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O sistema do Common Law

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16/10/2012 às 16:22
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É impossível se referir a Common Law como uma categoria estática ou um grupo unificado, pois cada país criou seu sistema, e observa-se grande divergência com relação à importância das fontes, ao caráter vinculativo dos precedentes e os procedimentos.

O Sistema do Common Law

  1. Introdução

Apesar de em uma mesma sociedade ocidental, países apresentam diferentes formas de tratar um fato juridicamente relevante, conhecimentos diversos são necessários para trabalhar nos diversos sistemas do direito. Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida[1]: “Para este efeito, sistemas jurídicos (ou ordens jurídicas) são conjuntos coerentes de normas e de instituições jurídicas que vigoram em relação a um dado espaço e/ou a uma certa comunidade.” Talvez devesse-se falar em um único sistema ocidental de Direito, mas as profundas diferenciações na maneira de se tomar decisões nos levam a dividir este em subsistemas, assim podemos falar em um subsistema romanístico, o Civil Law, presente nos países germânicos e latinos, e o Common Law subsistema dos países de origem anglo-saxões.

Prima-se no sistema romanístico o processo legislativo, tendo as outras fontes papel secundário, o que se acentuou após a revolução francesa com o código napoleônico e as formulações de Montesquieu, essa glorificação da lei é bem expressa nas palavras de Plutarco citadas pelo Barão de Montesquieu: “A lei é a rainha de todos os mortais e imortais[2]

No Common Law o direito se revela pelos costumes e pela jurisdição, é um direito misto, costumeiro e jurisprudencial , é um direito coordenado pelos precedentes: stare decisis et nonquieta movere, que de acordo com Peter Colin[3] significa ”‘stand by preceding decisions’: principle that courts must abide by precedents set by judments made in higher courts”

  1. Histórico

É importante destacar a diferença entre direito anglo-saxão e Common Law, termos que são frequentemente confundidos, este é gênero sendo aquele espécie, o direito Inglês é uma parte do sistema do Common Law, com suas devidas particularidades.[4] Mas, cabe destacar que o Common Law surge como direito anglo-saxão, depois que se expande e abrange outras ordens.

O Common Law em seus primórdios foi um direito dos bárbaros, um direito consuetudinário por excelência. A língua e a cultura dos povos bárbaros dificultaram a fusão com o povo romano, que ocupava as ilhas britânicas, os recém chegados representavam uma parcela ínfima da população mas dotada de grande força bélica, eram povos instáveis, efêmeros, que desconheciam a estrutura de um estado, o que levou à formação de diversos agrupamentos sem um sistema de direito unificador, como se percebia na heptarquia anglo-saxônica, fazendo valer unicamente a tradição dominantes em cada região, o que por alguns é chamado de personalidade das leis, ou seja, o sujeito se submete às leis de seus pais pela força da tradição.[5]

A conquista normanda é o marco de surgimento propriamente dito do common law, uma “lei comum” que substituiu os sistemas tribais, destacando-se a atuação dos Tribunais Reais de Westminter. Nas palavras de Fernando Silva Soares[6]:

"após a conquista normanda da Inglaterra, o direito que os Tribunais de Westminster criavam era denominado common law (corruptela da expressão dita na língua do rei: commune ley) em oposição aos direitos costumeiros locais e muito particularizados a cada tribo dos primitivos habitantes, aplicados pelas County Courts, e que logo seriam suplantados"  

Os tribunais não eram para todos, não havia uma jurisdição até 1875, dever-se-ia solicitar a concessão de um writ ao chanceler, através do qual o indivíduo poderia ter seu caso levado aos tribunais. Nesses tribunais se fazia valer a máxima Remedies Precede Rights, ou seja, em primeiro lugar o processo, a sentença só poderia ser proferida se antes perpassasse uma série de formalismos, criando uma jurisprudência oficial, realmente normas sólidas, precedentes que delineavam o ordenamento jurídico como únicas fontes de direito.

Havia uma rigidez exacerbada nesse sistema, uma sentença de um alto tribunal dificilmente perde seu valor de precedente, e sabe-se que com o tempo a sociedade muda necessitando de novas normas que correspondessem a sua mudança de costumes. Por essa razão, surge uma reação com o intuito de “trazer justiça”, a equity. Segundo o civilista Silvio Venosa:

“A Equity não pode ser traduzida por eqüidade, pura e simplesmente. São normas que se superpõem ao Common Law. A Equity origina-se de um pedido das partes da intervenção do rei em uma contenda que decidia de acordo com os imperativos de sua consciência. Tem por escopo suprimir as lacunas e complementar o Common Law. As normas da Equity foram obras eleboradas pelos Tribunais de Chancelaria. O chanceler, elemento da coroa, examinava os casos que lhe eram submetidos, com um sistema de provas completamente diferente do Common Law. O procedimento aí é escrito, inquisitório, inspirado no procedimento canônico.”

A equity deveria respeitar o direito já existente, o que é expresso na máxima: Equity follows the law.

A figura do Chanceler, o Cousellor, o confessor do rei, tornou-se cada vez mais autônoma da figura real, estatuindo em nome do rei e do conselho de onde derivava seu poder delegado; e cada vez mais essa exceção tornou-se comum, devido à esclerose e lentidão da Common Law, a equity tornou-se um sistema paralelo e forte, com seu próprio procedimento.[7]

Um dos grandes críticos da equity foi Thomas Hobbes, para quem não se poderia separar dois sistemas como se existissem duas justiças, afinal, toda justiça emana do soberano, não havendo porque separar-se trubunais da equity de tribunais da Common Law. [8]

Paulatinamente, dentro das próprias decisões baseadas na equity, passou a valer a regra do precedente, adquirindo por volta do século XIX tanta rigidez quanto a Common Law. A principal criação da equity foi o mecanismo do trust, que ainda hoje tem grande uso, que é uma forma de administração de bens por terceiros de forma juridicamente protegida, nas palavras de Maitland[9]:

"Quando uma pessoa tem direitos que deve exercer no interesse de outra ou para a realização de um objetivo especial dado, diz-se que essa pessoa tem os direitos em questão em trust para a outra pessoa ou para o objetivo em causa, sendo chamada de trustee."

 

Nos EUA, a equity e o Common Law foram recebidos por tribunais distintos, mas que ao passar se fundiram. Na Inglaterra, com a evolução da democracia e a influência das ideias de Jeremy Bentham, a partir dos Judicature Acts entre 1873 e 1875 é que a distinção formal dos tribunais da Chancelaria e da Common Law acaba, todos os tribunais ingleses podem usar indistintamente as regras da Common Law e da Equity.[10]

Em seus primórdios, o Common Law tinha seus limites geográficos congruentes aos do Império Britânico, com a descolonização, cada país passou a exercer com sua jurisdição própria esse sistema, o Common Law passou a emanar de diversos poderes, não apenas do poder do Estado inglês. Daí que podemos começar a falar de um sistema anglo-americano de direito.

Nos EUA, após a independência, o Common Law inglês continuou sendo utilizado, e seus precedentes válidos, mas daí em diante o sistema sofre um desenvolvimento próprio, condizente com a realidade americana e especialmente com o sistema federativo. Hoje existe então um Common Law americano e um Common Law inglês que não mais se vinculam.

A atuação do Privy Council nos países que o acolhem traz certa unidade ao sistema de Common Law, mas de qualquer forma, pela existência de países fora dessa jurisdição e que utilizam o Common Law, não podemos nos referir a este como uno, mas podemos falar em vários direitos comuns mais ou menos parecidos.

  1. A Estrutura Judiciária
    1. Inglaterra

A Inglaterra existe como país soberano, como integrante da Grã-Bretanha, como integrante do Reino Unido e como integrante da União Europeia, sem grandes aprofundamentos podemos destacar os principais órgãos do sistema judiciário inglês.

Os crimes leves e os praticados por menores são julgados em primeira instância pela Magistrate’s Court, por uma banca composta de três juízes leigos indicados por representantes da sociedade civil e escolhidos pelo Lord Chancellor. Já os crimes graves são julgados pela Crown Court, e o julgamento é feito por um júri popular presidido por um juiz togado chamado de Circuit Judge, essa corte serve de segunda instância para casos tramitados na Magistrate’s Court.[11]

A County Court é composta por juízes togados e julga conflitos de natureza civil de menor complexidade, que envolvam valores até quinze mil libras. As causas de maior complexidade são julgadas pela High Court, composta por High Court Judges, nomeados entre juízes e advogados. Esta corte é dividida em: Family Division, que julga causas de natureza familiar; Chancery Division, presidida pelo Lord Chancellor cuida de assuntos ligados a sociedades mercantis, falências, propriedade intelectual, disputa de terras entre outros; e a Queen’s Bench Division, presidida pelo Lord Chief of Justice, cuida de contratos, responsabilidade civil, direito marítimo, administrativo e congêneres. [12]

A Court of Appeal é dividida em: Civil Division, que julga recursos da High Court e das County Courts; e a Criminal Division, que julga recursos da Crown Court. No topo do sistema está a Suprema Corte do Reino Unido  composta por 11 ministros que julgam em colegiado causas advindas da High Court, da Court of Appeal e de cortes superiores da Escócia e da Irlanda do Norte.[13]

Cabe frisar que a Inglaterra ainda é sujeita a cortes da União Europeia que tem competência própria que não cabe aqui analisar. E também destaca-se a atuação do Judicial Commitee of The Privy Council:

“The Judicial Committee of The Privy Council (JCPC) is the court of final appeal for the UK overseas territories and Crown dependencies, and for those Commonwealth countries that have retained the appeal to Her Majesty in Council or, in the case of Republics, to the Judicial Committee.”[14]

  1. Estados Unidos da America

Os EUA são uma federação, o que significa que cada Estado federado tem seu próprio poder judiciário que coexiste com o da federação, cada um com sua competência específica. Casos que envolvam disputas entre estados, leis federais e governos estrangeiros são da competência da justiça federal; pode acontecer de os tribunais federal e estadual tomem uma decisão conjunta para um caso que permeia a competência dos dois simultaneamente; porém, a maioria dos casos cabe ao judiciário estadual.

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O direito ao julgamento pelo júri existe em todos os casos criminais e em alguns cíveis. Existe uma Suprema Corte Federal composta por nove ministros, logo abaixo as circunscrições (Court of Appeal), que são 12 em todo território, e abaixo destas na primeira instância as District Courts, 94 ao total, isso no que concerne à justiça federal. Quanto à justiça estadual, cada estado define sua estrutura judiciária.

  1. As Fontes do Direito.

Nessa parte indicaremos as fontes do direito e suas influências no processo decisório no Direito anglo-americano. As fontes são os costumes; as leis (statute law); e os precedentes (case law). Não consideraremos a doutrina pois ainda existe grande controvérsia com relação a sua categoria como fonte, e de qualquer forma esta é claramente inferior àquelas. Segundo Reale[15]:

“O essencial, porém é ter presente que, sem poder de decidir, não se pode falar em fonte do direito, motivo pelo qual, (...), a doutrina, ao contrário do que sustentam alguns, não é fonte do direito, uma vez que as posições teóricas, por mais que sejam a força cultural de seus expositores, não dispõem de per si do poder de obrigar.”

  1. Costumes

O costume é uma fonte que representa genuinamente uma consciência coletiva de que um ato deva ou não ser praticado, através do uso reiterado de uma conduta.[16] Para os Ingleses o costume ocupa lugar de grande importância, já que a origem de seu direito é consuetudinária; já para os americanos, que receberam o common law como um direito judicial na origem de seu direito, os costumes não são de tanta importância. Existem aqueles defensores do direito consuetudinário como o melhor, pois não se separa a eficácia da validade em um costume.[17]

  1. Lei

Hugo Gotheil[18] diz:

  • Pero donde más claramente se muestra la diferencia (entre Common Law y el Civil Law) es em la tradicional idea del Common Law, según la cual la ley nada significa hasta que um juez la utiliza como fuente y la construye. Los juristas adoptan frente al texto legal uma actitud de duda parecida a la que corresponde ante um leading case todavia no construído. Como consecuencia de esta manera de entender la ley, la jurisprudência cubre rapidamente la norma legislativa y ésta es sólo um punto de referencia originário respecto de los casos judiciales, que alcanzan um verdadeiro papel de fuentes de derecho em el punto.”

 Esse desprezo pela lei é de caráter histórico, para o britânico, a lei foi um instrumento de dominação tirânica facilmente maleável, e sua restrição é uma restrição do poder despótico. Porém, desde a revolução industrial, a criação de leis vem crescendo como resposta política à desatualização das fontes. Segundo Gilisen[19]:

“embora a legislação fosse considerada, na Inglaterra, secundária em relação à jurisprudência — apesar da composição cada vez mais democrática do Parlamento — ela conheceu no século XIX e, sobretudo, no século XX, um desenvolvimento notável. Foi por via legislativa (statutes de 1832-1833 e de 1873-1875) que foram introduzidas reformas profundas na organização dos tribunais e, por conseqüência, no processo e nas relações entre  common law e equity. Do mesmo modo, foi por statutes que foram introduzidos um direito social inteiramente novo e, em menor escala, um direito econômico novo, sobretudo depois de 1945, por pressão do Labour Party”

É importante neste sentido destacar a criação da União Europeia, com suas leis e ordem jurídica próprias que incide sobre seus países membros. Nos EUA a criação de leis é ainda mais comum, através do modelo federativo, os diversos Estados federados produzem mais ou menos leis, e a união produz leis que ajudem a manter um padrão legislativo dentre os Estados, como através das Federal Rules of Procedure.

  1. Precedente

O precedente é uma decisão judicial anterior de um caso semelhante, segundo Fredie Didier[20]Precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto ,cujo núcleo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.”. Podemos também nos referir a jurisprudência como o conjunto dos precedentes, nas palavras de Carlos Maximiliano[21]: “Conjunto das soluções dadas pelos tribunais às questões de direito”. Podemos dizer que o direito Anglo-saxão é um direito jurisprudencial, chamado também de case law. Segundo Wolkmer[22]:

“A outra orientação, representada pela cultura jurídica do Common Law, pode ser cunhada como Escola Jurisprudencial. Para esta, o Direito não se confunde com a lei escrita, pois é sempre criado pelos juízes, nos tribunais, com material sempre embasado nos precedentes judiciais (...)”

De acordo com a natureza de sua autoridade o precedente pode ser: i) natural, um precedente que tem valor pois acrescenta algo ao ordenamento, mas sua autoridade depende de uma apreciação crítica de quem decide, não dispensando a demonstração de valor da posição assumida; ii) Persuasivo, tem autoridade por si, mas em casos excepcionais pode ser afastado; iii) vinculativo, a sua autoridade é absoluta, não pode ser afastado.[23]

Necessariamente no sistema anglo-americano o precedente tem autoridade persuasiva ou vinculativa, sendo necessário distinguir a posição do tribunal[24]:

  1. Perante os precedentes de tribunais inferiores: Onde o precedente é persuasivo.
  2. Perante os precedentes de tribunais paralelos: ainda é do tipo persuasivo, mas com muito mais força, sendo dificilmente afastados, vale ressaltar a  maior flexibilidade do sistema americano.
  3. Perante os seus próprios precedentes: não há vinculação nesses casos.
  4. Perante os precedentes de tribunais superiores: vale o stare decisis, o precedente de um tribunal superior é vinculante para um tribunal inferior, sendo essa a base do direito anglo-americano.

Historicamente, e até de forma lógica, o precedente de um tribunal superior em relação a tribunais inferiores tornou-se vinculativo.[25] E por costume, um tribunal tendia a manter sua decisão para casos semelhantes, tendência forte na Inglaterra principalmente, mas nenhum principio o impedia de não fazê-lo. Sergio Sérvulo da Cunha[26] comenta:

“Como se vê, na formação expressa do princípio, na Inglaterra, se desconhece a maior parte das exceções e ressalvas que o caracterizam nos Estados Unidos, e que fizeram do  common law  norte-americano um ordenamento jurídico mais fluido e variável do que o inglês. Por exemplo, nos Estados Unidos não se discute o direito de um tribunal inferior de recusar-se a seguir uma sentença precedente in point ditada por um tribunal de hierarquia superior, da mesma jurisdição, se o tribunal inferior considerar que o tribunal superior cometeu um erro crasso...”

A Câmara dos lordes veio a admitir o caráter vinculativo de suas decisões em 1861 em Beamish vs Beamish, mas ganhou força em 1898 com London Street Tamways vs. London County Council, quando o tribunal considerou devido zelar pela segurança jurídica, como vê-se nas palavras do Lord Chancellor, o Lord Halsbury[27]:

I am of the opinion… that a decision of this House once given upon a point of law is conclusive upon this House afterwards, and that it is impossible to raise that question again as if it was res integra and could be reargued, and so the House be asked to reverse its own decision. That is a principle which has been, I believe, without any real decision to the contrary, established now for some centuries, and I am therefore of opinion that in this case it is not competent for us to rehear and for counsel to reargue a question which has been recently decided.(…)”

Até 1966 a Camara dos Lordes ficou atada ao Stare Decisis de forma mais rígida, estritamente vinculada a seus próprios precedentes, quando nesse ano, uma declaração solene do Lorde Chanceler, Lord Gardiner, estipulou que a Camara poderia a partir daquele momento se não seguir essa regra. René David[28] porém, afirma que esse direito não foi utilizado tão frequentemente, sobre as dificuldades de negar um precedente depois daquela data, diz ipsi literis:

“It is still too early to say to what extent the House of Lords will use the right it has acknowledged itself to have of changing its case law. At the end of 1976 the cases in which it had been used could be counted on the fingers of one hand.

Moreover, various rules had been proposed. For a decision to be overruled it is not enough that it should be wrong; there must be a very good reason for the change. A judgment interpreting statute will more easily be changed than a judgment concerning the common law, questions of principle being more rarely involved in the former case.”

Poucos anos depois a Court of Appeal aderiu a essa flexibilização.

O precedente é então a principal fonte do direito anglo-americano, o que é traduzido pelo princípio do stare decisis, com uma rigidez maior na Inglaterra. Sobre esse princípio, diz José Anchieta da Silva:

“Interpretação literal do que estaria a compreender tal expressão seria ‘stare decisis et quieta non movere’ ou mantenha-se a decisão e não se pertube o que foi decidido. Sobre o stare decisis se assenta um dos pilares de todo o sistema judiciário, por exemplo, dos Estados Unidos da América do Norte, porque para todo o direito anglo-americano, as decisões judiciais e, principalmente as decisões judiciais dos tribunais superiores forma, por assim dizer, uma forragem por sobre a qual caminham todos os demais julgadores.”[29]

  1. O Funcionamento do Sistema

Segundo Wolkmer[30]:

“Não só nos parâmetros do Common Law, mas ainda nos sistemas jurídicos de Direito codificado, o ponto central de gravitação de toda criação judicial incide na decisão de casos particulares, e não na formulação de regras gerais e abstratas, pois a criação judicial expressada por sentenças dos juízes nos tribunais representa a fonte autêntica do Direito objetivado.”

A doutrina positivista da École d’Exégèse fazia valer a máxima de Montesquieu “Le juge: bouche parlante de la loi”[31] e do brocardo pseudo-latino in claris non fit interpretatio; com o passar do tempo outras doutrinas se instauraram no sentido de uma maior dissociação entre texto e norma e consequentemente uma maior intercessão entre os poderes o que torna cada vez mais o juiz um ser ativo, político.[32] Já é unanime a posição de que o juiz é ativo e cria direito.[33]O legislador faz leis, mas lei não é Direito; lei é norma geral, impessoal, enquanto o Direito é necessariamente pessoal, particular: feito pelo juiz, sob medida...[34]

Quanto a essa discussão, e no âmbito do Common Law, destacam-se as teorias declaratórias e constitutiva da jurisdição. A teoria declaratória afirma a posição de Montesquieu de que o juiz se restringe a aplicar o direito, não o cria. O Common Law é um direito não escrito, é um direito que está nos costumes, o papel do juiz é apenas revelar esses costumes, não criá-los.[35] Bentham e Austin, da teoria constitutiva, defendem por outro lado que o juiz vive uma ilusão ao achar que apenas revela algo que simplesmente existe feito por ninguém, para eles o juiz é o real criador do Common Law. Segundo Wesley-Smith[36]:

The common law, said the positivists, existed (if it existed at all) because it was laid down by judges who possessed law-making authority. Law was the product of judicial will. It was not discovered but created”.

Alguns pontos são destacados nesse embate de teorias:

  1. Para os declaratórios, o juiz nunca antepõe suas próprias opiniões, mesmo quando decide em caso de lacuna. Para os defensores de uma teoria constitutiva isso é um absurdo, os magistrados impõem muito de sua vontade nas decisões, é claro que se pressupõe neutralidade destes, mas tal é impossível em matéria decisória, afinal todo texto é impregnado de intenções. Isso é explícito no acórdão escrito pelo ministro Marco Aurélio de Mello[37] :

“Ofício judicante – postura do magistrado. Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerando a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática pura, encontrando o indispensável para formalizá-la”

  1. A possibilidade da criação de direito pelo judiciário contraria a doutrina da separação de poderes, defendem os declaratórios. O que para os que defendem o “judge made law” é verdade mas irrelevante, pois não se pode conceber uma separação de poderes perfeitamente rígida;
  2. Para a teoria declaratória se o tribunal criasse direito a sentença teria caráter retroativo. Que é o que efetivamente ocorre no direito americano.

Quanto ao surgimento de uma lacuna, Ascenção diz que o juiz anglo-americano não é totalmente livre para dirimir tais casos baseado em sua concepção de justiça; toda criação dele é subordinada ao sistema no qual ele opera.[38]

O direito anglo-americano é um direito de juízes, é notável sua preponderância com relação aos doutrinários. O juiz é o ápice das carreiras jurídicas, René David explica que as universidades de direito na Inglaterra surgiram tardiamente, e os juristas eram práticos, daí a pouca importância da doutrina. O Common Law é um direito dos tribunais e seus oráculos são os juízes, o juiz anglo-americano funciona como um arbitro, observa as regras e diz qual o direito aplicável.[39]

Não se pode entender que a utilização do precedente torna a decisão em um processo silogístico, apenas associativo. Cabe então distinguir aquilo que é a ideia essencial, o princípio base de uma decisão (ratio decidendi), e o que é secundário (obter dicta).[40] A aplicação do precedente exige essa apreciação melindrosa, segundo Edward Re[41]:

“É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o precedente, é quase universalmente tratado como apenas um ponto de partida. Diz­-se que o caso decidido estabelece um princípio, e ele é na verdade um principium, um começo, na verdadeira acepção etimológica da palavra. Um princípio é uma suposição que não põe obstáculo a maiores indagações. Como ponto de partida, o juiz no sistema do common law afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente considerado pertinente. Ele, depois, trata de aplicá-­lo moldando e adaptando aquele princípio de forma a alcançar a realidade da decisão do caso concreto que tem diante de si.”

O que vincula em um precedente é a sua ratio, seu principio, essa distinção é incerta, variando de juiz para juiz, mas o importante a destacar é que a justificação da aplicação de um precedente depende dela; não sendo assim um processo mecânico, mas um processo que exige grande perspicácia e habilidade argumentativa do juiz, similar a interpretação da lei no sistema romanístico. Algo que devemos atentar sobre a aplicação do precedente é com relação a sua correspondência fática, circunstancial, com o novo caso, em face de uma não correspondência um precedente pode sofrer o overrule, mesmo sendo vinculativo.

O precedente pode ser rejeitado também se aplicado “per incurian”, ou seja, que foi mal aplicado sem observância do procedimento, e foi identificado por uma corte subsequente. A lei é, superior ao precedente, dotada de força revogatória em relação às fontes jurisdicionais. É comum a posição de que a lei  cobre as lacunas do Common Law. As leis não expõem normas de grande latitude, são apenas artifícios em busca de uma completude de um sistema, que encontra no case law suas bases.[42]

Vê-se que mesmo se tratando da aplicação de leis, é comum o uso do case law, pois uma lei interpretada e aplicada por uma corte, se torna precedente desta, e outros casos o aplicarão, não a lei em si, mas o precedente advindo desta. Então, é comum um juiz anglo-americano usar simultaneamente o case law e o statute law.

O que se pode dizer também é que as leis quebram a rigidez do stare decisis, pois um caso no qual incide uma lei dá tanta liberdade ao juiz quanto ambíguos e vagos forem seus termos.

  1. Considerações

O conhecimento de outros sistemas de direito é fundamental para a formação de um jurista. Pode-se concluir, ao fim deste trabalho, que é impossível se referir a Common Law como uma categoria estática ou um grupo unificado, como já ressaltado anteriormente cada país criou seu Common Law, e dentre tais países observa-se grande divergência com relação à importância das fontes, ao caráter vinculativo dos precedentes, sem falar dos procedimentos.

É importante nesta parte frisar que perante o dinamismo do direito, tais sistemas (Civil Law e Common Law) sofrem paulatinamente uma aproximação em certos estados, como uma forma de aprimoramento, adequando-se a necessidades da sociedade, é nesse contexto que destaca-se no Civil Law brasileiro por exemplo a Súmula Vinculante como uma forma de solução ao problema da celeridade do judiciário brasileiro.

As súmulas vinculantes são um meio de sintetizar e estender uma decisão do STF referente a matérias constitucionais a outros casos similares. Dessa forma órgãos inferiores do judiciário são obrigados a acatar essa decisão sob pena de invalidez de seus atos. É similar ao sistema de “stare decisis”, onde uma decisão anterior gera um padrão para ser seguido em casos semelhantes. [43] Segundo Lenio Luiz Streck [44]:

“as súmulas são, desse modo, uma metacondição de programação e  reprogramação  de  sentido  do  sistema  jurídico.  Contudo,  são,  também,  condição  de fechamento do sistema. Trata-se de um paradoxo, na perspectiva luhmaniana, que é resolvido pela unidade que lhe dá a posição ímpar dos tribunais superiores ao editar Súmulas para poder auto-reproduzir o sistema.”

E essa convergência é também notável no direito Anglo-americano com o crescimento vertiginoso do statute law, comenta René David[45]:

“Para resolver os problemas do welfare-state, talvez os direitos românicos do continente europeu, familiarizados com a elaboração legislativa e doutrinal do direito, estejam mais preparados do que o direito inglês. Esboça-se, assim, um movimento de aproximação entre o direito inglês e o direito do continente europeu; este movimento é estimulados pelas necessidades do comércio internacional e favorecido por uma mais nítida consciência das afinidades que existem entre os países europeus ligados a certos valores da civilização ocidental: a entrada do Reino Unido na Comunidade Econômica Européia poderá dar um novo impulso a esta aproximação”.

Ora, por essa razão não se pode falar em um sistema de direito perfeito, mas todo sistema de direito, como vimos com o exemplo do Common Law, é uma criação histórica, um reflexo da própria sociedade e de suas aspirações; assim aconteceu por exemplo com o Civil Law exacerbado da revolução francesa, que buscava uma reação ao antigo regime apoiado numa divisão rígida de poderes, num juiz “bouche parlante de la loi” e num legislativo forte.

Podemos então afirmar a importância do conhecimento das formas de transformação da sociedade e como reflexo o próprio direito, até como meio de modificá-lo conscientemente. “o conhecimento dos direitos estrangeiros é elemento essencial da cultura jurídica e, numa dimensão maior, do conhecimento do mundo”[46]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sobre o autor
Vitor Galvão Fraga

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRAGA, Vitor Galvão. O sistema do Common Law. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3394, 16 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22816. Acesso em: 28 mar. 2024.

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