento da judicialização da política tem como referência a obra The Global Expansion of Judicial Power (1995) de C. Neal Tate y Torbjörn Vallinder. Os citados autores se preocuparam basicamente com a realidade dos países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos da América. No entanto, o fenômeno possui características diversificadas de acordo com as peculiaridades vividas em cada país. Dito isto, se faz do todo necessário examinar cada caso individual para que se possa discriminar, com mais propriedade, os fatores preponderantes que concorrem ao surgimento da judicialização da política em cada um deles.

[6] Informações extraídas do Banco Nacional de Dados da página web do Supremo Tribunal Federal (www.stf.gov.br).

[7] Matthew M. Taylor analisa uma das condições de manifestação da judicialização da política, qual seja a da utilização das cortes de justiça pelos partidos políticos no Brasil, a partir da experiência do Partido dos Trabalhadores (PT), considerado como principal força de oposição ao governo e importante ator na condução do processo governamental. O autor defende a tese de que o uso frequente das cortes de justiça pelos partidos políticos é resultado de três ordens de fatores distintos: (a) as relações travadas entre os partidos e os administradores públicos estatais (Poder Executivo); (b) a arquitetura institucional do Poder Judiciário; e (c) a importância dos diversos instrumentos judiciais previstos no ordenamento jurídico que dinamizam o exercício da jurisdição constitucional (como a ação direta de inconstitucionalidade). Para concluir, M.M Taylor assegura que o uso político dos tribunais de justiça no Brasil tem representado significativos avanços sobre o sistema democrático em virtude da sua enorme contribuição para o desenvolvimento político do país. Para mais detalhes, consultar o artigo de TAYLOR, Matthew M. El Partido de los Trabajadores y el Uso Político del Poder Judicial. Revista América Latina Hoy, agosto, año / vol.37. Salamanca: Universidad de Salamanca (Espanha), 2004, pp. 139/140.

[8] Entre os casos que ilustram uma intervenção do Poder Judiciário na política exterior se pode citar: a decisão da Corte Constitucional Alemã sobre a constitucionalidade do Tratado de Lisboa cuja finalidade era a de comprovar União Européia estava violando ou não os mecanismos de revisão democrática (2008). Além do anteriormente mencionado, se encontra a sentença no caso Hamdan v. Rumsfeld (2006), quando a Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos determinou que o Poder Executivo respeitasse as normas da Convenção de Genebra a fim de conferir aos prisioneiros de Guantánamo (capturados no exterior), a mesma proteção conferida aos prisioneiros de guerra. Por outra parte, com relação à interferência das cortes internacionais na jurisdição nacional se destacam os exemplos que retratam uma atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (como o caso da censura judicial do filme A última tentação de Cristo no Chile) e as experiências apresentadas pelo Tribunal Internacional de Direitos Humanos e também pelo Tribunal Penal Internacional.

[9] Sobre o conceito, evolução e trajetória histórica dos direitos humanos, veja PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2007. Para outra obra sobre o tema dos direitos humanos, NIKKEN, Pedro. La Protección Internacional de los Derechos Humanos: su desarrollo progresivo. 1ª ed., Madrid: Civitas, 1987.

[10] Ronald Dworkin defende o redimensionamento do direito em direção à construção de uma sociedade democrática apta para consagrar e solidificar o respeito pelos direitos individuais através do exercício da função judicial. O autor tem uma opinião bastante positiva a favor da revisão judicial dos atos deliberados na arena política no sentido de que, dessa maneira, se possa fortalecer a democracia e reduzir a ingerência dos chamados grupos de interesses no campo das políticas públicas. Tudo o que foi dito, está em DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 19.

[11]Para uma obra de referência, veja MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007.

[12]Gunther Teubner reconhece a existência de uma comunicação entre o direito e as relações sociais e admite, inclusive, a incorporação de instrumentos (políticos, econômicos, entre outros) ao subsistema jurídico através do processo de judicialização. TEUBNER, Günther. Juridification. Concepts, Aspects, Limits, Solutions. In: Günther Teubner (ed.). Juridification of Social Spheres. A Comparative Analysis in the Areas of Labor, Corporate, Antitrust and Social Welfare Law. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1987, p. 7.  

[13] O autor publicou um artigo muito esclarecedor acerca do papel do Ministério Público na defesa dos direitos da sociedade civil. Para outros detalhes, é importante consultar Rogério Bastos Arantes. Direito e política: o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, n° 39, fevereiro de 1999, pp. 83–102.

[14] As sentenças aqui analisadas foram extraídas da base informática de dados da jurisprudência do STF (www.stf.gov.br).

[15] As ADC´s 29 e 30 foram julgadas procedentes. Em que pese a ADIn n° 4.578 que questionava o art. 1° (alínea m), o qual torna inelegível por oito anos quem for excluído do exercício da profissão, por decisão do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional –, foi julgada improcedente, também por maioria de votos (seis contra cinco).

[16] A ADIn n° 4277 tinha como objetivo o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e pedia que os mesmos direitos dos companheiros na união estável fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Na ADPF n° 132, o governo do Rio de Janeiro alegou que o não reconhecimento da união dos homossexuais entra em colisão com os preceitos fundamentais (igualdade, liberdade e a dignidade da pessoa humana) chancelados pela Constituição Federal da República do Brasil. Partindo desse argumento, se requereu a aplicação do regime jurídico contido no art. 1.723 do Código Civil às uniões homoafetivas de funcionários públicos do Rio de Janeiro.

[17] O caso trata, basicamente, sobre a aplicação de princípios de direito penal internacional e o da nacionalidade ativa.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, João Marcelo Negreiros. A ascensão do Poder Judiciário no Brasil democrático. Algumas considerações sobre a judicialização da política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3364, 16 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22620. Acesso em: 6 maio 2024.