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Incapacidade biopsicossocial no Direito Previdenciário

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28/04/2013 às 15:15
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Analisa-se o requisito legal da incapacidade laborativa para concessão do benefício por incapacidade de natureza previdenciária e assistencial, que tem aumentado no âmbito administrativo e judicial, nas lides entre segurados e o INSS.

Sumário: Introdução. 1. aposentadoria por invalidez no regime geral de previdência social. 2. Incapacidade biopsicossocial no direito previdenciário. 2.1. A hipótese das causas supralegais de concessão de aposentadoria por invalidez e as primeiras reflexões sobre a incapacidade social. 2.2. Evolução doutrinária e jurisprudencial do critério biopsicossocial de incapacidade. 2.2.1. Pressupostos constitucionais sobre a interpretação da incapacidade laborativa para fins previdenciários. 2.2.2. Aspectos doutrinários sobre invalidez e condições pessoais do segurado_. 2.2.3. Análise jurisprudencial qualitativa. 3. Análise crítica. Conclusão


Introdução

Nos últimos anos as concessões de aposentadoria por invalidez e demais benefícios por incapacidade de natureza previdenciária e assistencial vêm crescendo, conforme dados do Ministério da Previdência Social. A concessão do benefício tem aumentado no âmbito administrativo e judicial, nas lides entre segurados e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, notadamente após o advento dos Juizados Especiais Federais pela entrada em vigor da lei 10.259/2001.

O artigo analisa o requisito legal da incapacidade laborativa para fins de aposentação por invalidez no Regime Geral de Previdência Social – RGPS. Para tanto, parte da observação das concessões judiciais em que o requisito da incapacidade laborativa passou a ser considerado mais amplo, pela análise de múltiplos aspectos ligados à individualidade e ao contexto social em que inserido o trabalhador segurado. Essa interpretação multifatorial é que se denomina de incapacidade biopsicossocial.

O aumento na concessão dessa espécie de benefício de caráter contributivo traz à tona reflexões sobre a saúde do trabalhador em seus múltiplos aspectos. Tal fenômeno deve ser abordado de forma multidisciplinar, pois envolve temas como proteção à saúde do trabalhador, políticas públicas de saúde, reformas no sistema previdenciário, precarização das relações de trabalho, mudança na expectativa de vida e evolução da medicina, dentre outros.

Trata-se aqui de benefício que tutela um risco social específico: a invalidez, decorrente de doença comum ou ocupacional, acidente de qualquer natureza ou acidente de trabalho. E esse sinistro coberto pela previdência pode ter como causas mediatas e imediatas as deficiências e problemas nas questões supracitadas. Há, portanto, uma bomba social por trás do aumento das concessões dos benefícios por incapacidade, sejam de natureza previdenciária, sejam de natureza assistencial, em que pese as aposentadorias por idade liderarem o ranking de concessões administrativas em decorrência do envelhecimento da população1.

Muito embora a Organização Mundial de Saúde – OMS2 preveja a necessidade de se analisar as características biológicas, psíquicas e sociais do trabalhador na avaliação da incapacidade funcional, é na mescla dos conceitos médicos, administrativos e no argumento judicial que reside o objeto deste trabalho.

Entenda-se por argumento judicial, para fins deste estudo, a fundamentação para a prolação de sentenças e acórdãos e a convicção técnica da Advocacia-Geral da União para a realização de acordos judiciais nos processos previdenciários, na atuação dos Procuradores Federais oficiantes na matéria.

É justamente essa abordagem diferenciada para fins de aposentação por invalidez que nos remete ao conceito de incapacidade laborativa biopsicossocial no direito previdenciário.

No decorrer da exposição apresentar-se-á a estrutura normativa e doutrinária do benefício de aposentadoria por invalidez no regime geral de previdência social, e o paulatino alargamento do requisito da incapacidade a partir de uma legislação de tipos abertos.

Frisa-se que o conceito de invalidez laboral, como tratado na doutrina jurídica, era majoritariamente da área técnica da medicina, especialmente a do trabalho.

A evolução social e científica é que nos traz a necessidade de se rever esse conceito, tratando da invalidez como fenômeno biológico, psicológico e também social.

A reflexão sobre o tema passará pela prematura hipótese de que tais fatores se constituiriam em causas supralegais de concessão de aposentadoria por invalidez.

Posteriormente verifica-se a evolução doutrinária e jurisprudencial do critério biopsicossocial, culminando com a fixação de critérios médicos e jurídicos para definição de incapacidade laborativa e sua integração.

A pesquisa não se furtará da necessária análise crítica da adoção desse conceito no âmbito administrativo e judicial, e as possíveis conseqüências do modelo, inclusive em sede de conclusão do artigo.


1. Aposentadoria por invalidez no regime geral de previdência social

Preliminar à abordagem específica do tema, é necessário estabelecer as bases teóricas do benefício de aposentadoria por invalidez no regime geral, bem como situá-lo no amplo panorama da seguridade social previsto na Constituição Federal.

Nessa linha, imperioso salientar que a previdência social é uma das ações de iniciativa do Estado e da sociedade que compõe o trinômio da seguridade social, abarcando ainda a saúde e a assistência social, nos moldes preconizados pelo art. 194 da Constituição3.

Em que pese a natureza jurídica distinta, é comum a confusão entre assistência e previdência4. A primeira não é tratada neste artigo. Aqui o foco é um dos requisitos de um benefício de previdência social, ou seja, inserido no típico contrato de seguro representado pelas relações obrigacionais de custeio e prestação. A regra geral do sistema de previdência é que somente pode ser beneficiário e titular de prestação o trabalhador segurado, ou seja, filiado e contribuindo para o sistema, salvo as exceções específicas da lei.

A advertência é necessária porque não raro o sistema de previdência adquire contornos nitidamente assistenciais, como ocorre nos benefícios rurais que não exigem contribuição, e também no tema sob análise. De fato, a adoção de um critério biopsicossocial de incapacidade também reflete uma visão de previdência que vai além da clássica noção de seguro social. É uma acepção moderna, desenvolvida acentuadamente após o advento da nova ordem constitucional, principalmente na jurisprudência brasileira.

Crê-se que o amplo acesso ao Poder Judiciário para tratar das questões previdenciárias em concorrência com os demais fatores sócio-econômicos já citados, com especial relevo para a precarização das relações de trabalho e a carência na assistência à saúde, foram e são fatores determinantes para uma intervenção estatal mais abrangente em relação à previdência social.

Não à toa o aumento da cobertura previdenciária e o advento de normas mais benéficas no plano de benefícios da previdência a partir da Lei 8.213/1991.

Com o advento dos Juizados Especiais Federais em 2001, possibilitando amplo e gratuito acesso ao Judiciário, os benefícios por incapacidade como um todo tiveram seus índices de concessão e reativação judiciais maximizados. A esmagadora maioria das ações previdenciárias em trâmite nos juizados atualmente é de concessão ou restabelecimento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, o que também se reflete na justiça comum nas versões acidentárias destes benefícios5. Anote-se que mesmo os benefícios de natureza assistencial devidos ao idoso e ao deficiente de baixa renda por previsão constitucional6 e regulados em legislação específica7 não impactam nas estimativas de ações em trâmite no Judiciário como as prestações previdenciárias por incapacidade.

É forçoso reconhecer a atualidade e relevância do tema.

Com essas considerações preliminares, tem-se que a aposentadoria por invalidez é benefício que visa resguardar o risco social da incapacidade laborativa. Está intimamente ligada ao infortúnio, ocasionado por acidente ou doença, relacionados ou não ao trabalho. Por essa razão, a carência é bastante reduzida em comparação aos demais benefícios contributivos.

A matriz positivada dessa prestação previdenciária inicia nos direitos sociais previstos na Constituição Federal, passa pelo título destinado à ordem social, especificamente na seção de previdência8, e ordinariamente está prevista na Lei 8.213/91 com regulamentação no Decreto 3.048/99. A lei prevê os requisitos desta modalidade de aposentadoria9.

O direito ao benefício pressupõe o cumprimento dos requisitos de 1) qualidade de segurado, 2) carência quando exigível, e 3) incapacidade laborativa total – tecnicamente classificada como omniprofissional – e permanente. Além disso, é obrigatória a observância da vedação da preexistência da incapacidade à filiação, como corolário lógico de um contrato de seguro. Ora, se o segurado já se filia ao sistema incapacitado ou portador da doença incapacitante, fica frustrada a idéia de seguro social, com a ressalva específica para o caso de doenças inicialmente não incapacitantes, mas que, a partir do agravamento da moléstia ou lesão, tornam o segurado incapaz para o trabalho. Normatização contrária criaria odiosa discriminação e restringiria a proteção previdenciária somente para indivíduos plenamente ativos e sadios.

Observa-se que se trata de benefício com condição resolutiva (reaquisição da capacidade laboral), ou seja, com inserção da cláusula rebus sic stantibus. Na verdade se trata de prestação provisória com nítida tendência à definitividade, geralmente concedida após a cessação do auxílio-doença.

O segurado em gozo de aposentadoria por invalidez está obrigado sob pena de suspensão do benefício a submeter-se a exame médico a cargo da previdência social (revisão bienal), processo de reabilitação profissional por ela prescrito e custeado e a tratamento dispensado gratuitamente, exceto o cirúrgico e a transfusão de sangue, que são facultativos10.

Os estudiosos do tema distinguem na Lei 8.213/91 três subespécies deste benefício; a aposentadoria por invalidez em sentido próprio (art. 42), o benefício por grande invalidez (art. 45) e o benefício por recuperação da incapacidade (art. 47).

Quanto ao requisito da incapacidade laborativa, verifica-se que a legislação em nenhum momento especifica critérios para definição do que vem a sê-la.

Entende-se que agiu bem o legislador à época, com o claro objetivo de não extrapolar matéria eminentemente técnica e não se imiscuir em tema que outrora se reputava exclusivamente da área da medicina, especialmente a do trabalho. Com essa base legislativa, ainda regulamentada pelo decreto, os critérios para definição da incapacidade funcional caberiam exclusivamente à área técnica da saúde do trabalhador.

Refletindo sobre o tema em análise, e talvez se possa falar mais nisso na conclusão, instiga-se a pertinência do legislador em estabelecer critérios jurídicos para definição da incapacidade com base em outros elementos afora os médicos.

Adiante a reflexão será aguda, mas por ora cabe trazer a conceituação jurídico-doutrinária de dois autores que tratam o benefício de forma oportuna e pertinente com o conteúdo e as conclusões do presente estudo.

MOZART VICTOR RUSSOMANO dispôs:

...aposentadoria por invalidez é o benefício decorrente da incapacidade do segurado para o trabalho, sem perspectiva de reabilitação para o exercício de atividade capaz de lhe assegurar subsistência.11

WLADIMIR NOVAES MARTINEZ traz a natureza jurídica e crítica prefacial quando trata do benefício:

Aposentadoria por invalidez é benefício substituidor dos salários, de pagamento continuado, provisório ou definitivo, pouco reeditável, devido ao segurado incapaz para o seu trabalho e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade garantidora da subsistência.

A ele faz jus o facultativo, mesmo não trabalhando, e quem ingressa na previdência social incapaz para o trabalho não faz jus, salvo se sucedeu progressão ou agravamento após a filiação.

[...]

Benefício-irmão maior do auxílio-doença, é prestação previdenciária geradora de respeitáveis dissídios administrativos e judiciais pertinentes à definição do evento determinante.

Diante da enorme dificuldade de caracterizar a incapacidade para o labor ou recuperação, é negada para quem não tem condições de trabalho e deferida ao apto, provocando sem-número de discussões quanto à matéria fática, principalmente quando oriunda de acidente de trabalho, doença profissional ou do trabalho.12

Dos conceitos acima, duas notas são importantes para este estudo: 1) a menção à perspectiva de reabilitação, e 2) a dificuldade de caracterização da incapacidade funcional como fato gerador de litígios administrativos e judiciais.

Aqui é importante salientar que antes da explosão das concessões de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez não tinha tanto relevo a discussão sobre o alcance do conceito de incapacidade laborativa. Não se diga que a controvérsia não existia, mas a importância da reflexão ganhou força com a massificação dos litígios e os reflexos na estatística dos foros e nas finanças previdenciárias. Antes se tratava de casos mais pontuais, e não se pode afirmar que o serviço pericial ignorasse os aspectos biopsicossociais do segurado, mas é evidente que a concorrência de recentes fatores sócio-econômicos tornou o tema mais relevante e estratégico.

Com a melhor estruturação do serviço de perícia médica do INSS a partir de 2002, notadamente com o fim dos médicos particulares credenciados e a exclusividade do ato médico pericial a cargo de peritos oficiais e concursados, ganha relevo a fixação no âmbito administrativo de um conceito de incapacidade que abarque os fatores não exclusivamente médicos.

De fato, já em 2002 foi aprovado o Manual Técnico de Perícia Médica da Previdência Social13, ato de caráter restrito destinado a disciplinar procedimentos operacionais e publicado exclusivamente em boletim de serviço, que traz a conceituação administrativa de incapacidade e invalidez:

Incapacidade laborativa é a impossibilidade de desempenho das funções específicas de uma atividade ou ocupação, em consequência de alterações morfopsicofisiológicas provocadas por doença ou acidente.

A invalidez pode ser conceituada como a incapacidade laborativa total, indefinida e multiprofissional, insuscetível de recuperação ou reabilitação profissional, que corresponde à incapacidade geral de ganho, em conseqüência de doença ou acidente.

Dessa conceituação pinçam-se mais dois elementos a somar com os doutrinários já elencados: 1) a incapacidade como consequência de alterações morfopsicofisiológicas, e 2) a incapacidade de ganho.

A formulação destes conceitos administrativos revela o avanço no trato da questão, mas não espelha o alargamento do conceito de incapacidade que se tem hoje.

Ciente da existência e aplicabilidade na prática do critério biopsicossocial de incapacidade é imperioso e instigante analisar e propor uma base teórica, com pilares firmes no âmbito jurídico para essa forma de interpretação.


2. Incapacidade biopsicossocial no direito previdenciário

Conforme mencionado introdutoriamente, houve crescimento na concessão de aposentadorias por invalidez nos últimos anos, notadamente na via judicial. E paralelo a esse crescimento reformas constitucionais e legislativas em matéria previdenciária enrijeceram os requisitos das aposentadorias eminentemente contributivas.

Agrega-se um quadro de diversos problemas sociais, como a precarização das relações de trabalho, a informalidade, a precariedade da assistência à saúde e altos índices de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, as chamadas doenças ocupacionais.

Esse quadro delineou mudança significativa no conceito jurídico e no risco social decorrente da incapacidade laborativa. Interessante observar que o fenômeno abrange e impacta os direitos previdenciário, do trabalho e constitucional, além de também ser norteado pela medicina do trabalho, o direito assistencial e a sociologia.

Por essas razões que surgiram os aspectos controvertidos sobre o que é incapacidade laborativa na sociedade atual e o tratamento jurídico que se deve dar para esse fato social. E aqui a análise parte da observação do argumento médico-administrativo e judicial. Houve mudança sobremodo positiva nas avaliações médico-periciais da autarquia gestora nos últimos cinco anos. É preciso avançar, mas muitos dos fatos e idéias aqui lançados surgiram da prática e da observação trabalhando diretamente com a matéria.

2.1. A hipótese das causas supralegais de concessão de aposentadoria por invalidez e as primeiras reflexões sobre a incapacidade social

Na medida em que se foi evoluindo nos números de concessão, com o acentuado aumento das ações previdenciárias nos juizados federais e se observando a situação de vulnerabilidade social do trabalhador brasileiro – muito em decorrência da precariedade dos serviços de saúde – é que se começou a pensar a idéia de buscar critérios científicos, mais técnicos, para uma nova conceituação de incapacidade laborativa.

Essa concepção deve estar adaptada aos dias atuais e se projetar no futuro, mantendo-se maleável para que reflita a realidade social. Nesse aspecto se espera que o Brasil evolua muito nas condições de trabalho e renda nos próximos anos, com efeito em todos os indicadores.

Iniciando a reflexão sobre o tema, a primeira hipótese levantada com base no que vinha se observando na jurisprudência e cotidianamente na atuação processual traduziu-se no seguinte questionamento: é possível conceituar fatores biopsicossociais como causas supralegais de concessão de aposentadoria por invalidez? Ou o próprio conceito de incapacidade é aberto a concepções sociológicas afora as conclusões médicas de natureza técnico-pericial?

Tal foi o mote para o início do presente estudo. Porém, logo se percebeu que a definição de incapacidade laborativa parte de uma legislação de tipos abertos.

A concessão do benefício por invalidez, portanto, assume nítido caráter social, até mesmo para fins de distribuição de renda, de modo que acaba atuando como substitutivo dos benefícios de natureza contributiva ou assistencial.

Nestes casos a interpretação proposta funciona quando não há suporte fático que permita o enquadramento nos tradicionais benefícios contributivos decorrentes de um histórico de labor, e também quando não há vulnerabilidade social extrema ao ponto de se demandar a atuação do Estado pela assistência pura e simples.

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Assim, superou-se a abordagem do critério biopsicossocial como causa supralegal, para a compreensão da problemática como fenômeno hermenêutico e conceitual.

Nessa linha de raciocínio, os fatores socioeconômicos e culturais do indivíduo passam a ser inseridos no conceito de incapacidade, impondo-se que os órgãos administrativos adotem uma visão mais ampla, inclusive a chamada incapacidade social.

Ao relevar aspectos biopsicossociais do indivíduo, a Administração deve considerar que atualmente essa interpretação é causa determinante para o aumento na concessão de aposentadoria por invalidez na via judicial, justamente pela adoção dos critérios flexibilizadores ora analisados.

Trata-se de uma realidade para a qual a Administração não pode fechar os olhos sob pena de não só manter elevados os índices de concessão judicial do benefício como vê-los maximizados.

2.2. Evolução doutrinária e jurisprudencial do critério biopsicossocial de incapacidade

Na caracterização da incapacidade laborativa devem ser considerados conjuntamente os critérios físicos, psíquicos e sociais do segurado, tais como:

a) a idade

b) o tipo de incapacidade

c) o nível de escolaridade

d) a profissão

e) o agravamento que a atividade pode causar para a doença

f) a possibilidade de acesso a tratamento adequado

g) o risco que a permanência na atividade pode ocasionar para si e para terceiros

h) o tempo de permanência em benefício concedido administrativamente

i) fatores outros, considerando que a listagem não é exaustiva e devem sempre ser analisadas criteriosamente as condições pessoais, histórico laboral e características do segurado.

Anote-se que a eficiência administrativa não pode conviver com atendimentos massificados, num viés desorganizado e ultrapassado de serviço público.

Cabe ao administrador, como intérprete primeiro da legislação previdenciária e da Constituição – e membro da comunidade de intérpretes no dizer de Peter Habërle14 – estar preparado para exercer seu múnus público com segurança e independência, a fim de atingir o fim específico da proteção previdenciária que é a cobertura efetiva da situação de risco social, em respeito ao princípio da seletividade.

Considerando que os fatores descritos acima não estão expressos na legislação previdenciária, é tarefa dos operadores o exercício de interpretação ora proposto.

A pesquisa na busca de elementos fundantes para a aplicação do critério biopsicossocial surpreende pelo ineditismo do tema nas obras da área.

Há um discreto debate doutrinário, jurisprudencial e no âmbito administrativo sobre os benefícios por incapacidade, suas causas e impactos no sentido amplo. Porém, ao que parece os juristas evitam o tema espinhoso com receio de se imiscuir em matéria técnica da medicina.

Essa renitência deve ser superada. O estudo mais aprofundado de direito público torna claro que a incapacidade biopsicossocial encontra fundamentação no moderno direito constitucional e previdenciário.

Nesse sentido, a análise da jurisprudência previdenciária brasileira, muito desenvolvida com o advento dos Juizados Especiais Federais Previdenciários, é pedra de toque para a verificação dos critérios e interpretações ora defendidas, pois tem sido o mote para a concessão de milhares de benefícios, notadamente através da conciliação. E aqui cabe uma observação interessante. A pesquisa jurisprudencial revela que não há fundamentação doutrinária para a adoção do critério biopsicossocial de incapacidade funcional. Observa-se que os julgados aplicam o entendimento, mas não fundamentam em doutrina ou jurisprudência precursora, utilizando-se dos permissivos legais que autorizam a fundamentação concisa quando no rito dos juizados15.

Assim, o que se verifica é que há uma linha interpretativa sendo largamente aplicada sem respaldo mais técnico, como se o conceito de incapacidade laborativa biopsicossocial adotado pela Organização Mundial de Saúde – OMS e pela perícia médica do INSS estivesse sendo aplicado por consenso implícito, sem fundamentação jurídica nos processos judiciais.

Já no âmbito administrativo a discussão se circunscreve no setor de perícias médicas da autarquia, sendo necessário um treinamento mais qualificado para os servidores atendentes no sentido de interpretação da Constituição e da legislação.

Portanto, serve o presente para suscitar o debate sobre a matéria, para que se tenha clara uma política de concessão discutida amplamente por toda a sociedade, notadamente os representantes dos poderes.

2.2.1. Pressupostos constitucionais sobre a interpretação da incapacidade laborativa para fins previdenciários

“Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle” DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, art. XXV.1

A tese de admissão de causas sociais e pessoais como aptas para embasar a concessão de um benefício de aposentadoria por invalidez tem fundamento de validade na interpretação constitucional moderna.

Há teorias na sociologia e no direito constitucional a embasar esse proceder.

Adentrando na seara constitucional, o que se vê é que o pós-positivismo de RONALD DWORKIN e HABERMAS traz ínsita a idéia de Estado interpretador e executor dos princípios e fundamentos constitucionais.

Na obra Império do Direito16, DWORKIN conclama os juristas a refletir a respeito da interação existente entre o objeto da interpretação e a finalidade com a qual ela é realizada. O autor destaca que o intérprete tenta tornar um objeto o melhor possível e que o direito, como uma prática social, requer uma forma peculiar de interpretação que se assemelha a interpretação artística. A esta interpretação atribui a designação de interpretação criativa. Nesse sentido, afirma que a interpretação centra-se não nas causas, mas nos propósitos do intérprete.

Trazendo a proposta do autor para o caso concreto, reputa-se que a concessão de um benefício previdenciário e a apreciação de qualquer processo demanda interpretação constitucional concreta e individualizada. Assim, ainda que pareça utópico imaginar esse grau de aprofundamento e interpretação da Administração no Brasil, crê-se que a evolução qualitativa na prestação do serviço público certamente permitirá análises muito mais aprofundadas, casuísticas e finalísticas com os objetivos constitucionais.

Aliás, essa parece ser a tônica para a formação da “comunidade aberta de intérpretes da Constituição” como preconiza Peter Habërle.

E especificamente em relação a incapacidade biopsicossocial no direito previdenciário, a pesquisa jurisprudencial evidencia a aplicabilidade da idéia ora defendida, embora se trate de matéria nova e controversa.

Consequentemente, ganha relevo um excelente referencial interpretativo de RONALD DWORKIN, que é a teoria do direito como integridade, na busca da “única resposta possível” para um não aparente hard case. Não aparente porque um dos grandes problemas na implementação dos direitos, seja pela via administrativa ou judicial, é a massificação na análise dos casos, decorrente também da falta de estrutura. Isso prejudica sobejamente a interpretação das normas aplicáveis, levando muitas vezes à tão só subsunção da norma no suporte fático. O que vai de encontro ao que ora se busca, que é a interpretação.

A propósito, justamente a falta de estrutura do Poder Executivo é que levou à judicialização dos processos previdenciários, e é por essa razão que a teoria de DWORKIN é pertinente, já que está calcada também no argumento judicial.

Como se disse, está-se diante de um hard case não aparente, mas ainda que não o fosse, cabe salientar que não é apenas nos casos difíceis que o juiz interpreta as normas. Qualificar um caso como fácil ou difícil, ou uma norma como clara ou obscura, já é uma atividade de interpretação.

DWORKIN aborda a semelhança do direito com a literatura quando apresenta a parábola do romance em cadeia, em que se afirma que decidir casos controversos é semelhante ao ato de escrever um romance. Neste exercício literário um grupo de escritores é contratado para escrever um romance, sendo que cada capítulo tem um autor diferente. Para que o livro conserve a coerência, a partir do segundo capítulo cada romancista deve interpretar o texto já escrito para produzir a melhor continuação possível.17

Há inequívoca semelhança com o processo interpretativo operado na jurisprudência. Cada operador do direito se depara com um sistema pré-constituído por normas e por interpretações jurisprudenciais, os paradigmas, tidos como consensos condicionadores do debate e da interpretação.

A jurisprudência consolidada em diferentes momentos e proveniente de diferentes juízos e tribunais incorpora-se ao sistema jurídico, produzindo na comunidade a expectativa de que, em casos semelhantes, a decisão será guiada pelas mesmas razões de decidir.

Assim, refutar os paradigmas jurídicos consensuais provoca fortes suspeitas sobre a adequação da interpretação e o proponente corre o risco de ser considerado arbitrário, alternativista ou ignorante, ao menos que a divergência seja apontada e adequadamente fundamentada.

Hoje, como se verá doravante na análise de julgados, o critério biopsicossocial de incapacidade é amplamente adotado na jurisprudência brasileira e em muitos casos no processo administrativo.

Sem dúvida essa interpretação se disseminou entre a população, gerando fundada expectativa de que a administração previdenciária adote postura uniforme. Tal não ocorre, como bem salientou MARTINEZ na transcrição de sua obra disposta no primeiro capítulo deste artigo; o que se vê cotidianamente é a concessão de aposentadoria por invalidez para segurados tidos como aptos pela sociedade em geral e o indeferimento para segurados funcionalmente inválidos no seu meio.

A manutenção dessas distorções provoca revolta no segurado administrado e reflexo direto no questionamento quanto à conduta ética da Administração.

Como se vê, a hermenêutica constitucional é fundamento necessário para a análise do conteúdo jurídico da invalidez, a fim de retirar-lhe o elemento da indeterminação.

2.2.2. Aspectos doutrinários sobre invalidez e condições pessoais do segurado

Fundamentos hermenêuticos e principiológicos autorizam a utilização do critério biopsicossocial de incapacidade.

Para não alargar o âmbito de análise doutrinária deste artigo, se reputa importante abordar especificamente o requisito legal da invalidez com pressuposto nas condições pessoais do segurado.

Ínsita à idéia de adoção do critério em estudo está a noção de contingência e risco social, para os quais a doutrina fornece subsídios importantes.

WLADIMIR NOVAES MARTINEZ18, ao tratar da finalidade da previdência social, não hesita em concebê-la como “técnica de proteção social propiciadora dos meios indispensáveis à manutenção do indivíduo quanto este não pode obtê-los ou não é socialmente desejável auferi-los pessoalmente mediante o trabalho” (grifo nosso). Lembra o doutrinador, ainda, que a previdência visa à manutenção dos meios, e não a mera subsistência, que é objeto da assistência social19.

FEIJÓ COIMBRA20, ao tratar dos fundamentos da relação jurídica assistencial, especialmente o risco e o sinistro, assinala:

Risco é o evento futuro e incerto, cuja verificação independe da vontade do segurado21.

[...]

O leque de atividades de amparo do Estado tornou-se mais amplo e abrangeu, em breve, certos eventos de que o seguro privado não cogitara, convencionando-se denominar seu conjunto de riscos sociais. Até mesmo alguns acontecimentos que, por sua índole, dificilmente poderiam ser assim qualificados, tais como o casamento, o nascimento de filhos e outros, foram incluídos no elenco desses riscos, tendo em vista as consequências que determinam na economia frágil do trabalhador. Desse modo, no conjunto dos riscos visados pelas medidas protetoras do Estado, passaram a integrar-se: os riscos derivados do meio físico, os oriundos de deficiências orgânicas do segurado e os decorrentes da flutuação da economia. [...] Há ainda aí, por extensão, a incapacidade de ganho: a incapacidade de ganhar, pelo trabalho, o bastante para o sustento do núcleo familiar.

Como se vê, o aspecto socioeconômico sempre esteve presente como risco social. Advirta-se, contudo, que no ordenamento jurídico brasileiro a Constituição não separa ou superdimensiona os riscos imprevisíveis dos programáveis, o que permite concluir que não há priorização de risco ou contingência por espécie, mesmo porque se trata de fator mutável.

O certo é que a sociedade, por seus agentes políticos, deve eleger os riscos e contingências sociais que entenda necessário proteger em determinado momento histórico.

Tendo como pressuposto que a invalidez é um conceito jurídico indeterminado, cabe aos intérpretes preencher esse espaço. A esse respeito, inicialmente deve-se salientar a discordância com a afirmação de alguns autores, como FÁBIO ZAMBITTE IBRAHIM, quando afirma equivocada a formulação usualmente utilizada de “invalidez permanente ou temporária”, pois a temporária seria verdadeira contradição, enquanto a permanente uma expressão redundante22.

A literalidade do conceito de invalidez não traz ínsito o critério da permanência ou da totalidade da incapacidade23, mas sim uma moldura, um “estado da pessoa”, que deve ser interpretado de acordo com múltiplos fatores políticos e socioeconômicos. Afinal, como afirma ARAGONÉS, “a idéia da superação de um estado de necessidade por meio do esforço coletivo foi o que impulsionou os primeiros esquemas de proteção social24.”

A consequência dessa zona gris no conceito de invalidez é que os requisitos da incapacidade laboral e insuscetibilidade de recuperação são genéricos, difusos e subjetivos, demandando a depuração dos seus elementos constitutivos.

Nesse raciocínio, ao tratar da conceituação e estrutura normativa do benefício por invalidez no primeiro capítulo deste artigo, depuraram-se quatro elementos a partir da doutrina e do regulamento administrativo, que agora ganham relevo:

1) perspectiva de reabilitação do segurado;

2) a dificuldade de caracterização da incapacidade funcional como fato gerador de litígios administrativos e judiciais;

3) incapacidade como consequência de alterações morfopsicofisiológicas, e;

4) a incapacidade de ganho.

A incapacidade biopsicossocial perpassa cada um desses elementos, e a doutrina deixa clara essa conclusão.

Nesse sentido, MIGUEL HORVATH JÚNIOR25 enfrenta bem o tormentoso tema da amplitude da incapacidade:

Para a imensa maioria das situações, a Previdência trabalha apenas com a definição apresentada26, entendendo ‘impossibilidade’ como incapacidade para atingir a média de rendimento alcançada em condições normais pelos trabalhadores da categoria da pessoa examinada. Na avaliação da incapacidade laborativa, é necessário ter sempre em mente que o ponto de referência e a base de comparação devem ser as condições daquele próprio examinado enquanto trabalhava, e nunca os da média da coletividade operária. A razão essencial para se conceder qualquer benefício é o beneficiário estar em estado de necessidade social [...] Problema tormentoso é o estabelecimento do nível de perda da capacidade laboral que acarreta a concessão de aposentadoria por invalidez.

Em seguida, ao tratar especificamente do conceito de invalidez previdenciária, o autor conclui que para o pronunciamento médico-pericial é imprescindível considerar, dentre outros elementos, o tipo de atividade ou profissão e suas exigências; o grau de deficiência ou disfunção; a indicação ou necessidade de proteção do segurado doente, por exemplo, contra re-exposições ocupacionais; a idade e escolaridade do segurado; a suscetibilidade ou potencial de reabilitação; o mercado de trabalho e outros fatores exógenos. O mesmo estudioso ainda destaca:

Não se deve entender o evento gerador da aposentadoria por invalidez, a incapacidade absoluta, total e completa do segurado. O sistema não exige o estado vegetativo laboral para a concessão deste benefício. [...] se a lei não exige, é possível que ele possa exercitar a capacidade residual, de forma a obter uma complementação de seu sustento. Lembremo-nos que o sistema previdenciário é básico de cobertura e que a instalação da incapacidade reduz drasticamente o nível de vida do segurado que percebia remuneração superior ao teto máximo de pagamento.

Como se vê, o autor admite inclusive a coexistência da invalidez técnica com a capacidade residual, numa visão realista dos fatos. Afinal, como afirma FEIJÓ COIMBRA ao tratar do elemento material da regra jurídica de proteção, está embutido no conceito de capacidade laborativa, também, a “aptidão moral que permita realizar o trabalho”, como forma de erigir a proteção estatal contra o estado de subemprego27.

Não é crível esperar que o trabalhador vá observar inerte a queda brusca no padrão de vida do núcleo familiar, razão pela qual não raro se vê obrigado a trabalhar para complementar os rendimentos mesmo estando aposentado por invalidez. Trata-se de problema social ligado à renda e não especificamente à previdência.

Nesse sentido ARAGONÉS28 aborda a necessária individualização na análise da incapacidade:

A aferição da incapacidade deve ser apurada em cada caso concreto, jamais em relação ao “segurado médio”. O benefício não exige a incapacidade total absoluta, mas aquela que impede a continuidade do trabalho realizado pelo segurado em exame.

Com essa interpretação se vê que a incapacidade para a profissão desempenhada ou correlata autoriza a concessão do benefício, sendo irrelevante se posteriormente o segurado venha a exercer, por necessidade, atividade informal ou subemprego. Mesmo nessa situação os fatores que determinaram a caracterização da incapacidade para fins de benefício se mantém, ou seja, ainda há necessidade de proteção estatal.

DANIEL MACHADO DA ROCHA e JOSÉ PAULO BALTAZAR JUNIOR abordam o tema:

As condições pessoais do segurado reclamam uma análise cuidadosa que não deve descuidar-se de sua idade, aptidões, grau de instrução, limitações físicas que irão acompanhá-lo dali para frente, bem como a diminuição do nível de renda que a nova profissão poderá acarretar.29

MARINA VASQUES DUARTE acompanha os autores, fazendo remissão à jurisprudência do TRF da 4ª região, no sentido de que não é óbice ao deferimento do benefício o exercício de subemprego pelo segurado enquanto aguarda definição da autarquia acerca da prestação, pois não seria razoável exigir-se outra conduta daquele que vê sua única fonte de sustento suprimida.

Mas adiante, ao tratar da submissão do segurado aos exames de revisão bienal, a autora enfoca a análise judicial:

Aqui também deve ser avaliado pelo juízo as condições pessoais do beneficiário. Se ele esteve em gozo desta aposentadoria por longo tempo e já possui idade avançada, seu retorno ao mercado de trabalho torna-se impossível, razão por que deve ser mantido o benefício.30

Essa observação acerca da revisão administrativa por que passam os benefícios por incapacidade é oportuna e a análise crítica abordará o tema. É que a retomada legislativa de um limite etário para as revisões da aposentadoria por invalidez parece pertinente ao se admitir a adoção da incapacidade biopsicossocial. A reabilitação do beneficiário idoso raramente é factível, razão pela qual se questiona sujeitá-lo às eternas revisões administrativas.

Não se poderia concluir a análise doutrinária deste estudo sem mencionar um dos poucos livros a tratar do tema, que é A aposentadoria por invalidez no direito positivo brasileiro, de DANIEL PULINO.

A obra analisa a hipótese de incidência da norma jurídica geral e abstrata da aposentadoria em estudo, fixando o conceito técnico de invalidez a partir da definição da substancial incapacidade.

O autor reconhece que conceituar a invalidez não é apenas o ponto crucial do benefício em exame, mas uma das questões mais complexas de todo o direito previdenciário. Mesmo assim, não se furta de depurar os dois elementos que formam o núcleo do conceito jurídico de invalidez; a substancialidade e a permanência da incapacidade.

A substancial incapacidade revela a impossibilidade de ganho que nos termos da lei garanta a subsistência do trabalhador:

Daí ser preferível falar-se não em totalidade, mas em substancial incapacidade: a perda ou diminuição de rendas que abata, substancialmente, o orçamento familiar do segurado pode, e deve, ser considerada necessidade social, apta, pois, a permitir a outorga de aposentadoria por invalidez.31

O autor sintetiza muito bem o conceito administrativo de invalidez fundado na chamada incapacidade de ganho do trabalhador:

Pelo que vimos até agora, temos condições de afirmar que a concessão de aposentadoria por invalidez pressupõe a ocorrência de incapacidade ou absoluta – que evidentemente se comporta no conceito dado – ou, pelo menos, ampla, substancial de trabalho, devendo-se entender que essa amplitude é tal que importa, verdadeiramente, na incapacidade de ganho do segurado, a qual só poderá ser determinada, em cada caso concreto, segundo diversos fatores pessoais do próprio segurado, tendo como norte sempre a possibilidade de ser mantido o seu nível de subsistência.

A evolução do tema na visão do autor deve começar pela característica da contributividade do sistema. Desse modo, se o segurado sempre trabalhou e contribuiu com base no teto de contribuição, é inviável exigir-se que passe a trabalhar em atividade que lhe permita contribuição tão somente no valor mínimo.

Da análise do texto pode se verificar indiretamente a incidência do princípio da proibição do retrocesso social, em voga numa série de questões recentemente analisadas pelo Supremo Tribunal Federal. É inequívoca a aplicação do postulado no tema ora defendido e isso fica ressaltado no trabalho ora citado:

Deduz-se, portanto, que o nível protetivo da previdência social situa-se no patamar não de mera sobrevivência, mas, sim, no de subsistência do trabalhador e seus dependentes, de acordo com a média de seus rendimentos (que serviram de base para suas contribuições) dentro, é claro, dos limites próprios do regime geral.

Observa-se que o autor atrela a contributividade do regime previdenciário com a incidência da proteção social, ao comparar a vida contributiva do segurado com a redução da capacidade laboral que legitima a concessão do benefício, nos casos em que eventual capacidade residual não é suficiente para a manutenção do nível de vida.

Oportuno ressaltar as conclusões da obra sobre as condições pessoais do segurado como fatores aptos a compor o juízo complexo sobre a constatação da incapacidade laborativa caracterizável como invalidez previdenciária:

A aferição da invalidez não se resume, portanto, numa comprovação de ordem exclusivamente médica – embora esta seja uma condição necessária para a edição do ato de concessão do benefício –, compreendendo um juízo complexo, em que se deve avaliar a concreta possibilidade de o segurado conseguir retirar do próprio trabalho renda suficiente para manter sua subsistência em patamares, senão iguais, ao menos compatíveis com aqueles que apresentavam antes de sua incapacitação, e que foram objetivamente levados em consideração no momento de quantificação das suas contribuições para o sistema – dentro, sempre, dos limites de cobertura do regime geral de previdência social.

Como se vê, o ato médico-pericial deve se amparar não somente na avaliação clínica, mas também na repercussão do estado clínico – físico e psicológico – do segurado sobre a sua capacidade de trabalho em atividade que lhe possibilite determinado nível de subsistência, o que tecnicamente se denomina capacidade de ganho.

Portanto não há como deixar de se levar em conta aspectos relativos à escolaridade, formação profissional (aqui compreendidas a específica e as experiências de trabalho que possam ser aproveitadas para nova atividade), idade, perspectiva de reabilitação, e até certo ponto, as dificuldades que serão encontradas no mercado de trabalho.

Por fim, o autor aborda as consequências da adoção da incapacidade biopsicossocial em relação à população atingida, ou seja, de acordo com o princípio da seletividade:

Esta forma, que até agora vimos de identificação da substancialidade da incapacidade para fins de reconhecimento de direito à aposentadoria em estudo, permite-nos deduzir que a probabilidade de ocorrer a contingência social invalidez é maior (e, portanto, caracteriza-se mais frequentemente a situação de necessidade social a ela consequente) para determinados grupos de beneficiários, em função, justamente, daqueles fatores pessoais que são válidos para aferir a incapacidade de ganho do segurado. Variação que se dá, portanto, segundo o perfil dos segurados.

Como se vê, em que pese a tímida contribuição doutrinária, a incapacidade biopsicossocial tem base teórica robusta, passível de maior aprofundamento, reconheça-se.

2.2.3. Análise jurisprudencial qualitativa

A adoção do critério biopsicossocial de incapacidade é uma realidade na jurisprudência brasileira nos tribunais regionais federais, tribunais de justiça e nas turmas recursais dos juizados especiais federais de todos os estados.

Assim, optou-se por analisar arestos das duas cortes mais importantes atualmente em matéria de direito previdenciário, que são o Superior Tribunal de Justiça – STJ e a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais – TNU, representativos das idéias e conceitos ora trabalhados32.

A evolução jurisprudencial da matéria é muito peculiar.

Inicialmente a incapacidade biopsicossocial era abordada e considerada quase que exclusivamente na matéria acidentária, portanto em julgados esparsos da justiça estadual. Não havia jurisprudência que se pudesse dizer dominante ou representativa. Até mesmo em razão das espécies de prestação por incapacidade não alcançarem em passado recente os índices de concessão atuais.

Consequentemente era muito incipiente o debate no foro federal porque, como já se disse, não havia a atual enxurrada de ações ajuizadas nos JEFs.

De fato, o STJ e a TNU recentemente passaram a adotar a tese em análise. A questão não está pacificada no STJ, mas na TNU o posicionamento é reiterado.

O efeito processual é que muitos pedidos de uniformização de jurisprudência interpostos na TNU com base em divergência com o STJ não estão sendo mais conhecidos, porque a matéria não é mais pacífica na corte superior.

Deve se salientar que a TNU é um órgão colegiado de composição variável, integrado por dez juízes federais, sendo dois de cada região judiciária, com mandato de dois anos, vedada a recondução33. Nesse formato é possível imprimir maior dinâmica na jurisprudência, um fator interessante e diferenciado no panorama das cortes brasileiras.

Lembra-se mais uma vez que dado ao ineditismo da matéria na doutrina, não se encontrou na pesquisa fundamentação específica sobre a adoção do critério em estudo. Como se vê nos trechos de acórdãos a seguir, a incapacidade biopsicossocial é um consenso fundado nos princípios constitucionais explícitos e implícitos e em legislação aplicada por analogia.

O primeiro julgado da TNU encontrado na pesquisa, de 2008, já apontava o uso desse método analógico de resolução de conflitos, senão veja-se:

1. A interpretação sistemática da legislação permite a concessão da aposentadoria por invalidez se, diante do caso concreto, os fatores pessoais e sociais impossibilitarem a reinserção do segurado no mercado de trabalho, conforme livre convencimento do juiz que, conforme o brocardo judex peritus peritorum, é o perito dos peritos, ainda que a incapacidade seja parcial.

1.1. Na concessão do benefício de aposentadoria por invalidez, a incapacidade para o trabalho deve ser avaliada do ponto de vista médico e social. Interpretação sistemática da legislação (Lei n. 7.670/88; Decreto 3.298/99; Decreto 6.214/07; Portaria Interministerial MPAS/MS Nº 2.998/01).

2. Além disso, o novel Decreto nº 6.214/07 estabelece: “Art. 4º. Para os fins do reconhecimento do direito ao benefício, considera-se: III - incapacidade: fenômeno multidimensional que abrange limitação do desempenho de atividade e restrição da participação, com redução efetiva e acentuada da capacidade de inclusão social, em correspondência à interação entre a pessoa com deficiência e seu ambiente físico e social”; “Art. 16. A concessão do benefício à pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de incapacidade, com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde - CIF, estabelecida pela Resolução da Organização Mundial da Saúde no 54.21, aprovada pela 54ª Assembléia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001. § 1º. A avaliação da deficiência e do grau de incapacidade será composta de avaliação médica e social. § 2º. A avaliação médica da deficiência e do grau de incapacidade considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e a avaliação social considerará os fatores ambientais, sociais e pessoais, e ambas considerarão a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social, segundo suas especificidades”; (Art. 16, §2, Decreto n. 6.214/2007).

3. Segurado com 62 anos de idade, portador de hipertensão arterial e doença degenerativa. Baixa escolaridade. Baixíssima perspectiva de reinserção no mercado de trabalho. A aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana e a interpretação sistemática da legislação que trata da incapacidade conduzem à aposentadoria por invalidez, ainda que atestada a capacidade parcial do ponto de vista estritamente médico. 4. Incidente do INSS conhecido e não provido.34

Como se vê, a relatora fundamenta o acórdão em legislação específica para pessoas portadoras de deficiência, apoiando o exercício de analogia no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Anote-se que o tratamento dado à legislação é tido como aplicável à incapacidade em geral, sem distinguir a invalidez funcional da deficiência.

Mais recentemente:

APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. LAUDO MÉDICO QUE INDICA CAPACIDADE TEMPORÁRIA. CARACTERES SOCIOCULTURAIS DO SEGURADO QUE CONDUZEM À CONCLUSÃO PELA INCAPACIDADE PERMANENTE. PARADIGMAS JUNTADOS. SIMILITUDE FÁTICA. CONHECIMENTO DO INCIDENTE, NESSA PARTE. CASO DOS AUTOS. AVALIAÇÃO JUDICIAL QUE DESCONSIDEROU FATORES SOCIAIS E PESSOAIS RELATIVOS À IDADE AVANÇADA. DIVERGÊNCIA INSTAURADA. PRECEDENTES DESTA TNUJEF’’s. PROVIMENTO.

[...]

II. Afirmando os acórdãos paradigmas que, na aferição da incapacidade laboral para fins de concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, é permitido ao julgador levar em consideração aspectos sócio-culturais do segurado, estes normalmente associados à sua idade avançada, e, havendo o aresto recorrido, no caso específico, desconsiderado tal circunstância, é de rigor o reconhecimento de similitude fática.

III. Em sendo o entendimento desta TNUJEF’s no sentido de autorizar ao julgador, no processo de formação da sua convicção quanto à incapacidade laboral do segurado, somar às razões médicas considerações sobre as condições pessoais e sociais do segurado e, havendo a questão sido pontualmente enfrentada pelo aresto recorrido, há de ser provido o recurso, nesse ponto.

IV. Pedido de uniformização conhecido, em parte, e provido, nessa parte.35

No corpo do acórdão se verifica a divergência e se extrai a referência ao posicionamento mais recente do STJ:

[...]

Aduz o Recorrente restar firmada a tese acerca de que na conversão do benefício previdenciário de auxílio-doença para aposentadoria por invalidez, deve-se levar em consideração os aspectos relativos à escolaridade, sua formação profissional e idade, como empecilho à sua adaptação em outra atividade laborativa.

[...]

O acórdão recorrido, ao enfrentar tal tese, pronunciou-se no sentido de que “se a Previdência Social não tem obrigação de inserir pessoas com capacidade laborativa reduzida, deficientes ou reabilitados no mercado de trabalho, tampouco deve ser obrigada a pagar auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez a pessoas que encontram dificuldades em conseguir empregar-se, sejam por quais circunstâncias forem”, sendo este o fundamento suficiente para a sua decisão.

O mais recente entendimento que vem sendo adotado por esta Turma Nacional é no sentido de autorizar ao julgador, no processo de formação da sua convicção quanto à incapacidade laboral do segurado, somar às razões médicas considerações sobre as condições pessoais e sociais do segurado. [...] MODERNA JURISPRUDÊNCIA DO STJ E PRECEDENTES DA TNU.

De fato, o STJ adotava posição legalista e fechada, com interpretação literal acerca do requisito da incapacidade laborativa pela egrégia 3ª Seção, composta pela 5ª e pela 6ª Turmas.36

Ocorre que não há mais jurisprudência dominante sobre essa questão de direito material. Nesse sentido, a 5ª Turma do STJ evoluiu, passando a entender que, ainda que sob o ponto de vista médico a incapacidade seja parcial, há direito à concessão de aposentadoria por invalidez se as condições pessoais forem desfavoráveis, conforme o acórdão do REsp nº 965.597/PE, assim ementado:

PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. LAUDO PERICIAL CONCLUSIVO PELA INCAPACIDADE PARCIAL DO SEGURADO. NÃO VINCULAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA SÓCIOECONÔMICA, PROFISSIONAL E CULTURAL FAVORÁVEL À CONCESSÃO DO BENEFÍCIO.

1. Os pleitos previdenciários possuem relevante valor social de proteção ao Trabalhador Rural Segurado da Previdência Social, devendo ser, portanto, julgados sob tal orientação exegética.

2. Para a concessão de aposentadoria por invalidez devem ser considerados outros aspectos relevantes, além dos elencados no art. 42 da Lei 8.213/91, tais como, a condição sócio-econômica, profissional e cultural do segurado.

3. Embora tenha o laudo pericial concluído pela incapacidade parcial do segurado, o Magistrado não fica vinculado à prova pericial, podendo decidir contrário a ela quando houver nos autos outros elementos que assim o convençam, como no presente caso.

4. Em face das limitações impostas pela avançada idade (72 anos), bem como por ser o segurado semi-analfabeto e rurícola, seria utopia defender sua inserção no concorrido mercado de trabalho, para iniciar uma nova atividade profissional, pelo que faz jus à concessão de aposentadoria por invalidez. 5. Recurso Especial não conhecido.37

No acórdão o relator observa que “em matéria previdenciária deve haver uma flexibilização na aplicação das leis, pelo que entendo ser necessário, para a concessão de aposentadoria por invalidez, considerar outros aspectos relevantes, além dos elencados no art. 42 da Lei 8.213/91, tais como, a condição sócio-econômica, profissional e cultural do segurado”.

Voltando ao âmbito da TNU, mais um acórdão demonstra a necessidade de tratamento individualizado para a questão da invalidez funcional, ao afirmar que “a incapacidade para o desempenho de uma atividade profissional deve ser avaliada sob os pontos de vista médico e social, mediante análise das condições socioeconômicas do segurado.38

Ao final, o relator arremata:

“Na esteira da recente orientação do STJ e da jurisprudência desta TNU, cumpre acrescentar que não se deve esquecer que o conceito de incapacidade relaciona-se com a prática da vida de determinada pessoa e não com um conceito eminentemente clínico ou abstrato. Por isso, a incapacidade para o trabalho não pode ser identificada apenas a partir de uma perspectiva médica. Não são raros os casos em que o segurado, embora portador de uma incapacidade funcionalmente parcial, se encontra incapacitado para o exercício de qualquer atividade que possa lhe garantir subsistência. É o caso típico do trabalhador braçal, que desempenha suas atividades mediante intenso esforço físico. Uma vez que se encontre incapacitado para o exercício de atividades que demandem esforço físico acentuado, conte com idade relativamente avançada e não apresente formação social ou educacional para desempenho de função que dispense tal esforço físico, na verdade ele se encontra sem condições reais de autoprover-se. A baixa qualificação e a reduzida aptidão para atividades estranhas às credenciais apresentadas pelo trabalhador implicam ausência de condições para o desempenho de qualquer trabalho decente. A análise da incapacidade para o trabalho deve levar em conta, assim, não apenas a limitação de saúde da pessoa, mas igualmente a limitação imposta pela sua história de vida e pelo seu universo social.”

Como se observa, a incapacidade biopsicossocial está se firmando no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e já soa como matéria pacificada na Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais.

É interessante observar as nuances regionais, considerando as desigualdades entre cada parte do país.

Ressalte-se que já na década de 80 havia julgados precursores na justiça estadual em matéria acidentária adotando o critério de incapacidade biopsicossocial.

Todavia, a análise qualitativa que se propõe pretende ser atual, na medida em que somente nos últimos anos a questão ganhou relevo nos foros federais e no âmbito administrativo.

A partir da constatação de que a incapacidade biopsicossocial vem sendo reiteradamente reconhecida como critério jurídico apto para a concessão de aposentadoria por invalidez, abre-se espaço para reflexão e estudo dessa postura, lembrando que a instigação e a proposição de debate mais aprofundado também é uma meta deste trabalho.

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Sobre o autor
Rafael Machado de Oliveira

Procurador Federal, atualmente Procurador Regional do INSS na 2ª Região, graduado na UFSM e especialista pela UNB. Professor de direito previdenciário e do trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rafael Machado. Incapacidade biopsicossocial no Direito Previdenciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3588, 28 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24284. Acesso em: 28 mar. 2024.

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