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O indivíduo como sujeito de direito internacional penal: o caso Omar Al-Bashir

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22/04/2013 às 17:34
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Analisa-se o indivíduo como sujeito do Direito Internacional Penal, com base no caso de Omar Al-Bashir. Como pode o indivíduo ser vinculado e responsabilizado com base nesse ramo do direito?

Resumo: O debate sobre a subjetividade jurídica do indivíduo no âmbito do Direito Internacional é relevante especialmente quando se trata de questões de Direitos Humanos e de Direito Internacional Penal. Com foco neste segundo ramo do direito, este trabalho objetiva analisar a questão do indivíduo como sujeito de Direito Internacional Penal, utilizando-se, como paradigma, o caso de Omar Al-Bashir. Para isto, na primeira parte discorreu-se sobre os sujeitos de Direito Internacional e apresentou-se o debate sobre a subjetividade internacional do indivíduo. No segundo capítulo foi apresentado um histórico da justiça internacional penal, bem como alguns aspectos destacados sobre o Tribunal Penal Internacional. Por fim, no terceiro capítulo é analisada a situação do indivíduo no âmbito do Direito Internacional Penal, com base no caso Al-Bashir, presidente do Sudão, país não-signatário do Estatuto de Roma. Para isto, fez-se a contextualização da situação do Sudão e dos crimes imputados a Al-Bashir e depois apresentaram-se as reflexões sobre o tema: a natureza de jus cogens dos crimes internacionais e a possibilidade de aplicação do princípio da jurisdição universal; a natureza das normas do Estatuto de Roma, se seriam substantivas ou jurisdicionais; e, a diferenciação da responsabilidade coletiva da responsabilidade individual no âmbito do Direito Internacional. Analisou-se então o caso concreto e verificou-se que a vinculação de Al-Bashir ao Direito Internacional Penal se dá devido à natureza de jus cogens das normas relativas aos crimes internacionais e ele imputados, bem como que a legitimação da jurisdição do TPI sobre ele ocorre por conta dos poderes outorgados pela Carta da ONU ao Conselho de Segurança. Ainda, constatou-se que o Estatuto deve ser entendido como norma jurisdicional para que possa ser aplicado ao caso do Sudão sem ofensa ao princípio nullum crimen sine lege e que a possibilidade da responsabilização individual, inclusive de Chefes de Estado, pela justiça internacional, demonstra-se uma evolução nesse âmbito jurídico. Concluiu-se, finalmente, que o indivíduo, por mais que não esteja diretamente vinculado a um tratado internacional, está vinculado a esta esfera jurídica, podendo ser punido, qualquer que seja a sua posição, individualmente, pelas violações que praticar.

Palavras-chave: Direito Internacional Penal; Sujeitos de Direito; Indivíduo; Tribunal Penal Internacional; Omar Al-Bashir.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL. 1.1 A SUBJETIVIDADE JURÍDICA. 1.2 OS SUJEITOS TRADICIONAIS DO DIREITO INTERNACIONAL. 1.2.1 O Estado. 1.2.2 As Organizações Internacionais. 1.3 OUTROS SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL. 1.4 O INDIVÍDUO. 2 CONSTRUÇÃO DA JUSTIÇA INTERNACIONAL PENAL. 2.1 PRIMEIRAS TENTATIVAS E A II GUERRA MUNDIAL. 2.1.1 O Tribunal Internacional Militar de Nuremberg. 2.1.2 O Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente. 2.2 OS TRIBUNAIS AD HOC PARA EX-IUGOSLÁVIA E RUANDA. 2.2.1 Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia. 2.2.2 Tribunal Penal Internacional para Ruanda. 2.3 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. 2.3.1 Aspectos destacados do Tribunal Penal Internacional. 2.3.3 Casos em andamento perante o Tribunal Penal Internacional. 3 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL: O CASO OMAR AL-BASHIR. 3.1 A SITUAÇÃO DO SUDÃO. 3.1.2 As investigações e o processo contra Omar Al-Bashir. 3.2 O INDIVÍDUO COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL. 3.2.1 Jus cogens e jurisdição universal. 3.2.2 Estatuto de Roma: norma substantiva ou jurisdicional?. 3.2.3 Responsabilidade Coletiva x Responsabilidade Individual. 3.3 OMAR AL-BASHIR E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O Direito Internacional[1] é também chamado de Direito das Gentes. Esta terminologia vem da expressão latina Jus Gentium, que quer dizer ‘direito dos povos’ e se referia as normas aplicadas aos estrangeiros em Roma. Já a primeira expressão, mais moderna, terminologicamente que dizer ‘direito entre nações’. Atualmente ambas são usadas como sinônimos, e este ramo do direito foi consagrados como sendo aquele que rege as relações entre os Estados. Muito embora até pouco tempo o Estado tenha sido considerado o único sujeito de Direito Internacional por grande parte da doutrina, sempre existiram estudiosos que advogam que a natureza do Jus Gentium não é a de reger as relações entre os Estados, mas sim dos indivíduos, como qualquer outro Direito, pois são eles que formam as sociedades e os Estados.[2]

A posição do indivíduo nas relações jurídicas internacionais é um debate antigo. Todavia, com o fortalecimento dos sistemas de proteção dos direitos humanos e com a instalação de tribunais internacionais penais essa questão ganhou relevo. Não se pode mais negar que, atualmente, os indivíduos têm acesso às instâncias jurídicas internacionais, direta ou indiretamente, e podem demandar e serem demandados perante essas cortes. Por outro lado, muitas dúvidas ainda surgem sobre a relação dos indivíduos com o Direito Internacional, especialmente no âmbito do Direito Internacional Penal.

As relações entre os indivíduos e o Direito Internacional se dão em dois domínios: dos direito humanos, como sujeito ativo, e do Direito Internacional Penal, como sujeito passivo. Como as controvérsias em torno de ambos os campos são extensas, neste trabalho optou-se por enfocar o tema sob a ótica do Direito Internacional Penal. Nesse sentido, objetiva-se analisar a questão do indivíduo como sujeito de Direito Internacional Penal, utilizando-se, como paradigma, o caso de Omar Al-Bashir, presidente do Sudão, que está sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional. A questão a ser respondida por este trabalho é: com base no caso Omar Al-Bashir, como o indivíduo pode ser vinculado e responsabilizado criminalmente pelo Direito Internacional Penal? Para respondê-la, efetuou-se um trabalho de pesquisa bibliográfica e análise documental e escolheu-se o indutivo como método de abordagem para o desenvolvimento da pesquisa, tendo-se optado por dividir o trabalho em três capítulos.

No primeiro capítulo são apresentados os elementos e características dos sujeitos de Direito Internacional para que, na terceira parte do trabalho possa ser feita análise com base nos elementos apresentados. Para isso, primeiramente é feita uma breve explicação do que a doutrina entende como sujeito de direito e sujeito de Direito Internacional. Em seguida são apresentados os principais sujeitos do Direito Internacional, quais sejam os Estados e as Organizações Internacionais e explicadas as suas principais características de forma a poder identificá-los como sujeitos de Direito Internacional. Na sequência são elencados alguns outros sujeitos e dada uma breve explicação sobre as razões de serem ou não considerados como tais pelos estudiosos. Encerrando o capítulo, são apresentados os debates a respeito da subjetividade jurídica do indivíduo no âmbito do Direito Internacional e a diferenciação da sua posição no campo dos direitos humanos e do Direito Internacional Penal.

Por sua vez, no capítulo dois, é apresentado um histórico da justiça internacional penal, de forma a permitir uma maior compreensão do ramo do direito escolhido para este estudo e a posição do indivíduo neste âmbito. Deste modo, em um primeiro momento são descritas as primeiras tentativas de instituição de uma justiça internacional penal e a concretização desta após a Segunda Guerra Mundial, com a instalação e funcionamento do Tribunal Internacional Militar de Nuremberg e, nos mesmos moldes, um pouco depois, do Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente. Depois disso, é tratado o renascimento da justiça internacional penal, já na década de 1990, por meio de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que instituíram os Tribunais Penais Internacionais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para Ruanda. Finalmente é descrito como foi o processo de planejamento e instituição do Tribunal Penal Internacional permanente, e apresentado os principais aspectos do Estatuto de Roma, que é o tratado constitutivo desta corte.

Na última parte é apresentado um breve histórico da situação no Sudão para contextualizar os fatos pelos quais Omar Al-Bashir está sendo acusado, bem como um resumo destes e do andamento das investigações. Enfim, na sequência é feita a análise da posição do indivíduo perante a justiça internacional penal, utilizando-se como paradigma o caso do Presidente do Sudão e enfocando em três problemáticas principais: a natureza de jus cogens dos crimes internacionais e o debate sobre a jurisdição universal sobre eles; a vinculação do indivíduo ao Estatuto de Roma, especialmente em casos que, como o escolhido, o Estado onde ocorrem os crimes, bem como da nacionalidade dos acusados e das vítimas, não aceitou a jurisdição do Tribunal; e, a diferenciação da responsabilidade do Estado e dos indivíduos, mesmo quando estes, como Al-Bashir, são autoridades – no caso, chefe de Estado – que apresentam como justificativa para a sua conduta a defesa da soberania e das instituições do seu país.

O tema que aqui se propõe estudar é ainda pouco abordado na maior parte da doutrina, especialmente brasileira, e demonstra potencial para aprofundamento em pesquisas posteriores. Ademais, o Direito Internacional Penal ganhou importância e espaço na academia nos últimos anos, especialmente após a instalação do Tribunal Penal Internacional, que seu deu apenas no ano de 2002. Assim sendo, vários debates têm surgido que não apresentam ainda respostas definitivas ou opiniões majoritárias na doutrina, nem mesmo consolidação de posição por meio de uma jurisprudência internacional, tendo em visto o curto período que o Tribunal está funcionando. Desta forma, este trabalho visa contribuir com as pesquisas da área, bem como, juntamente com outros trabalhos já feitos, servir de base para trabalhos futuros sobre esta e outra temáticas relacionadas tanto ao indivíduo no âmbito do direito internacional, quanto à justiça internacional penal.


1 SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL

No Direito Internacional não existe um documento que diga quem é, ou quem pode ser, considerado sujeito de Direito Internacional. Não há tampouco unanimidade entre os estudiosos sobre o tema. Todavia, existe uma convergência nas últimas décadas no sentido do reconhecimento da personalidade jurídica de outros sujeitos que não apenas os Estados e as Organizações Internacionais, sobre os quais já se consolidou tal entendimento pela doutrina tradicional.

Existe certo consenso na doutrina de que um sujeito de direito é aquele que é titular de direitos e pode contrair obrigações. No âmbito internacional, todavia, ainda existem autores que afirmam que a capacidade postulatória também é uma característica essencial para a caracterização dos sujeitos de Direito. Atualmente é inegável que os Estados e as Organizações Internacionais são os entes que possuem estes requisitos, os primeiros de forma mais ampla e completa ainda que os segundos. Todavia, existem coletividades que, com algumas peculiaridades, também partilham desse status no âmbito do Direito Internacional, muito embora suas capacidades estejam restringidas pelo próprio Direito Internacional, como as comunidades beligerantes ou a Santa Sé.

Entre estes sujeitos com capacidades restritas, encontra-se o indivíduo, o qual, para alguns, sequer pode ser considerado sujeito de Direito Internacional. Atualmente diversas normas internacionais visam à proteção do indivíduo, bem como criam a obrigação de que se abstenha de determinadas condutas. No primeiro caso incluem-se especialmente as normas de Direitos Humanos, sendo que, quando violadas, pode o particular apresentar reclamação diretamente em algumas instâncias judiciais internacionais. Já no segundo caso se incluem as normas dos chamados crimes internacionais, os quais, atualmente, podem ser investigados e julgados pela justiça internacional penal.

Desta forma, este capítulo visa apresentar os elementos e características dos sujeitos de Direito Internacional. Para isso, primeiramente são apresentados os conceitos de sujeito de direito e sujeito de direito internacional. Em seguida, discorre-se brevemente sobre os sujeitos amplamente reconhecidos do Direito Internacional – o Estado e as Organizações Internacionais – e, logo após, sobre os que ainda buscam este reconhecimento. Ao final, é apresentado o debate que gira em torno da subjetividade internacional do indivíduo.

1.1 A SUBJETIVIDADE JURÍDICA

Para a formação de uma relação jurídica, é necessário, em primeiro lugar, que existam os sujeitos, ou seja, os titulares de direito, já que não se podem admitir direitos sem titulares (MONTEIRO, 2001). Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 69) “são as relações sociais, de pessoa a pessoa, física ou jurídica, que produzem efeitos no âmbito do direito”. Em outras palavras, o direito só existe se houver alguém que o possa exercê-lo ou reclamá-lo, bem como estar submetido a ele.

 Personalidade é a característica dos sujeitos, também chamados de pessoas, de direito. Conforme Maria Helena Diniz (2006, p. 118) a idéia de personalidade “exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”. Logo, sujeitos de direito são as pessoas (físicas ou jurídicas) que têm capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações.

No âmbito do direito internacional, segundo Celso Albuquerque de Mello (2004, p. 345), “pessoas internacionais são, [...], ‘os destinatários das normas jurídicas internacionais’”[3]. Já Hildebrando Accioly e Geraldo Silva (2000, p. 64) preferem utilizar a definição dada pela CIJ, ou seja, é sujeito de Direito Internacional toda organização que “tem capacidade de ser titular de direitos e deveres internacionais e que tem a capacidade de fazer prevalecer os seus direitos através de reclamação internacional”.

Pode ser verificada uma diferença sutil, mas significativa nos conceitos de sujeito no âmbito do direito internacional, especialmente no que concerne ao último, apresentado por Hildebrando Accioly e Geraldo Silva, com base em manifestação da CIJ. De acordo com estes, para ser sujeito de Direito Internacional, deve-se, além de ser titular de direitos e deveres, ser capaz de reclamá-los. Assim, conforme este entendimento, a subjetividade jurídica está condicionada a capacidade postulatória internacional.

Valério Mazzuoli (2011, p. 421) destaca que:

O que não se pode confundir é a personalidade jurídica de um ente com a capacidade que lhe assiste de ter (capacidade de gozo) ou de exercer direitos (capacidade de exercício). [...] dizer que os sujeitos de Direito Internacional têm diferentes graus de capacidade, não significa absolutamente dizer que têm eles personalidade jurídica que varia exatamente nesses graus. A capacidade de ter ou de exercer direitos na órbita do direito das gentes está ligada à responsabilidade do ente em causa, e não à sua personalidade.

Em suma, para alguns, a personalidade internacional está intrinsecamente relacionada com a capacidade, enquanto para outros a personalidade e a capacidade não se confundem. No primeiro caso, somente teria capacidade de adquirir direitos e contrair obrigações quem também tem capacidade de vindicá-los, o que, no plano internacional, é uma característica quase que exclusiva dos Estados e das Organizações Internacionais, mas que vem, como será visto mais adiante, sendo reconhecida aos indivíduos também. Por outro lado, para os que defendem que a personalidade não se confunde com a capacidade, o simples fato de haver normas direcionadas a um ente, já o dotariam de personalidade, não sendo necessário que eles tenham a capacidade de vindicá-los para que sejam considerados sujeitos de direito. 

1.2 OS SUJEITOS TRADICIONAIS DO DIREITO INTERNACIONAL

1.2.1 O Estado

O Estado é o sujeito de Direito Internacional por excelência. O Direito Internacional serve, segundo entendimento predominante, para regular as relações entre as sociedades politicamente organizadas que, a partir do século XVII, passaram a se configurar como o chamado Estado-nação moderno. É a ele que as normas de direito internacional são direcionadas e vinculam, e é ele que tem o poder de celebrar tratados para criar novas, ou modificar as normas já existentes. É por sua vontade que nascem as organizações internacionais. Por isso é dito que o Estado tem a personalidade jurídica originária no plano internacional (REZEK, 2010).

O Estado, seja visto como um grande ‘Leviatã’[4], seja visto como o resultado de um ‘Contrato Social’[5], é, afinal, a forma pela qual a maior parte das sociedades modernas se organiza. O Estado-nação moderno nasceu em 1648, com a chamada Paz de Vestfália e, a partir daí, foi se consolidando como o modelo padrão de arranjo das coletividades por todo o mundo.

Sinteticamente, o que a aconteceu de tão paradigmático no referido ano, foi o reconhecimento formal da soberania estatal. Em outras palavras, cada Estado poderia impor as suas próprias regras dentro do seu território sem a ingerência de outros Estados ou instituições. No caso concreto, com o enfraquecimento do Sacro Império Romano-Germânico, após a Guerra dos Trinta Anos, restou decidido que cada Estado teria liberdade religiosa (cada governante poderia escolher e religião do seu Estado). Desta forma consolidou-se o terceiro elemento que caracteriza o Estado, a soberania, que, juntamente com o território e a população, é considerado essencial para a qualificação desta entidade política.

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Assim, para entender o que é o Estado e sua posição perante o Direito Internacional, é importante expor brevemente cada um destes elementos:

População: De acordo com Pellet (2003, p. 418), “enquanto elemento constitutivo do Estado, a população é entendida como a massa de indivíduos ligados de maneira estável ao Estado por um vínculo jurídico, o vínculo da nacionalidade. É o conjunto de nacionais.” Assim, as pessoas, para serem consideradas parte da população de um Estado, devem ter esse liame jurídico com o mesmo, o qual permite que ele exerça a sua jurisdição pessoal, independentemente de onde o nacional se encontre (PELLET, 2003.; REZEK, 2010.)[6].

Território: O território é o espaço onde o Estado pode aplicar o seu poder (PELLET, 2003.). “Sobre seu território o Estado exerce jurisdição [...], o que vale dizer que detém uma série de competências para atuar com autoridade [...]. Sobre o território assim entendido, o Estado soberano tem jurisdição geral e exclusiva.”[7] (REZEK, 2010, p. 165). O território é a base física do Estado e sem este, assim como sem população, o mesmo não existe (MAZZUOLI, 2011).

Governo soberano: O governo pode ser considerado como o elemento que individualiza cada Estado. O governo, para ser considerado efetivo e caracterizar o seu Estado deve exercer a soberania.[8] Nas palavras de Francisco Rezek (2010, p. 231):

Identificamos o Estado quando seu governo [...] não se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior, não reconhece, em última análise, nenhum poder maior de que dependam a definição e o exercício de suas competências, e só se põe de acordo com seus homólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partir da premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no interesse coletivo. Atributo fundamental do Estado, a soberania o faz titular de competências que, precisamente porque existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas; mas nenhuma outra entidade as possui superiores.

Ou seja, um Estado é soberano quando não se subordina juridicamente a nenhum outro governo.[9]

Além disso, a capacidade de se relacionar com outros Estados também é admitida como um dos elementos essenciais para a caracterização de um Estado.[10] Segundo Brownlie (1997), essa capacidade pode também ser referida como independência. Por sua vez, essa independência se confunde com o conceito de soberania, ou seja, “o Estado deve ser independente das outras ordens jurídicas estatais, e qualquer interferência dessas ordens jurídicas ou de uma representação internacional deve basear-se num título de Direito Internacional” (BROWNLIE, 1997, p. 86).  Assim sendo, a capacidade de se relacionar com outros Estados está intrinsecamente vinculada à existência de um governo soberano. Este governo que poderá assinar tratados, enviar representantes diplomáticos, declarar guerra, e reconhecer outros Estados, por exemplo.

Enfim, estes podem ser considerados os elementos básicos que caracterizam um Estado e que, conseqüentemente, lhe atribuem personalidade jurídica internacional. Todavia, convém observar que estes elementos vêm sendo relativizados nos últimos anos, especialmente com a consolidação da União Européia e com o reconhecimento cada vez maior de poderes a órgãos de organizações interestatais.

1.2.2 As Organizações Internacionais

As organizações internacionais, ao contrário dos Estados – que são considerados entidades ‘de fato’ – são entidades ‘de direito’. Elas surgem em decorrência da vontade conjugada de diversos Estados, materializada sob a forma de um tratado, estatuto ou carta constitutiva. É por isso que são consideradas sujeitos derivados (REZEK, 2010), uma vez que não podem existir sem que exista esta formalização. Elas não têm território ou população, muito menos soberania, e só adquirem autonomia depois de cumpridos certos requisitos que estarão descritos no seu documento de criação.[11] Apesar disso, as decisões mais importantes tomadas no seio das organizações ainda dependem da votação e, consequentemente, da vontade dos Estados.

Segundo Angelo Piero Sereni (apud MELLO, 2004, p. 601) uma

organização internacional é uma associação voluntária de sujeitos de direito internacional, constituída por ato internacional e disciplinada nas relações entre as partes por normas de direito internacional, que se realiza em um ente de aspecto estável, que possui um ordenamento jurídico interno próprio e é dotado de órgãos e institutos próprios, por meio dos quais realiza as finalidades comuns de seus membros mediante funções particulares e o exercício de poderes que lhe foram conferidos.

De forma mais simplificada, Pellet (2003, p. 592) define organização internacional como “uma associação de Estados, constituída por tratado, dotada de uma constituição e de órgãos comuns, e possuindo uma personalidade jurídica distinta da dos Estados membros”.

Neste sentido, uma organização internacional deve ser constituída por Estados, os quais devem acordar[12], expressamente – por meio de um tratado que virá a ser a carta, estatuto, ou constituição de fundação da organização, e na qual estarão descritas as funções e objetivos da mesma, bem como suas limitações e os requisitos para ingresso – a criação desse novo sujeito de Direito Internacional. Além disso, a organização deverá ter órgãos que serão incumbidos de determinados papéis, que poderão ser políticos, jurídicos, executivos ou administrativos, sendo necessário que tenham independência para decidir e agir, pois a organização será dotada de uma personalidade distinta da dos Estados que a criaram ou dela vieram a fazer parte por meio de suas vontades soberanas.

As primeiras Organizações Internacionais surgiram com a decisão de tornar as conferências, que eram feitas de tempos em tempos para tratar de temas de interesse de várias nações, em instituições permanentes, com sede e funcionários.[13] Apesar disso, essas “uniões administrativas tinham um aspecto ‘rudimentar’ como organizações internacionais” (REUTER, Paul apud MELLO, 2004, p. 627). Foi somente após a 1ª Guerra Mundial que surgiram as Organizações Internacionais com fins políticos e dentro das quais os assuntos poderiam ser decididos por maioria, sendo a primeira com este caráter a Liga das Nações. (MELLO, 2004)

A personalidade jurídica das Organizações Internacionais é amplamente reconhecida. Todavia, na década de 1940 ainda havia dúvidas quanto a isso. Foi por meio de uma consulta realizada pela ONU junto à CIJ sobre a reparação de danos sofridos em razão da morte de um funcionário seu, o Conde Folke Bernadotte, na Palestina, (MAZZUOLI, 2011) que esta concluiu que as Organizações Internacionais são sujeitos de direito, mesmo não tendo exatamente as mesmas prerrogativas que os Estados no âmbito do Direito Internacional (BROWNLIE, 1997).[14]

     Ainda no parecer emanado nesse caso, a CIJ ressaltou que “os sujeitos de direito não são necessariamente idênticos na sua natureza ou na extensão dos seus direitos” (BROWNLIE, 1997, p. 708) e destacou a autonomia em relação aos seus membros, a capacidade de celebrar tratados e a natureza de organismo político com objetivos amplos e complexos como características que só podem ser entendidos quando pertencentes a um ente portador de personalidade jurídica internacional. Por fim, concluiu que a ONU é um sujeito de direito internacional “susceptível de possuir direitos e deveres internacionais, e que tem a capacidade de defender os seus direitos através da apresentação de reclamações internacionais.” (BROWNLIE, 1997, p. 709)

Apesar disso, não é por possuir personalidade jurídica que as organizações ganham automaticamente o poder de concluir tratados. Esta característica deve estar expressa ou implicitamente contida na sua carta de criação.  Todavia, ao longo dos anos estabeleceu-se o consenso de que as organizações internacionais têm o poder de concluir tratados, estando esta condição inclusive regulada na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados celebrados entre Estados e Organizações Internacionais e entre Organizações Internacionais, de 1986. (BROWNLIE, 1997, p. 712).

Ainda segundo Brownlie (1997, p. 709-710), pode-se considerar que uma organização internacional possui personalidade jurídica quando existe:

1. uma associação permanente de Estados, que prossegue fins lícitos, dotada de órgãos próprios;

2. uma distinção, em termos de poderes e fins jurídicos, entre a organização e os seus Estados membros;

3. A existência de poderes jurídicos que possam ser exercidos no plano internacional, e não unicamente no âmbito dos sistemas nacionais de um ou mais Estados.

Assim sendo, não é qualquer tipo de organização que pode ser considerada portadora de personalidade jurídica internacional. É necessário que haja independência e poder de ação no plano internacional, o que significa dizer que ela deve poder decidir livremente, sem se vincular à vontade dos Estados-membros, tendo uma personalidade própria, desvinculada da destes últimos (MAZZUOLI, 2011, p. 605).

Portanto, as Organizações Internacionais são, em geral, sujeitos de Direito Internacional. Todavia, ao contrário dos Estados, são sujeitos derivados, uma vez que para serem criadas necessitam do acordo de vontade desses (seja para iniciar uma organização totalmente nova, seja para criar uma a partir de outra já existente). Além disso, necessitam apresentar certos aspectos, como independência, estabilidade e poderes para exercer suas funções, para que lhes seja reconhecida a personalidade jurídica internacional desvinculada da de seus Estados-membros.

1.3 OUTROS SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL

Existem outros sujeitos aos quais é reconhecida personalidade jurídica por, pelo menos, parte da doutrina, e outros que ainda lutam para ter esse reconhecimento.[15] Todavia, há certa convergência na doutrina no sentido de apresentar como outros possíveis sujeitos de direito internacional as chamadas ‘coletividades não estatais’ e os indivíduos. Estes últimos, por serem parte do debate principal deste trabalho, serão analisados em tópico a parte. Já os primeiros, que estão subdivididos em: coletividades beligerantes; coletividades insurgentes; movimentos de libertação nacional; a Soberana Ordem Militar de Malta; a Santa Sé; e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, serão aqui brevemente abordados.

Coletividades beligerantes: “O reconhecimento como beligerante é aplicado às revoluções de grande envergadura, em que os revoltosos formam tropas regulares e que têm sob o seu controle uma parte do território estatal.” (MELLO, 2004, p. 557) Esse reconhecimento foi criado e muito utilizado no século XIX (MELLO, 2004). Servia para, além de dar direito à comunidade de efetuar bloqueios, capturas e concluir tratados (MAZZUOLI, 2011), como uma forma de garantia para a aplicação das leis da guerra, uma vez que se reconhecendo o caráter beligerante de determinada comunidade, esta estaria sujeita às normas internacionais, e o governo do Estado não seria mais responsável pelos atos cometidos por aquele grupo. É um instituto que caiu em desuso no século XX. (MELLO, 2004)

Coletividades insurgentes: “A insurgência normalmente ocorre em guerras internas, como lutas contra um regime colonialista ou lutas de libertação nacional, sem que ocorra o controle político de determinada área do território do Estado, como acontece nos casos de beligerância.” (MAZZUOLI, 2011, p. 406) Nesses casos, os direitos e deveres não surgem automaticamente com o reconhecimento, pois é este ato que delimita quais serão os seus efeitos, que são sempre mais restritos que nos casos de beligerância (MELLO, 2004).

Movimentos de libertação nacional: Esses movimentos emergiram durante o século XX nas lutas pela descolonização da África, Ásia, Oceania e Caribe e o que os diferencia de outros movimentos é que, normalmente, seus membros são nativos que lutam contra governos racistas ou contra colonizadores estrangeiros (MAZZUOLI, 2011).

A personalidade jurídica internacional de tais movimentos dá-se em três âmbitos: no direito humanitário, no direito dos tratados e nas relações internacionais. Contudo, essa personalidade e a eventual capacidade para participar da vida internacional [...] é limitada ao âmbito estritamente funcional e, em razão da matéria, aos temas correspondentes à sua vocação [...]. (MAZZUOLLI, 2011, p. 407)

Soberana Ordem Militar de Malta: Ela foi criada ainda na época das cruzadas, num hospital que abrigava peregrinos e, apesar de já ter tido território, atualmente é sediada em Roma. É uma Ordem religiosa e, na década de 1950, foi declarada pela Cúria Romana como subordinada à Santa Sé. Na Itália chegou a ser reconhecida como governo no exílio, tendo seu Grão-Mestre imunidade de jurisdição nesse país. Apesar disso, e de possuir uma Constituição e travar relações diplomáticas[16] com diversos países, ainda encontra-se muita resistência para reconhecer a personalidade jurídica internacional da Ordem. (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004) Sobre a Ordem, Mello (2004, p. 565) ressalta ainda que “ela é pessoa internacional porque tem direitos e deveres perante a ordem jurídica internacional”.

     Santa Sé: “A Santa Sé é a reunião da Cúria Romana com o Papa.” (MELLO, 2004, p. 561) Ela não corresponde à Cidade do Vaticano,[17] que é um território, enquanto a Santa Sé é um governo (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004). Até a unificação italiana o Papa era, além de soberano espiritual da Igreja Católica, soberano temporal de um determinado território. Com a unificação italiana, perdeu-se essa base territorial, mas o Papa continuou como soberano da Igreja, travando relações em nome da Santa Sé com os mais diversos Estados. Em 1929, com os Tratados de Latrão, assinados entre a Santa Sé e o governo italiano, a esta foi reconhecida personalidade jurídica e foi-lhe concedida também a soberania sobre a Cidade do Vaticano. Existem debates sobre as diferenças entre a personalidade internacional do Vaticano e da Santa Sé, mas o que é inconteste é a personalidade internacional da Santa Sé, a qual pode concluir tratados, travar relações diplomáticas, possui imunidade de jurisdição perante tribunais estrangeiros, etc. (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004)

Comitê Internacional da Cruz Vermelha: Após observar os horrores da batalha de Solferino, de 1859, um comerciante suíço, Henri Dunant, escreveu um livro onde propôs a criação de uma organização que atendesse os feridos de guerra. Essa idéia foi encampada por Gustave Moynier que, junto com o primeiro, concretizou a idéia. Em seguida a sua criação foram realizadas convenções para tratar das questões sanitárias nos exércitos de campanha e definir regras de direito humanitário para tratamento do Comitê, especialmente a salvaguarda de seus hospitais e ambulâncias. A Cruz Vermelha goza na Suíça de direitos semelhantes às das representações diplomáticas e tem acordos de sede com vários outros países. (MAZZUOLI, 2011; MELLO, 2004) Ademais, possui o status de observador dentro da ONU (MELLO, 2004) Quanto à personalidade internacional, conforme Mello (2004, p. 566):

[...] quem a possui é o Comitê Internacional [...], com sede em Genebra e totalmente independente de qualquer governo. Entre suas funções podemos mencionar as de: assegurar proteção e assistência às vítimas de guerra e reconhecer as sociedades nacionais. [...] o Comitê é um organismo de direito privado regido pelo Código Civil e desempenhando função pública internacional. Como ele tem direitos e deveres perante a ordem jurídica internacional, é igualmente pessoa internacional.[18] Ela não é uma organização internacional, porque não é intergovernamental.

Enfim, convém destacar que este não é um rol taxativo dos entes sobre os quais se debate a subjetividade internacional, o qual vem aumentando a cada dia, mas são os que costumam ser mais trabalhados, especialmente pela doutrina pátria. Como destacado anteriormente, o indivíduo é também um dos ‘candidatos’ a sujeito do Direito Internacional e, muito embora o debate sobre isso seja antigo, e exista a tendência ao reconhecimento da sua personalidade, há ainda argumentos fortes em sentido contrário.

1.4 O INDIVÍDUO

O indivíduo, ao contrário dos outros sujeitos internacionais reconhecidos por parte da doutrina, não são entidades abstratas, formadas por uma comunidade ou com um estatuto jurídico próprio ou outorgado. Os indivíduos são justamente as unidades que formam cada uma dessas comunidades, sejam Estados (diretamente), sejam organizações internacionais (indiretamente), sejam outros tipos de ordem ou organizações com fins políticos ou humanitários. O indivíduo é um ser concreto e é para ele e por ele que existem todas estas outras organizações abstratas.[19]

Uma corrente mais filosófica do Direito Internacional, chamada por Accioly e Silva (2000) de ‘individualista’ ou ‘realista’ sustenta que o destinatário do Direito Internacional, bem como de qualquer ramo do direito só pode ser o indivíduo. Nesse sentido, Kelsen (1995) considera errônea a opinião dos que defendem que o Direito Internacional não é capaz de obrigar ou autorizar os indivíduos[20] e cita como exemplo as normas internacionais proibidoras da pirataria, que obrigam os indivíduos e não os Estados de abster-se desse delito.[21] Segundo o filósofo (1995, p. 334):

Todo Direito é regulamentação da conduta humana. A única realidade social a que as normas jurídicas podem se referir são as relações entre seres humanos. Portanto, uma obrigação jurídica, assim como um direito jurídico, não pode ter como conteúdo outra coisa que não a conduta de indivíduos humanos. Se, então, o Direito internacional não obrigasse e autorizasse indivíduos, as obrigações estipuladas pelo Direito internacional não teriam absolutamente conteúdo algum, e o Direito internacional não obrigaria nem autorizaria ninguém a fazer coisa alguma.[22]-[23]

Cançado Trindade (2002, p. 02) afirma que os fundadores do ‘direito das gentes’ tinham também essa visão, especialmente Francisco de Vitoria. Segundo este: “o ordenamento jurídico obriga a todos – tanto governados como governantes, - e, nesta mesma linha de pensamento, a comunidade internacional (totus orbis) prima sobre o arbítrio de cada Estado individual.”[24] Além dele, segundo Cançado Trindade (2002, p. 03), Hugo Grotius também  entendia que “toda norma jurídica – seja de direito interno ou de direito das gentes – cria direitos e obrigações para as pessoas a quem se dirigem”. Ou seja, nos primórdios do Direito Internacional, os estudiosos deste ramo da ciência jurídica, entendiam tranquilamente ter o indivíduo direitos e obrigações também perante o ordenamento internacional.[25]

Ainda Cançado Trindade (2002) lamenta que este ponto de vista tenha se alterado pelo advento do positivismo jurídico, que relegou o Direito Internacional a um status de direito entre Estados e não acima destes. Segundo o autor, os adeptos dessa corrente personificaram “o Estado dotando-o de ‘vontade própria’, reduzindo os direitos dos seres humanos aos que o Estado a estes ‘concedia’.” (TRINDADE, 2002, p. 03-04) Em outras palavras, para estes estudiosos, o Estado passou a ser o único sujeito de direitos e deveres na esfera internacional, e os direitos e deveres dos indivíduos estavam apenas vinculados às normas do Estado ao qual estavam subordinados.

Com uma linha de raciocínio parecida com a dos autores do positivismo, Francisco Rezek (2010, p. 154) entende que “não tem personalidade jurídica de direito internacional os indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas”, uma vez que os tratados que instituem os tribunais internacionais, sejam de direitos humanos, sejam penais, são assinados por Estados e sua jurisdição vale para os nacionais dos Estados-parte daquela corte, o indivíduo continua vinculado e dependente do Estado, sem ter, portanto, capacidade jurídica internacional, a não ser através da participação e do consentimento estatal. (REZEK, 2010)[26]-[27] Ainda segundo Rezek (2010, p. 155):

Para que uma idéia científica – e não simplesmente declamatória – de personalidade jurídica do indivíduo em direitos das gentes pudesse fazer algum sentido, seria necessário pelo menos que ele dispusesse da prerrogativa ampla de reclamar, nos foros internacionais, a garantia de seus direitos, e que tal qualidade resultasse de norma geral. Isso não acontece. Os foros internacionais acessíveis a indivíduos – tais como aqueles, ainda mais antigos e numerosos, acessíveis a empresas – são-no em virtude de um compromisso estatal tópico, e esse quadro pressupõe a existência, entre o particular e o Estado co-patrocinador do foro, de um vínculo jurídico de sujeição, em regra o vínculo da nacionalidade. Se a Itália entendesse de retirar-se da União Européia, particulares italianos não mais teriam acesso à Corte de Luxemburgo, nem cidadãos ou empresas de outros países comunitários ali poderiam cogitar de demandar contra aquela república.

Mello (2004, p. 811) apresenta os argumentos dos positivistas italianos Quadri e Sereni, os quais, muito embora não ignorem os atos da vida internacional que dão direitos ao homem, não os consideram suficientes para demonstrar a personalidade do indivíduo:

[Quadri e Sereni] observam que os mencionados atos [tráfico de mulheres, genocídio, etc.] se dirigem sempre aos Estados. A ordem internacional imporia obrigações aos Estados em favor do homem. As normas internacionais não se endereçariam direta e imediatamente ao homem. Quadri assinala que um tratado internacional não poderia criar direitos para os indivíduos em virtude do ‘princípio da ineficácia dos tratados a respeito de terceiros’.”

No mesmo sentido, Pellet (2003) ressalta que existem diferenças na capacidade jurídica das pessoas internacionais, sendo que o Estado tem sua personalidade jurídica reconhecida diretamente pela sua existência, em razão da sua soberania. Já para os demais sujeitos de direito “é o próprio direito internacional – e, pelo menos de início, a vontade concertada dos Estados – que autoriza o reconhecimento da sua personalidade jurídica internacional e que precisa o seu conteúdo” (PELLET, 2003, p. 413).  Assim sendo, segundo este doutrinador, a capacidade jurídica do indivíduo continua a depender dos Estados (PELLET, 2003).

Não se afastando desta linha de pensamento, Brownlie (1997, p. 79) observa que:

Não existe regra geral alguma que determine que o indivíduo não possa ser um “sujeito de Direito Internacional” e, de facto, em determinados contextos, o indivíduo aparece como uma pessoa jurídica no plano internacional. Ao mesmo tempo, classificar o indivíduo como um “sujeito” de Direito Internacional é inútil, visto que tal pode parecer implicar a existência de capacidades que este não possui, não evitando a tarefa de distinção entre o indivíduo e os outros tipos de sujeitos jurídicos. (grifos no original)

Essas opiniões são justificadas pelo fato de, nas principais cortes internacionais, o indivíduo não ter a capacidade de postular autonomamente, dependendo do endosso[28] do Estado ao qual está vinculado. Ademais, mesmo nas que podem postular diretamente, esse direito está limitado a demandar contra os Estados-parte, já que outros não estão sujeitos à jurisdição da Corte, como no caso da Corte Européia de Direitos Humanos.[29]

Estas opiniões, entretanto, são rechaçadas por grande parte dos estudiosos atuais. Este pensamento pode ser traduzido nas palavras de Mello (2004, p. 808):

Não se pode falar em direitos do homem garantidos pela ordem jurídica internacional se o homem não for sujeito de DI. Dentro do mesmo raciocínio não poderíamos falar no criminoso de guerra, nem da proteção ao trabalhador dada pela OIT e nem mesmo se poderia lutar por uma Corte Internacional Criminal como se tem feito.

Ou seja, especialmente em razão do advento dos direitos humanos e do Direito Internacional Penal[30], o indivíduo passou a ter mais vinculação com a vida jurídica internacional, seja como protegido ou como acusado e, dessa forma, torna-se cada vez mais difícil negar sua personalidade jurídica. Ainda Mello (2004) diria que negar a subjetividade internacional do indivíduo, seria deturpar a existência de vários institutos jurídicos internacionais.

Assim, as opiniões atuais costumam ser intermediárias, considerando como sujeitos internacionais os Estados, as organizações internacionais, bem como os indivíduos, além de outros, como os tratados anteriormente, com as suas devidas peculiaridades e, sempre levando em conta os diferentes níveis de capacidade internacional.    

Mazzuoli (2011, p. 420) dá como fato consumado a consagração do indivíduo como sujeito de direito internacional:

Não vemos como possa ser negada a personalidade jurídica internacional dos indivíduos atualmente, principalmente levando-se em conta o ocorrido após a eclosão da Segunda Guerra, quando as pessoas passaram a ter direitos próprios, estranhos às normas endereçadas aos Estados, tendo sido dotadas, inclusive, de instrumentos processuais para vindicar e fazer valer seus direitos no plano internacional. Tal se deu, principalmente, pela multiplicação dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos concluídos nos últimos tempos, que estão a permitir expressamente, além do ingresso direto dos indivíduos às instancias internacionais, que também sejam demandados perante cortes internacionais de direitos humanos, como é o caso do Tribunal Penal Internacional.

Da mesma forma, Cançado Trindade (2002) é contundente em afirmar que não existe sentido em negar ao indivíduo a subjetividade jurídica internacional, simplesmente pelo fato de não possuírem as mesmas capacidades que outros sujeitos, como os Estados, como a capacidade de celebrar tratados, já que mesmo no âmbito do direito interno, nem todos participam da produção das leis, mas continuam a ser sujeitos de direito. Por fim, o mesmo autor destaca que

O movimento internacional em prol dos direitos humanos, desencadeado pela declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, veio a desautorizar estas falsas analogias, e a superar distinções tradicionais (e.g., com base na nacionalidade): são sujeitos de direito “todas as criaturas humanas”, como membros da “sociedade universal”, sendo “inconcebível” que o Estado venha a negar-lhes esta condição. (TRINDADE, 2002, p. 06)

É sem dúvida no campo dos direitos humanos que o posicionamento dos estudiosos no sentido do reconhecimento do indivíduo como sujeito de Direito Internacional é mais comum. Isso acontece justamente porque, sendo o indivíduo reconhecido como tal, os Direitos Humanos passam a gozar de mais força e efetividade, uma vez que não dependem mais somente da vontade dos Estados. Além disso, parte da responsabilidade pela defesa desses direitos é transmitida para o próprio indivíduo, principalmente no caso da CEDH, onde ele pode postular independentemente de representação do seu Estado e, inclusive, contra este. Nesse sentido, Cançado Trindade (2002) destaca que apesar de a capacidade processual ser um elemento importante para proteção dos direitos humanos, o fato de alguns indivíduos, como crianças ou enfermos mentais não poderem exercitar planamente sua capacidade, não os descaracteriza como titulares de direitos que podem ser oponíveis, inclusive contra o Estado.

Ainda o mesmo autor (TRINDADE, 2002, p. 31) defende que:

A titularidade jurídica internacional do ser humano, tal como a anteviam os chamados fundadores do direito internacional (o direito das gentes), é hoje uma realidade. No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, nos sistemas europeu e interamericano de proteção – dotados de tribunais internacionais em operação –, se reconhece hoje, a par da personalidade jurídica, também a capacidade processual internacional (locus standi in judicio) dos indivíduos. É este um desenvolvimento lógico, porquanto não se afigura razoável conceber direitos no plano internacional sem a correspondente capacidade processual de vindicá-los. Os indivíduos são efetivamente a verdadeira parte demandante no contencioso internacional dos direitos humanos.

O outro ramo do direito onde tal questão é debatida, como já citado, é o Direito Internacional Penal. O Direito Internacional Penal é, em certa medida, a outra face dos Direitos Humanos. Enquanto neste busca-se a defesa das vítimas que tiveram seus direitos feridos, no Direito Internacional Penal o que se busca é punição dos responsáveis por tais violações.

Nesse sentido, o indivíduo não é só sujeito de ‘direitos’ no sistema internacional, mas também sujeito de ‘deveres’. Araújo (2000, p. 54), destaca que:

A doutrina ocidental [...] consagra, com poucas exceções, a subjetividade jurídico-internacional do indivíduo ao lado do Estado e das organizações internacionais e o Tribunal Militar Internacional que se reuniu em Nurembergue com o objetivo de processar e punir os maiores delinqüentes de guerra da Alemanha nazista afirmou: “Está superabundantemente provado que a violação do direito internacional faz nascer responsabilidades individuais. São homens e não entidades abstratas que cometem os crimes cuja repressão se impõe como sanção do direito internacional”. (Grifou-se)

Ou seja, uma vez que são os próprios indivíduos que cometem as violações contra a humanidade, estes é que devem responder pelos seus atos. A responsabilização internacional do Estado é uma responsabilização ‘cível’, por meio de indenizações, ou então, o Estado acaba sofrendo retaliações, o que faz sofrer mais ainda a sua população em geral, enquanto os verdadeiros criminosos acabam não sofrendo privações algumas.

Esta questão já havia também sido levantada por Paul Guggenheim[31] e Constantin Eustathiades,[32] em 1952 e 1953, quando defenderam que o indivíduo também tinha deveres perante o direito internacional, podendo ser responsabilizado por seu desrespeito, como forma também de proteger os outros indivíduos. (TRINDADE, 2002)

Nesta linha de evolução também se insere a tendência atual de “criminalização” de violações graves dos direitos da pessoa humana, paralelamente à consagração do princípio da jurisdição universal. Neste início do século XXI testemunhamos o processo de humanização do direito internacional -, que passa a se ocupar mais diretamente da realização de metas comuns superiores em benefício de todos os seres humanos. (TRINDADE, 2002, p. 30)

Verifica-se, portanto, que, aceitando-se o indivíduo como sujeito de Direito Internacional, ele pode ser visto sob dois enfoques: como sujeito ativo, no âmbito dos direito humanos, já que este ramo do direito internacional tem por escopo “consagrar direitos subjectivos, em favor das pessoas, ao nível deste sector jurídico” (GOUVEIA, 2008, p. 29); ou como passivo, no âmbito do Direito Internacional Penal, quando se pune “aqueles que tenham infringido os mais altos valores protegidos pelo Direito Internacional Público, submetendo-os, assim, a penas de prisão, por terem cometido crimes internacionais.” (GOUVEIA, 2008, p. 59)

Enfim, para que seja reconhecida a personalidade jurídica internacional de um ente ou pessoa, não é necessário que este(a) compartilhe as mesmas características e capacidades que possuem os Estados. O simples fato de estar obrigado ou possuir prerrogativas emanadas do Direito Internacional, já é suficiente, em muitos casos, para que seja reconhecido tal status. No caso particular do indivíduo – além de poder vindicar seus direitos no âmbito dos tribunais de Direitos Humanos –, por ele estar obrigado a se abster de determinadas condutas previstas no Direito Internacional, seja por normas positivadas, seja pelo direito consuetudinário, é possível se reconhecer nele um sujeito de Direito Internacional Penal já que, como será visto na sequência do trabalho, mesmo que não esteja diretamente submetido a um Estado que concordou com tais normas, pode ser punido por desrespeitar estas ‘leis’ internacionais.

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Sobre a autora
Arisa Ribas Cardoso

Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - PPGD/UFSC. Bacharel em Direito e em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Arisa Ribas. O indivíduo como sujeito de direito internacional penal: o caso Omar Al-Bashir. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3582, 22 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24245. Acesso em: 3 mai. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado como monografia de conclusão do curso de Direito em novembro de 2011 na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.

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