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Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes.

Convergências e divergências de teoria política

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16/11/2012 às 18:19
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Busca-se na atualidade um modelo de justiça por meio de ações de força que muito nos lembra os argumentos hobbesianos para a substituição do estado de natureza pelo estado social.

Resumo: Este artigo de teoria política faz uma análise da relação entre Platão, Aristóteles e Hobbes no que se refere aos temas da justiça e do direito. Ambos são temas relevantes para a teoria política, pois tratam de questões de ordem e segurança, aspectos que envolvem política em sentido amplo. Platão e Aristóteles representam a base da idéia de justiça no mundo ocidental, de maneira que podemos encontrar ali o direito como mecanismo social responsável por um tipo de ajustamento das relações sociais e políticas. Já Hobbes, contratualista importante da idade moderna, é considerado por alguns como o precursor do positivismo jurídico, embora o direito natural também seja grandiosamente evidente em sua teoria. Com isso, procuro pensar as aproximações e distanciamentos entre estes três autores clássicos, numa articulação teórica pretensamente possível.

Palavras-chave: teoria política, justiça, direito, Platão, Aristóteles, Hobbes.


“Enquanto as leis forem necessárias, os homens não estarão capacitados para a liberdade” (Pitágoras) 

“A distribuição eqüitativa e justa dos bens e seu emprego feliz em prol da humanidade só é possível mediante a abolição completa da propriedade; enquanto esta permanecer, uma carga angustiante pesará sempre na parte melhor e mais preponderante dos homens”

(Thomas Morus)

1. Introdução

A teoria política, enquanto ramo analítico de temas de ordem política, aborda autores que são intérpretes das mais variadas questões que os inquietam, dando-lhes voz e vida diante dos acontecimentos do mundo. Mas ressaltemos que a política, enquanto composta de visões interpretativas de diversos leitores da vida social não se prende apenas à leituras exatas do mundo físico. Ela permite imaginações, indagações e recriações diferentes, de acordo com a consciência e reflexão filosófica daquele que o pensa. Decorre daí a nossa proposta nesse trabalho, a qual consiste em assumir dois temas centrais, o da justiça e o do direito, entendendo-os como eixos de extrema relevância para a teoria política. São dois temas que se articulam, na medida em que o direito supostamente pretende dialogar com a aplicação do justo. A justiça, por sua vez, está no centro de um candente debate no mundo ocidental, um mundo que fala de justiça por quase todo o tempo, e que pretensamente a busca, ainda que não seja definido exatamente quais elementos o constitui.

Várias têm sido as chamadas teorias de justiça desenvolvidas por diversos pensadores ao longo da história. Na Antiguidade presenciamos relevantes contribuições como as de Platão e Aristóteles - trabalhados aqui; na Idade Média temos, no seu primeiro período, contribuições de Santo Agostinho, e no segundo período, São Tomás de Aquino; já na modernidade surgem expoentes contribuições, como as dos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, o primeiro analisado aqui; e mais recentemente podemos citar o destaque que a temática ganhou com John Ralws e Amartya Sen, ou ainda a justiça como reconhecimento (Axel Honneth) e de reconhecimento e redistribuição econômica (Nancy Fraser). Já o direito, tal como abordado nesse artigo, transcende o direito tradicional que temos como padrão, aquele solidificado em instituições de ordenação dos conflitos sociais. O direito pensado aqui encontra-se no pensamento filosófico-político de relevantes contribuições teóricas, alcançando toda uma teoria voltada para a busca de um tipo de justiça caracterizada segundo a teoria de cada pensador, num debate que de longe remonta aos séculos que antecedem a Cristo, podendo facilmente ser encontrado em autores clássicos da antiguidade ocidental como Platão e Aristóteles.

 Com isso, de modo a encarar essa temática, justiça e direito, seleciono três autores de inquestionável importância para a teoria política: Platão e Aristóteles – pertencentes à antiguidade clássica, e Thomas Hobbes – expoente dos primórdios daquilo que chamamos modernidade. Procuro discutir como justiça e direito aparecem em cada um deles, além de investigar as eventuais proximidades e distanciamentos entre os três autores. A escolha se dá menos pelo fortuito e mais pelas suas contribuições para o pensamento ocidental acerca desses temas. Platão e Aristóteles representam a base da idéia de justiça no mundo ocidental, de maneira que podemos encontrar ali o direito como mecanismo social responsável por um tipo específico de ajustamento das relações sociais e políticas. Cada um, no entanto, teve a sua peculiaridade.

Platão foi o filósofo político do mundo ideal, aquele que concebeu nos filósofos a sapiência do conhecimento da justiça para fins de promoção do bem-estar da pólis. Nele, a justiça, tema central do diálogo da República, viria do plano ideal, e como seria privilégio dos sábios conhecê-la, estes seriam aqueles que deveriam assumir o poder da cidade e distribuir as funções sociais conforme um padrão de justiça voltado para o que entendem como “bem comum”. Seriam estes os responsáveis por elaborar as leis, promovendo uma espécie de direito estranho ao olhar contemporâneo, principalmente porque o direito platônico se assemelhava e se confundia com a moral. De maneira diferente, Aristóteles percebia a justiça como algo presente na ordem natural das coisas, visto que a natureza tem uma finalidade, que é a justiça, mas que só se efetivaria na prática social. A realização da justiça seria confirmada ou não a partir de uma complexa distribuição de cargos e bens sociais. Aqui, também se procura uma distinção entre justiça e direito, o que Aristóteles conseguiu em seu livro Ética a Nicômacos. Mas não somente aí ele tratou da relação entre justiça e direito. Assim, é na Política que, pondo em prática sua filosofia da justiça, Aristóteles procurou descobrir quais poderiam ser as melhores constituições, adaptadas à essência do homem e às condições variáveis da vida social. E é na Retórica, um tratado de arte oratória, que Aristóteles dá um amplo espaço para a eloqüência judiciária, em que estuda os argumentos de que os advogados podem fazer uso. Com efeito, foi a partir da concepção de justiça em Platão e Aristóteles que boa parte do direito romano se ergueu, especialmente com a contribuição de Aristóteles e a idéia de uma justiça construída nas relações sociais que deveria estar de acordo com valores morais relacionados a tal justiça geral contida na natureza[1]. A parir daí, o direito romano também teve enorme influência na formação do direito europeu moderno, o chamado direito romano-germânico, cuja influência permanece até hoje[2].

Saindo agora desses dois autores da antiguidade, decidimos colocar no debate Thomas Hobbes, enquanto relevante filósofo político da modernidade nascente, e que pode nos dar importante contribuição no tratamento da justiça e do direito, principalmente ao trazer a sua posição moderna a respeito destes temas. Um dos contratualistas de maior expressão, junto de Locke e Rousseau, Hobbes pensou o estado de socieade como fruto de um contrato entre indivíduos antes situados numa concepção de estado de natureza. Nesta condição original, vigorava o caos e a “guerra de todos contra todos”, provocada por seres egoístas por natureza, onde o direito estava subjetivado em cada um, permitindo-lhes todas as satisfações pessoais, de modo que cada homem seria o lobo do outro homem. Na condição natual, não faria sentido se falar em  justiça, diz Hobbes, pois todos possuíam uma igualdade de direitos. Só em estado de socieadade, responsável pela garantia da segurança e da paz, é que surgem leis positivadas, e passa a se fazer sentido a incorporação de uma concepção formulada de justiça, marcada pelo cumprimento das regras do pacto. Esse pacto inclui um poder coercitivo que obriga a todos o seu cumprimento. A partir dele, cada indivíduo recebe o que é seu, algo parecido com a proposta de Aristóteles, contudo em Hobbes as leis sociais surgem junto da propriedade e de os outros direitos positivos.

Para este contratualista, uma vez que o poder tenha sido concedido ao soberano, permitindo-lhe exigir obediência por parte dos seus súditos, consideram-se injustos os atos que porventura violem a legitimidade do Estado, que terá o aval da punição conforme suas leis estatuídas. Nesse sentido, evidencia-se nesse autor uma importante contribuição ao universo jurídico, já que em sua doutrina as leis são responsáveis pelo convívio harmônico e pacífico entre os homens, na qual o conceito de justiça é fruto da racionalidade humana e é exposto de forma a garantir a legitimidade do arcabouço jurídico estabelecido com o contrato social. Por essa defesa do papel coercitivo do Estado-Leviatã, em que a soberania estaria centrada num poder unitário voltado para a segurança, Hobbes é considerado por alguns como o precursor do positivismo jurídico, embora o direito natural também seja grandiosamente evidente em sua teoria.


2.  A filosofia política de Platão. Justiça e Direito

Platão surge como uma reação aos sofistas, e, como uma reação à própria cidade grega da qual é fruto. Aos sofistas, criticava-os de venderem suas argumentações aos estudantes da época, acusando-os de venderem uma ciência não real, apenas aparente. Nisso, Platão pegou um gancho nas críticas de Sócrates aos sofistas segundo as quais esses últimos desprezariam algumas discussões feitas pelos filósofos e desrespeitariam a verdade e o amor pela sabedoria, na medida em que reduziam complexas argumentações reflexivas em discursos transformados em objetos de cobranças de taxas. Em relação à cidade, Platão a questiona em suas ideologias, alegando que esta teria matado a sabedoria do conhecimento no momento em que seus agentes condenaram seu maior mestre, Sócrates. Este, ao ir certa vez ao Oráculo, teria ouvido a representação da sapiência humana, o “conhece-te a ti mesmo”, que o teria levado a conclusão pessoal expressa na seguinte máxima: “tudo o que sei é que nada sei”. Aqui residia a maior virtude humana segundo Sócrates, que por isso, seria condenado à morte por envenenamento com cicuta: constituir a sabedoria a partir de uma eterna auto-reflexão questionadora, em que a verdade é vista como relativa e transitória (Villey, 2005). Platão, seu discípulo, confiava no mestre, e via nessa negação do saber definitivo a maior dentre todas as virtudes. A condenação de Sócrates, acusado de corromper a juventude, representaria na visão de Platão, portanto, a tradução de uma cidade corrompida pelos seus governantes e, portanto, pela política vigente. Então Platão indaga como pode o filósofo, o grande conhecedor das virtudes existentes, viver nessa cidade corrompida? A resposta passa pelo caminho que leva a entrada deste filósofo na governança dessa cidade. A concepção de justiça para Platão começa exatamente na crítica que ele formula em relação à espécie de “justiça” (leia-se injustiça) vigente na polis, haja vista suas regras terem condenado o maior de todos os mestres. A missão do homem político ideal, nesse sentido, seria a descoberta do justo, que estaria associado à idéia do bem para a polis grega, e acessoriamente também das leis ideais.

Começa aí a trajetória da construção de uma teoria da justiça em Platão. A justiça seria a virtude que atribui a cada um a sua parte, mas esse senso de justiça seria exercido tanto no interior do homem como no seio da cidade-estado, onde os homens se relacionam. Ou seja, o justo se manifestaria em dois planos. No interior do indivíduo, estaria atrelada a submissão dos instintos à razão; e na polis, estaria adequada à ordenação de cada um em sua melhor função, ou seja, marcada pela sistematização entre as classes laboriosas, como os artesãos (dedicados à produção de bens materiais), os guerreiros (soldados encarregados de defender a cidade), e os filósofos (guardiões incumbidos de zelar pela observância das leis e promotores principais da justiça idealizada). Dentre esses últimos, deveria ser escolhido o melhor indivíduo para governar a cidade, o rei-filósofo. Com isso, a cidade ideal se apoiaria numa divisão racional do trabalho, em que cada um exerceria uma função específica conforme sua competência. Como resultado dessa repartição de tarefas, a desigualdade entre os homens está presente em sua teoria da justiça, para a qual a igualdade não era sua preocupação. O importante para Platão seria a construção do bem comum a partir de uma repartição adequada de funções, conforme a qualidade de cada tipo de homem e segundo a dotação de sua natureza. Nisto estaria a justiça da cidade: que cada um fizesse a sua parte visando o benefício geral da República (Piettre, 1989). Será algo diferente de Aristóteles, que pensará a justiça como parelha a uma suposta igualdade proporcional; mas próximo de Hobbes, que conceberá a justiça independentemente da igualdade entre os homens, tendo em vista que a importância da justiça estará no respeito ao pacto social.

2.1. O direito como resultado da aplicação da justiça.

É resultado dessa concepção de justiça platônica as fontes a partir das quais o direito poderá ser pensado nesse autor. Da sua teoria da justiça tem-se o desenvolvimento de uma concepção de direito enquanto reguladora das relações sociais, até porque aqui o conhecimento do justo se aproxima muito da concepção de direito. Em primeiro lugar, as fontes do direito concernem ao conhecimento do justo, logo o papel do jurista não consiste apenas em aplicar ou estudar as leis existentes, escritas pelo Estado, mas extrapola essas funções. Essa opinião é fruto da sua rejeição em relação a definição do positivismo jurídico segundo o qual o direito seria o conjunto das regras positivas estabelecidas pelo Estado. Na sua definição, a tarefa do direito seria alcançar o bem, que aqui se coaduna com a interpretação de justiça. Ao mesmo tempo, o direito não teria a finalidade de levar a ordem e a segurança, tal como em Hobbes, numa solução que nos remeteria ao positivismo jurídico, mas de ajudar na promoção do bem comum. Eis uma primeira diferença considerável que podemos detectar na contraposição entre Platão e Hobbes.

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Está no livro VII da República (1996) a famosa alegoria da caverna onde Platão descreve metaforicamente o percurso do grande rei-filósofo ao encontro do conhecimento da justiça ideal. Na história contada, os prisioneiros da caverna vêem apenas as sombras das coisas. É por meio de uma ascensão – que representa a dialética platônica – que um deles escapa da caverna e consegue perceber as verdadeiras coisas e o sol que as ilumina, aqui metaforizada pelas idéias de bem, justiça, verdade – ou seja, as grandes virtudes. Num primeiro momento, a forte luz lhe causa forte impacto, mas logo ele se maravilha com tudo o que pode ver para além das sombras vivenciadas nos tempos da caverna. O ex-prisioneiro, após a formidável experiência, não aceita mais retornar à caverna e sua intenção passa a ser libertar todos os prisioneiros remanescentes na caverna. Isso significa que se trata de escapar do mundo das aparências sensíveis percebidas pelo corpo, esse entrave ao verdadeiro conhecimento, para elevar-se ao mundo das idéias inteligíveis. Eis o método que se impõe ao homem político para a descoberta do justo, e a libertação da polis de todos os seus vícios[3].

2.2. A utopia do direito platônico.

Platão define que a tarefa do jurista é a de buscar o justo, algo impossível de ser descoberto por qualquer sujeito. Somente aqueles capacitados a conhecer o mundo das Idéias e do inteligível seriam capazes de conhecê-lo. Não obstante, o processo de descoberta das leis justas se mostra bastante complexo em sua obra, pois seria ao longo de uma longa ascese purificadora, que, apaixonado pelo mundo das idéias, o filósofo descobriria as leis. Essa ascese purificadora, que tem a ver com a lógica da ascese da caverna, é mais bem explicada por Platão através da teoria da “reminiscência”, elucidada de forma metafórica a partir do mito de Er[4], presente na obra A República. Este mito nos indica que conhecer as coisas é fruto de uma habitação que se dá em outro tempo e lugar, também chamado mundo das almas. Por isso consiste em recordar a verdade que já existe em nós, ou seja, é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma.

Por isso, Platão justifica o fato de Sócrates fazer perguntas sobre as coisas, visto que através delas as pessoas poderiam lembrar-se da verdade e do uso da razão. Se não nascêssemos com a razão e com a verdade, indagava o filósofo, não saberíamos que temos uma idéia verdadeira a respeito das coisas, tampouco a buscaríamos através da reflexão. Na República, Platão falou sobre os defeitos de qualquer legislação escrita, já que seria o rei-filósofo, ao longo de uma longa ascensão dialética, o sujeito capaz de definir as melhores leis para a cidade conforme o ideal de justiça. O ordenamento jurídico platônico deveria corresponder a leis não positivadas, cuja aplicação dependesse de pessoas conhecedoras de sua sapiência, como os filósofos, assim como o direito deveria emanar deles. Mas como isso seria inviável na prática, Platão acabou posteriormente a reconhecer a necessidade da obediência das leis feitas pelos filósofos, de certa forma leis positivadas, pois não se poderia garantir que estes estariam sempre presentes na governança da cidade (Villey, op.cit.).


3. Aristóteles e sua ampla teoria da justiça. A aplicação do direito

Em Platão, vimos o direito – resultado da busca por um ideal de justiça – como uma noção muito ampla; era um direito não diferenciado da moral, por exemplo. Já em Aristóteles percebe-se uma melhor separação dos conceitos de justiça, direito e moral. Platão defendia o inatismo, na crença de que nascemos com princípios racionais e idéias que são inatas aos homens. A origem das idéias, segundo Platão, é dada por dois mundos, que são o mundo inteligível – referente ao  mundo em que nós, antes de nascer, passamos para ter as idéias assimiladas em nossas mentes; e o mundo sensível – referindo-se a realidade dos homens em suas experiências reais. Já Aristóteles era um filosofo que defendia o empirismo, concebendo que as idéias são adquiridas  através da experiência, embora admitisse que na ordem da natureza houvesse a grande virtude do que chama de justiça geral.

3.1. Justiça em Aristóteles. Justiça geral. Justiça particular. Justiça distributiva e Justiça comutativa.

Em seus escritos, várias são as contribuições morais e política de Aristóteles. Mas é em Ética a Nicômaco (1984) que o autor procurou formular uma definição universal de justiça, a que ele chama de dikaiosuné. Essa justiça universal, por sua vez, pode ser separada duas definições específicas: justiça geral e justiça particular. A primeira é a base para o seu pensamento a respeito dessa concepção, pois ali se designa como justo toda a conduta que parece conforme a lei moral. Nesse sentido, a justiça pensada de um modo amplo, presente na ordem natural das coisas, inclui todas as virtudes, sendo equiparada a uma virtude moral universal. Conforme nos diz Villey (op.cit.), o sentido geral da justiça corresponde à condição que os gregos chamavam dikaios, expressão que significa “homem justo”, e que expressava aquela pessoa que possuía uma superioridade moral em relação à maioria das outras. Assim, Aristóteles (op.cit.) observa que a justiça é a disposição da alma graças à qual elas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo, sendo a forma mais elevada de excelência moral. Como essa concepção larga de justiça atua especialmente no campo abstrato das virtudes morais, Aristóteles observou que esse sentido geral de justiça não tinha relação direta com o direito, já que este último estaria vinculado à aplicação prática da justiça, a tal justiça particular. Isso porque não cabia aos juízes, por exemplo, conduzir os cidadãos à perfeição moral, mas sim resolver os problemas e os conflitos referentes aos bens e as cargas presentes na vida social. Como resultado específico dessa abrangente justiça geral, Aristóteles laça mão do conceito de justiça particular, referindo-se não mais ao dikaios (o homem justo), mas, agora, ao to dikaion (a coisa justa). A justiça particular consiste numa parte daquela justiça geral vinculadas às ações individuais presentes nas relações sociais. Dessa maneira, pode-se dizer que a justiça geral estaria presente no indivíduo caso ele tivesse a moral de justiça dentro de si, enquanto algo subjetivo; ao contrário, a justiça particular se manifestaria a partir das ações reais do indivíduo, ou seja, enquanto na aplicação da justiça em casos objetivos.

É nessa parte que aparece a construção do direito, haja vista a constatação de que analisar a justiça particular, enquanto a aplicação objetiva do justo, corresponderia a definir a arte do direito. Além disso, avança Aristóteles, a virtude das ações particulares está no ato de não se ficar nem com mais nem com menos do que lhe corresponde, de maneira que a sociedade assista a uma bem realizada repartição dos bens e das cargas, conforme a lógica do meio-termo. No funcionamento da distribuição dos elementos sociais, Aristóteles lança mão de dois conceitos de aplicação prática da justiça particular: a justiça distributiva e a justiça comutativa. A primeira delas, a justiça distributiva, está relacionada ao ofício primeiro da promoção da justiça numa comunidade, que consiste na procedência da distribuição dos bens, das honras e dos cargos públicos entre os homens da pólis. Nessa distribuição, dever-se-ia observar a devida finalidade da repartição para a conjuntura social em que se encontra, e a relação dos sujeitos com essa finalidade, ou seja, se os sujeitos se utilizarão dessas atribuições de forma a beneficiar o coletivo. Na justiça distributiva, efetuada no cumprimento da justiça particular, deve-se levar em conta o princípio da proporcionalidade. A justiça na vida real, a tal justiça particular, é para Aristóteles, portanto, uma das espécies do gênero proporcional; ao contrário, a injustiça é exatamente aquilo que viola o princípio da proporcionalidade. No caso do pagamento de um imposto, por exemplo, seria uma ação justa o pagamento exato da cota-parte do indivíduo, nem mais, nem menos. Como nos diz o autor:

“O justo envolve também quatro elementos no mínimo, e a razão entre um par de elementos é igual à razão existente entre o outro par, pois há uma distinção equivalente entre as pessoas e as coisas [...]. O princípio da justiça distributiva, portanto, é a conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta acepção é o meio termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o proporcional” (Aristóteles, 1984, p. 95).

Contudo, poderia perguntar o leitor: Mas proporcionalidade é um conceito relativo. Logo, o que seria proporcional na concepção aristotélica? Os critérios por ele elencados para a distribuição, cujo objetivo consiste em se alcançar uma harmonia social, são: 1) A condição dos sujeitos, fator que será importante pelo fato de uma coletividade possuir diversas classes de sujeitos. Existem o pai, o filho, o patrão, o empregado, enfim, diversas classes de sujeitos nas relações sociais, de modo que o primeiro critério na distribuição seria dar a cada um conforme a sua importância para a coletividade; 2) A capacidade das pessoas em relação aos encargos, fator que se refere à distribuição conforme a capacidade do indivíduo em relação ao todo social. Seria o caso, por exemplo, de quem ganha mais pagar mais impostos, e que ganha menos pagar menos tributos; 3) Aportação de bens à coletividade, critério que procura atribuir mais benefícios a quem  contribui mais à sociedade. Quem trabalha mais, por exemplo, deveria receber um salário maior, haja vista sua maior contribuição com o grupo social; 4) A necessidade, devendo se considerar a necessidade dos sujeitos como um dos critérios palpáveis na distribuição social. Significa dar mais a quem mais necessita. Contudo, ressalta Aristóteles que esse critério só é justo quando está de acordo com as finalidades da coletividade e combina com os outros critérios, pois se não poderá ser confundido com misericórdia ou solidariedade, e não como propósito de justiça.

Passando agora para a justiça comutativa, esta outra forma de justiça particular refere-se ao zelo pela retidão das trocas, ou seja, pela igualdade aritmética em matéria de intercâmbio de bens. Partindo do pressuposto de que os bens, as honrarias e os cargos públicos foram previamente distribuídos de maneira proporcional, a função do juiz, por exemplo, seria calcular uma restituição igual ao dano que o indivíduo sofreu, de modo a readequar as posições dentro da ordem redistributiva. Dificilmente se garantirá a estabilidade em qualquer ordenamento social, reconhece Aristóteles, ou seja, os conflitos acabarão existindo. A pólis é formada por homens livres, com interesses distintos surgidos nas relações sociais, disputando entre si honrarias e bens, daí a necessidade de haver uma instituição que resolva os impasses, tal como se apresenta o direito positivo, com suas leis e agentes.

3.2. A construção do direito em Aristóteles. Direito natural e direito positivo. O princípio da Eqüidade.

Seu conceito de direito emerge da concepção de justiça conforme a distribuição proporcional dos elementos sociais. O direito, então, começa como algo exterior ao sujeito, como uma determinada igualdade (através da proporcionalidade) existente nas coisas, e que se extrai da observação da natureza. Visto que Aristóteles concebe o mundo como uma ordem harmônica no sentido da prevalência da justiça geral, o mundo é entendido a partir de sua constituição voltada para causas finais, e as relações humanas deveriam caminhar para a manutenção da justiça geral, essa espécie de moralidade que garante a correta ordenação das relações entre os homens e a natureza. A ciência do direito, por sua vez, concerne ao resultado exterior dessa igualdade das coisas, situando-se, portanto, na relação entre os cidadãos. Em Aristóteles, o direito ganha autonomia, ficando responsável pela retidão da distribuição dos elementos sociais e devendo solucionar os conflitos decorrentes da incorreção distributiva. Na visão aristotélica, caberia ao direito a atribuição de uma sanção contra atos falhos dos indivíduos. Seria o exemplo do direito penal, cuja função não consiste em evitar o homicídio, o roubo ou qualquer outro tipo de crime – visto que essas proibições competem à moral – mas apenar quem os comete, dando-lhe a pena devida e proporcional ao seu crime. Seria uma forma de readequação da ordem geral, portanto.

Nesse sentido, em Aristóteles, percebe-se a ausência de um direito subjetivo correspondente a direitos individuais absolutos e exclusivos de cada pessoa. É algo que o difere substancialmente de Hobbes, onde o direito é formado com o pacto social, resultado da subjetividade de cada indivíduo. O direito em Aristóteles é encontrado somente na relação entre os agentes sociais, haja vista o homem ser concebido naturalmente como um animal social (Wolf, 1999). Em Aristóteles, presencia-se um direito positivado em prol da coisa justa, estabelecida socialmente pelo convênio humano, em consonância com o que se percebe na natureza. Portanto o direito é exterior a eles enquanto indivíduos subjetivos. É o resultado de uma repartição das relações sociais, mas que é construído na prática devido ao ordenamento natural em que os homens se colocam dentro da natureza. Sua instituição será o instrumento responsável por colocar as coisas em sua devida ordem, haja vista que a alteridade – fruto das relações sociais e da impossibilidade na procedência de uma divisão estritamente igualitária – gera conflitos e diferenças.

Emerge dessas considerações a necessidade de se distinguir direito natural e direito positivo em Aristóteles. Ele nos diz que a solução jurídica de um caso concreto deve, normalmente, ser obtida através do recurso conjunto a estas duas fontes de direito, as quais se complementam. Significa, por um lado, a observação da natureza e, por outro, a precisa determinação do legislador e do juiz. Com isso, não há, na concepção aristotélica, oposição entre o justo natural e as leis escritas pelo Estado. Ao contrário, as leis do Estado exprimem e completam o justo natural[5]. Segundo essa lógica, o direito seria, por essência, algo móvel, e deveria exatamente ser extraído a partir da observação e da experiência. Na instituição do direito, Aristóteles defende a presença de leis escritas, entendendo-as como fontes seguras da aplicação do justo por parte dos juízes, reduzindo suas arbitrariedades. Afinal, diz ser prudente desconfiar da imparcialidade dos juízes, pois seus julgamentos correm o risco de serem deformados por sentimentos humanos como a simpatia ou o medo. Daí o fundamento da lei, a qual o juiz deve se guiar. Mas aqui se deve considerar uma questão importante: Aristóteles ressalta que não se deve reconhecer o valor das leis positivas senão as supondo estabelecidas no quadro do justo natural. Ou seja, se os legisladores forem despreocupados com o interesse público, maldosos ou ignorantes e as leis danosas, não lhes devemos obedecer e o juiz deverá ter o senso de libertar-se dessas leis absurdas e nefastas. Portanto, embora sejam relevantes, as leis não seriam absolutamente soberanas, algo que distingue a sua posição daquela que observaremos em Hobbes, para quem o direito positivo instituído pelo Estado é a representação do pacto social, e violá-lo significa ato de injustiça, passível de sansão.

É a partir daqui que aparece a concepção aristotélica de eqüidade, usada no sentido da boa aplicação da lei, quer em face da omissão do texto positivo, quer para suprir sua imperfeição, quer ainda, para abrandar-lhe o rigor. Desse modo, a concepção da eqüidade passa a ser a justiça aplicada no caso particular, ou seja, a justiça em termos concretos e individualizada. O princípio da eqüidade serve, segundo diz, para evitar a aplicação mecânica da lei, mas é algo diferente de uma aplicação arbitrária do juiz. Na eqüidade, o que está supostamente em questão é o tratamento igualitário e justo perante a lei, e não a aplicação da lei conforme convicções pessoais do aplicador (Aristóteles, 1984). Por isso se autoriza ao juiz tomar liberdades em relação à lei, adaptando-as às circunstâncias, levando em conta as condições de cada situação particular. Seria o caso, por exemplo, de se levar em conta, em matéria penal, a idade do acusado, sua situação social, seu passado, suas intenções, etc. Dessa maneira, segundo Aristóteles, a eqüidade poderia ser assemelhada àquilo que a razão humana aceita sem repugnância, o que equivaleria à justiça iluminada pela razão. Aproxima-se, nesse sentido, com o objetivo central do direito, que é a promoção da justiça, atuando segundo as peculiaridades de cada caso, considerando-se as diferenças específicas. A eqüidade se encarrega de levar a justiça ao particular. No plano teórico, Aristóteles procurou pensar o uso do princípio da eqüidade de maneira a tornar a aplicação do direito algo mais justo e mais próximo da justiça geral. Contudo, devemos reconhecer o verniz de utopia na aplicação prática dessa intenção, uma vez que a proximidade do senso de justiça por parte do aplicador e a sua arbitrariedade constitui-se, na prática, em uma linha extremamente tênue.

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Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes.: Convergências e divergências de teoria política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3425, 16 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23037. Acesso em: 24 abr. 2024.

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