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Execução da multa penal “ad aeternum”?

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O não pagamento da multa imposta na sentença tem gerado efeitos processuais e materiais penais nefastos para o delinquente. No cotidiano forense, tem ocorrido que o réu cumpre a pena privativa de liberdade, mas não paga a multa e a sua execução criminal continua ativa.

Resumo: O tema principal do presente trabalho é demonstrar como a execução da multa fixada em uma sentença penal condenatória tem perdurado durante longo período no dia a dia forense decorrente do inadimplemento por parte do réu, que na maioria das vezes não o faz por ausência de recursos financeiros. Com o objetivo de afastar tais efeitos extremamente gravosos ao condenado reincidente, invocar-se-á a Constituição Federal, como norma suprema do ordenamento jurídico que deve balizá-lo.

Palavras-chave: Pena de multa. Execução prolongada. Efeitos nefastos. Natureza jurídica. Normas e hermenêutica constitucionais.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho centra-se no estudo da execução da multa criminal imposta em uma sentença penal condenatória. Notamos que no cotidiano forense a execução penal de um condenado tem se prolongado devido ao inadimplemento dessa multa imposta na sentença. E isso tem trazido pesados gravames, primordialmente ao condenado que volta a cometer outro delito (reincidente), o qual geralmente não pagou a multa penal imposta na primeira condenação por falta de recursos financeiros.


CONCEITO DE PENA DE MULTA

Os doutrinadores modernos entendem, de uma forma geral, que a multa consiste em uma diminuição do patrimônio do delinquente, que lhe é imposta como sanção penal, sendo fixada segundo os critérios previamente estabelecidos na lei.

Vale lembrar também que o legislador penal brasileiro a definiu como “pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa” (artigo 49, caput, 1ª parte, CP).


2 CRITÉRIO DE APLICAÇÃO (DIAS-MULTA)

Prevê o artigo 49, caput, do Código Penal que a pena de multa será calculada em dias-multa, os quais deverão ser fixados na sentença em no mínimo de dez e, no máximo, de trezentos e sessenta. E cada dia-multa variará entre um trigésimo e cinco vezes o valor do salário mínimo legal vigente ao tempo do fato (artigo 49, §1º, CP), o que merece crítica, pois muitas vezes este máximo pode ser bagatela dependendo da condição financeira do apenado. Porém, amenizando essa crítica, no caso concreto, atentando para a situação econômica do réu, o juiz poderá triplicar o valor da multa, ao observar que a mesma, embora no máximo, é inócua (artigo 60, §1º, CP).


3 PROBLEMAS PRÁTICOS DA EXECUÇÃO DA PENA DE MULTA

Transitada em julgado a sentença penal condenatória deve o magistrado notificar o réu para que pague a multa fixada, nos termos do artigo 50 do Código Penal. Entretanto, um grave problema existente no Brasil impede que o condenado pague esta sanção pecuniária que lhe foi imposta, qual seja, a sua baixa ou nenhuma renda, decorrente do fato de que a esmagadora maioria tem baixo nível de escolaridade.

Em um sistema capitalista, em que cada vez mais se exige maior qualificação da mão-de-obra, o espaço para essas pessoas no mercado de trabalho chega a ser quase nulo. Não é por outra razão que “escolhem” o caminho do crime. Este quadro deplorável impede que o réu cumpra a sanção pecuniária mesmo quando fixada no mínimo (10 dias multa x 1/30 do salário mínimo atual = R$ 224,00). A situação, neste ponto, piorou e muito com a criação da Lei 11.343/06, a chamada Lei de Drogas, vez que o legislador infraconstitucional prescreveu pesadas penas de multa (ex.: artigo 33, que prevê uma pena de multa variando entre 500 a 1500 dias multa).

Mister se faz destacar, que ao criminoso, sem escolaridade, sem renda, importa é o desencarceramento, não se preocupando ele, portanto, com a pena de multa, com sua execução. Ele não está dando conta nem de angariar recursos para sua própria subsistência, quanto mais de adquirir um bem que possa vir a ser passível de execução judicial.

Todavia, o não pagamento da multa imposta na sentença tem gerado efeitos processuais e materiais penais nefastos para o delinquente. Isto é, no cotidiano forense, tem ocorrido que o réu cumpre a pena privativa de liberdade, mas não paga a multa e a sua execução criminal continua ATIVA. Tanto que ao pedir uma certidão da Vara de Execuções Criminais, para instruir outro processo em que o sujeito é também réu, vê-se que o crime que o mesmo já cumpriu a pena privativa de liberdade há muitos anos, continua ainda em “EXECUÇÃO”. Ao nos depararmos com esse fato, tivemos a desagradável surpresa de observar uma certidão da vara de execuções criminais de um réu que já havia cumprido a pena privativa de liberdade há mais de dez anos e sua execução ainda continuava ativa. Foi então que em análise de um prontuário de outro condenado verificamos que a pena privativa de liberdade já havia sido integralmente cumprida e a execução estava “suspensa” pelo inadimplemento da pena de multa. A pergunta foi lógica: “vai ficar suspensa até quando?” A conclusão também foi óbvia: até que sobrevenha uma causa extintiva da punibilidade, entre as quais destacamos a prescrição (artigo 107, inciso IV, do Código Penal), por ser a modalidade mais recorrente na prática.

Assim, consoante a doutrina tradicional (BITENCOURT, 2004) atentando para o que prescreve o Código Penal, no artigo 114, II, tem-se que prescrição da multa ocorreria no mesmo tempo que a pena privativa de liberdade. Ora, então aquele réu, sem escolaridade, sem renda, que não pagou a pena de multa por não ter efetivamente recursos vai continuar sendo reincidente “ad aeternum”? Exatamente. Isso porque o artigo 64, caput e inciso I, do Código Penal é de clareza insofismável quando aduz:

“Para efeito de reincidência: I – não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computando o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação” (sem grifos no original).

Nesse passo, percebe-se que o Código fala em extinção da pena, seja ela qual for (privativa de liberdade, restritiva de direitos, multa). E, assim, para essa corrente doutrinária, é óbvio que o inadimplemento da pena de multa não configura cumprimento nem extinção.

A título apenas ilustrativo, vejamos um exemplo: 1) João Ninguém, aguardando julgamento em liberdade, 23 anos, primário, com todas as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP favoráveis, é condenado em 21/09/2008 pelo delito de roubo, com emprego de arma (artigo 157, §2º, inciso I, CP), ocorrido em 15/03/2008, à uma pena privativa de liberdade de cinco anos e quatro meses de reclusão, em regime semi-aberto (artigo 33, §2º, alínea “b”, do CP) e à pena de multa correspondente à 10 dias-multa, à razão de 1/30 do salário mínimo legal, perfazendo o valor de R$ 155,00 à época dos fatos (sem atualização).

Imaginemos que João cumpre completamente a pena privativa de liberdade. Entretanto, João está desempregado e não possui qualquer tipo de renda. Dessa forma, mesmo notificado pelo juiz de que deveria pagar a multa imposta, João, sem recursos, deixa de fazê-lo. Como conseqüência, seja suspendendo sua execução por conta do inadimplemento, seja ou promovendo a execução da multa imposta a João, o fato é que sua pena não será extinta após o cumprimento da pena privativa de liberdade. Isto porque, se a multa criminal continua sempre como pena, ela deve ser adimplida pelo réu ou esperar que ocorra a extinção da punibilidade, em que se destaca nesta seara a prescrição.

Cabe aqui também uma outra reflexão feita pela doutrina tradicional, qual seja, o fato de que enquanto se cumpre a pena privativa de liberdade não correria a prescrição da pena de multa. Nesse sentido, BITENCOURT (2004, p. 784):

“Durante o cumprimento da pena de prisão, não corre o prazo prescricional em relação à pena de multa”.

Por isso, no caso sub occulis, o réu somente voltaria a ser primário em 21/01/2031, ou seja, vinte e dois anos e quatro meses após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Isto porque, se foi condenado a uma pena de cinco anos e quatro meses, esta prescreverá em doze anos, consoante os artigos 110, caput, e 109, III, ambos do CP. Soma-se aos cinco anos e quatro meses (cumprimento da pena), mais doze anos (prazo prescricional) e mais cinco, como determina o referido artigo 64, I, do CP, para que o sujeito volte a ser primário, o que acaba por gerar uma execução e reincidência criminal “ad aeternum”. É exatamente isso o que ainda ocorre em muitas comarcas brasileiras.


4 “EFEITOS NEFASTOS” DE UMA EXECUÇÃO CRIMINAL PROLONGADA

Não se necessita ser um estudioso da sociologia jurídica para saber que a reincidência “salta aos olhos” no País. E os motivos são os mesmos supracitados. A população não tem oportunidades iguais, o Brasil, apesar de estar entre as seis maiores economias mundiais, apresenta altíssimo índice de concentração de renda, os governistas nunca foram fãs de investimentos maciços em educação e a consequência está aí: pessoas sem escolaridade, sem emprego, sem renda e acabando por entrar no mundo crime. E, uma vez nele, a tendência é nele permanecer. Isto não é uma hipótese, é um fato.

No entanto, se o réu volta a delinquir, será “sempre” reincidente, já que sua execução continua ATIVA. Repita-se, quando for retirada sua Certidão da Vara de Execuções Criminais constará que o delito por ele cometido anteriormente continua ainda em “EXECUÇÃO”. E é cediço os efeitos maléficos que a reincidência ocasiona para um criminoso. Nesse sentido, sem o propósito de exaustão, podemos citar alguns entraves que enfrentará o réu. Vejamos:

  • a reincidência é uma circunstância que sempre agrava a pena, conforme prescreve o artigo 61, inciso I, do CP;
  • interpretando-se (a contrario sensu) o artigo 33, §2º, alíneas, “a”, “b”, “c”, do CP, tem-se que ao reincidente não é cabível outro regime que não o fechado;
  • a pena restritiva de direitos somente é cabível excepcionalmente, ex vi do artigo 44, caput, inciso II e §3º do Código Penal;
  • em se tratando de reincidência de crime doloso, ao réu obsta a concessão do SURSIS, CP, artigo 77;
  • o condenado em crime doloso somente se beneficiará com do livramento condicional cumprindo 1/2 ou 2/3, não podendo obtê-lo com apenas 1/3, conforme dispõe o artigo 89, incisos I, II e III, do CP;
  • a prescrição penal executória é aumentada em 1/3, nos termos do artigo 110, caput, do CP;
  • ser-lhe-á negado o benefício da transação penal, interpretando a norma do artigo 76, §2º, inciso I, da Lei 9.099/95, donde se retira que a condenação ali não deve prevalecer eternamente, mas pelo prazo de reincidência, a saber, 5 anos;
  • no mesmo sentido do tópico anterior, ser-lhe-á negado o benefício da suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89, caput, da Lei 9.099/95;
  • terá que cumprir pena exclusivamente junto com os outros detentos reincidentes - embora na prática isso pouco ou nunca ocorre -, nos termos do artigo 84, §1º da Lei de Execuções Penais;
  • obterá o benefício da saída temporária somente com o cumprimento de 1/4 da pena e não, no mínimo legal, de 1/6, segundo dispõe o artigo 123, inciso II, da LEP;
  • é uma das hipóteses em que se admite a prisão preventiva, conforme prescreve o artigo 313, II, do CPP.

Some-se à esses efeitos o fato de o sujeito, egresso, tiver a oportunidade de trabalhar, mas para isso for-lhe exigido uma Certidão de Reabilitação (artigo 91 do Código Penal), com o escopo de verificar se o mesmo se apresenta quite com a justiça. A despeito de ser cediço que certidão criminal somente pode ser utilizada para fins de instrução criminal, muitas empresas exigem essa Certidão de Reabilitação. Caso o egresso a apresente, significa que está em dia com a justiça. Por outro lado, não a apresentando, presume-se não estar, e, por consequência, terá sua vaga preenchida por outra pessoa, o que, convenhamos, não será difícil encontrar por aí.


5 NATUREZA JURÍDICA DA MULTA  PENAL E COMO ELUCIDAR A QUESTÃO

Como descrito nesse trabalho, a execução prolongada da pena de multa traz grandes prejuízos ao réu que não tem condições financeiras de pagá-la. Diante dessa realidade, cumpre ao intérprete e aplicador do direito fornecer caminhos que possam mudar essa situação fática, adequando-a às normas constantes da Constituição Federal. 

Com a edição da Lei 9.268/98 muito se discutiu sobre a pena de multa. Primeiramente, a discussão centrou-se mais na competência para sua cobrança, tendo-se pacificado que compete às Procuradorias da Fazenda Pública promoverem a sua execução.

Entretanto, em doutrina também se debateu a possibilidade de ter passado a multa criminal à condição de dívida de valor (crédito de natureza não tributária), conforme ensina MOREIRA (2001), a despeito de a maioria caminha no sentido de que a multa penal continua como uma espécie de pena (BITENCOURT, 2004).

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No que tange o posicionamento da primeira corrente, tem-se que não há como prosperar na medida em que a Constituição Federal é de clareza insofismável ao prever, no artigo 5º, inciso XLVI, “c” (e também o artigo 49 do Código Penal), a multa de origem criminal como pena. E, note que o constituinte originário, no preceito citado, disse que a lei deverá regular a individualização da pena e adotará, entre outras, a de multa, demonstrando inequívoco mandado ao legislador infraconstitucional e não apenas uma faculdade, que deixaria a seu critério criar ou não as penas.

Nesse sentido, considerar a multa criminal, já de antemão, como dívida de valor seria interpretação contrária à Lei Fundamental. Assim fosse, o artigo 51 do Código Penal estaria eivado de inconstitucionalidade e, como norma federal que é (redação dada pela Lei 9.268/96), deveria ser objeto de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) para ser expurgado do ordenamento jurídico pátrio.

Entretanto, entendemos, sim, que o mencionado dispositivo deve ser objeto de ADI ou ADC (ações são ambivalentes), mas para que o Supremo Tribunal Federal lhe confira interpretação conforme à Constituição Federal.

O referido princípio prevê que diante de uma norma polissêmica (dotada de mais de uma interpretação), o exegeta deve procurar aplicar o sentido que mais se coadune com a Constituição e, ao mesmo tempo, afastar aquele que seja contrário aos cânones constitucionais.

Dessa forma, intérprete e aplicador do direito ao se depararem no caso concreto com os artigo 51 do Código Penal (norma polissêmica), devem interpretá-lo de acordo com o artigo 5º, XLVI, “c”, da CF, para dar aplicação à esta norma constitucional, mas também de forma a compatibilizar aquele dispositivo com o restante da Constituição, como por exemplo, com as normas que prescrevem a individualização da pena (artigo 5º, XLVI, caput), a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), o devido processo legal substantivo (princípio da proporcionalidade – artigo 5º, LIV). Neste ponto, essa interpretação acaba por esbarrar em outro princípio de exegese constitucional, qual seja, o da unidade da Constituição (LENZA 2009), que aduz dever ser a Lei Fundamental sempre interpretada em sua globalidade, ou seja, deve-se procurar harmonizar as eventuais tensões existentes entre as normas constitucionais.

É bem por isso que entendemos que o lapso em que a multa criminal permanece com a qualificação de jurídica de pena é até o cumprimento da pena privativa de liberdade, prazo que o réu tem para cumprí-la, voluntariamente (artigo 50, CP) ou através da execução judicial. Após esse ínterim, deve-se considerar a multa de origem criminal não mais como pena, mas como dívida de valor, passando a integrar a dívida ativa da Fazenda Pública.

Obviamente, não se trata de um crédito de origem tributária, vez que a dívida ativa da Fazenda Pública à apenas este não se resume. Compreende, portanto, o crédito de natureza não tributária.

Nesse passo, vale transcrever os dispositivos legais que respaldam esse pensamento:

“Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias(...)” - §2º do artigo 39 da Lei 4.320/64 (grifo nosso);

“Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964(...) – artigo 2º, caput, da Lei 6.830/80 (grifo nosso);

(...)

§ 2º - A Dívida Ativa da Fazenda Pública, compreendendo a tributária e a não tributária, abrange atualização monetária, juros e multa de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato” - §2º do artigo 2º da Lei 6.830/80 (grifo nosso).

Diante disso, após o cumprimento da pena privativa de liberdade, deve o juiz da Execução Criminal declarar extinta a punibilidade da pena de multa, deixando a cargo da Fazenda Pública promover ou continuar a execução desse multa de origem criminal.

Nesse passo, a partir de então começam a contar os cinco anos para efeito de primariedade do réu de que fala o artigo 64, inciso I, do Código Penal. Nesta hipótese, fica claro que a multa criminal não estará prolongando o tempo de reincidência do réu.

Em um País em que a população carcerária, em sua grande maioria tem baixo grau de escolaridade, com mão de obra de baixa qualificação e carente de recursos financeiros, não há como admitir que a pena de multa continue a prolongar uma execução criminal.

Se já transcorrido tal ínterim, a expressão “criminal” apenas significa que é uma multa proveniente de uma sentença penal condenatória, como consequência da violação de uma norma penal que a estabelece em seu preceito secundário.

Trata-se, portanto, de medida que visa efetivamente aplicar a Constituição Federal, que prevê, entre outros princípios, o da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), que aqui não está sendo banalizado, mas fielmente concretizado na medida em que obsta a ocorrência múltipla de efeitos tão nefastos de uma reincidência criminal na vida do condenado, se relacionando com seu próprio jus libertatis.

Outrossim, a perduração prolongada da multa criminal, traz à baila a aplicação do princípio da proporcionalidade ou, nas palavras de Canotilho, “princípio da proibição do excesso” (LENZA, 2009), que é corolário do princípio do devido processo legal, em sua acepção substantiva, inserido no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal. Em análise aos seus sub-princípios (GUERRA, 2005), poder-se-ia dizer que até tal execução até poderia fomentar o fim pretendido (análise da adequação), qual seja, de compelir o apenado a pagar a “pena de multa”. Entretanto, tal medida não é necessária, vez que há no ordenamento jurídico medida menos gravosa capaz de fomentar este mesmo fim, a saber, a execução pela Fazenda Pública. Como a análise desses sub-princípios é prejudicial nem seria necessário analisar o terceiro elemento, a proporcionalidade em sentido estrito, que prevê a correspondência entre o meio utilizado e o fim obtido, ou seja, o resultado obtido dever ser proporcional à carga coativa utilizada. Mesmo que a análise da necessidade lograsse obter um juízo positivo, a proporcionalidade em sentido estrito não o lograria, vez que os resultados obtidos com essa execução prolongada da multa criminal são quase nulos enquanto a carga coativa imposta ao apenado é excessiva.

Na linha de raciocínio exposta neste trabalho, dignas de aplausos são as recentes decisões esposadas pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que demonstram após cumprida a pena privativa de liberdade, não pode o processo criminal continuar indefinidamente em execução por conta do inadimplemento da multa criminal. Vejamos:

RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO PENAL. ART. 51 DO CÓDIGO PENAL.CUMPRIMENTO INTEGRAL DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. SANÇÃO PECUNIÁRIA PENDENTE DE PAGAMENTO. DÍVIDA DE VALOR. LEGITIMIDADE DA FAZENDA PÚBLICA. ARQUIVAMENTO DA EXECUÇÃO CRIMINAL. 1. Embora a multa ainda possua natureza de sanção penal, a nova redação do art. 51, do Código Penal, trazida pela Lei n.º 9.268/96, determina que após o transito em julgado da sentença condenatória, a pena pecuniária deve ser considerada dívida de valor, saindo da esfera de atuação do Juízo da Execução Penal, e se tornando responsabilidade da Fazenda Pública, que poderá ou não executá-la, de acordo com os patamares que considere relevante. 2. O Juízo da Execução, portanto, após o cumprimento integral da pena privativa de liberdade, ainda que pendente o pagamento da pena de multa, deve extinguir o processo de execução criminal que, por óbvio, não pode subsistir indefinidamente em razão da falta de interesse da Fazenda Pública em executar a sanção pecuniária de valor irrisório. 3. Recurso desprovido. (STJ - REsp 832267/RS, Rel. Ministra  LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 20/03/2007, DJ 14/05/2007 p. 385) (grifo nosso);

Agravo regimental. PENAL. EXECUÇÃO. CUMPRIMENTO INTEGRAL DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. MULTA. INADIMPLEMENTO. EXTINÇÃO DO PROCESSO. POSSIBILIDADE. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que não contraria o art. 51 do Código Penal a decisão que julga extinto o processo de execução penal, após cumprimento da pena de liberdade, quando o apenado ainda não adimpliu a dívida de valor oriunda da pena de multa fixada na sentença condenatória. Precedentes. 2. Resta evidente que não há razão para se manter em aberto o processo de execução criminal, se, em seu bojo, não puder ocorrer a execução da pena de multa. 3 . Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - AgRg no REsp 890961/RS, Rel. Ministra  JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), SEXTA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 09/06/2008) (grifo nosso);

Pena privativa de liberdade (cumprimento integral). Punibilidade (extinção). Multa criminal (inadimplemento). Cobrança (execução fiscal). Caráter extrapenal (Lei nº 9.268/96). 1. Com o advento da Lei nº 9.268/96, a multa criminal passou a ser considerada dívida de valor, devendo ser cobrada por meio de execução fiscal, no juízo especializado para a cobrança da dívida, e não no da vara de execuções penais. 2. Com a nova redação do art. 51 do Cód. Penal, ficaram revogadas as hipóteses de conversão da multa em pena privativa de liberdade. Tal a circunstância, só se pode atribuir à multa o caráter extrapenal. 3. No caso, cumpriu-se integralmente a pena privativa. Assim, ainda que pendente de pagamento a multa, há de se declarar extinta a punibilidade penal. 4. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no Ag 698137/RS, Rel. Ministro  NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 05/12/2006, DJ 05/02/2007 p. 407) (grifo nosso).

Vale notar, nesse último julgado a posição aduzida pelo Ministro Naves (2006) sobre o caráter extrapenal da multa, oriunda de sentença penal condenatória. Nesse sentido, achamos por bem transcrever um trecho de seu voto que demonstra o entendimento:

“Ora, se a cobrança da pena de multa não há de ocorrer no âmbito da execução penal, que razão haveria para manter-se ativo o processo de execução criminal? Desde que revogadas as hipóteses de conversão da prestação pecuniária inadimplida em pena privativa de liberdade, não há outro caráter a se atribuir à multa senão o caráter extrapenal. Foi-lhe retirado o caráter punitivo, e essa foi uma obra do legislador ordinário. Tal a circunstância, não é de se aguardar o pagamento da multa para a extinção da punibilidade, porque, afinal, já ocorreu o cumprimento integral da pena”. (grifo nosso).

Embora não concordemos integralmente com o posicionamento acima transcrito, vez que retirar sempre o caráter de pena da multa criminal, por todo o tempo, afrontaria a Constituição Federal, tem-se que o resultado prático é o mesmo por nós defendido, a saber, não pode haver processo de execução criminal ad aeternum por inadimplemento da multa penal.


CONCLUSÃO

Diante do exposto, vê-se a fundamental importância do papel do intérprete e aplicador do direito diante do caso concreto. Não há mais como realizar uma interpretação simplista e retrógrada das normas constitucionais e infraconstitucionais e, pior, ter como consequência algo que não irá acarretar o princípio maior do Direito, qual seja, a justiça.

Não se pode mais aceitar que diante de um país como o Brasil, de elevada desigualdade social, falta de oportunidades, em que muitos, sem outra saída, ingressam na empreitada delituosa, tenham suas execuções criminais se estendendo por longos períodos, pela falta de pagamento da multa imposta. Está-se falando aqui de recursos financeiros, ou, da falta deles, que tem gerado graves prejuízos, conforme acima explicitado, ao réu condenado e piores ainda aquele que volta a delinquir, este dificilmente escapando de ser reincidente por conta dessa execução “ad eternum”.

Nesse sentido, entendemos ser urgente a necessidade de uma releitura da norma constante do artigo 5º, inciso XLVI, alínea “c” da Lei Fundamental, e a consequente aplicação deste raciocínio ao cotidiano forense, de forma a extinguir um sem número de execuções criminais que abarrotam as prateleiras dos cartórios dos Fóruns por conta do inadimplemento da multa criminal.


REFERÊNCIAS

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MENDES JÚNIOR, Paulo Elias Severgnini. Execução da multa penal “ad aeternum”?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3586, 26 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24298. Acesso em: 18 abr. 2024.

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