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A boa-fé pré-contratual nos contratos internacionais segundo os princípios Unidroit

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20/05/2013 às 09:40
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Os princípios Unidroit são, em via de regra, aceitos como princípios gerais de direito (art. 38 do estatuto da Corte Internacional de Justiça). Nesse sentido, têm por função superar as críticas de vagueza em virtude da excessiva abstração da Lex Mercatoria.

INTRODUÇÃO

Em face de um contexto contemporâneo de um mundo globalizado, em que as relações de troca ocorrem em nível transacional, sob a influência de mais um ordenamento jurídico, verifica-se um clima de incerteza e instabilidade jurídica. Diante disso, urge a harmonização das regras de direito do comércio internacional para garantir a maior fluidez da circulação de bens e capital, bem como a quebra das barreiras ao comércio, originadas em virtude do pluralismo político de Estados e, consequentemente, de ordenamentos jurídicos, culturas e usos e costumes.

Os princípios Unidroit, elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (conhecido como Unidroit) surgem, exatamente, como iniciativa no sentido de harmonizar as regras do direito do comércio internacional. Para isso, além da codificação de princípios referentes aos contratos comerciais internacionais adotados e aceitos na maior parte dos ordenamentos jurídicos existentes no globo, criou-se soluções para algumas das dificuldades mais verificadas nas relações de troca transacionais.

Dentre os princípios inspiradores dos princípios Unidroit está a boa-fé, que consiste no dever de lealdade entre as partes no desenvolvimento de suas atividades de comércio. Trata-se de um princípio geral amplamente reconhecido nos ordenamentos jurídicos domésticos, sobretudo, naqueles que seguem o modelo de Civil Law. Todavia, no que se refere à boa-fé, os princípios Unidroit, com objetivo de garantir maior ética, estabilidade e equilíbrio aos contratos comerciais internacionais, introduziram uma inovação. Trata-se da exigência de observância do princípio de boa-fé também na fase pré-contratual.

Sendo assim, busca-se, na presente obra, discorrer sobre a responsabilidade pré-contratual nos contratos internacionais do comércio segundo o modelo adotado pelos princípios Unidroit.  Contudo, para isso, será analisada preliminarmente a relação dos princípios Unidroit com a nova Lex Mercatoria. Em seguida, será feito um breve estudo acerca dos contratos internacionais do comércio. Feito esse breve estudo, far-se-á uma análise do conceito e das funções dos princípios Unidroit, após o que passar-se-á à análise da boa-fé contratual de acordo com os princípios Unidroit, para, enfim, chegar-se à responsabilidade pré-contratual.


I – A NOVA LEX MERCATORIA E OS PRINCÍPIOS UNIDROIT

Os Princípios Unidroit, cujo conceito será aprofundado nos capítulos que seguem, constituem uma iniciativa no sentido de uniformizar as regras de direito do comércio internacional com objetivo de auferir maior segurança jurídica e estabilidade para os agentes econômicos internacionais. Tais princípios preveem a sua própria aplicação a título de Lex Mercatoria, na medida em que encontram nesse instituto jurídico as bases de sua natureza e função. Nesse sentido, faz-se necessário, em primeiro lugar, um breve estudo acerca da Lex Mercatoria, a fim de se compreender a sua relação com os referidos princípios gerais de direito[1].

Para melhor compreender o fenômeno tão discutido da Nova Lex Mercatória, é fundamental que sejam feitas, preliminarmente, algumas considerações acerca da antiga Lex Mercatória, surgida a partir dos costumes comerciais disseminados pelos mercadores a partir dos séculos XI e XII. Na Idade Média, a atividade comercial desenvolvia-se em grandes feiras, onde comerciantes provenientes de várias nações, apesar de viverem sob a orientação de leis diversas e de se comunicarem por meio de línguas diferentes, submetiam-se às mesmas regras comerciais[2]

Com a queda do Império Romano, o mundo conhecido fragmentou-se. Sendo assim, no período imediatamente subsequente ao final do Império, não se haviam, até o momento, erradicado os diversos ordenamentos jurídicos nacionais. Por esse motivo, na celebração dos contratos entre os comerciantes da época, não havia a exigência de fazer-se menção a qualquer legislação nacional. Ao invés disso, eram aplicados os usos e as regras de comércio existentes naquele contexto[3].

A Lex Mercatoria possuía três características principais. Em primeiro lugar, sua existência não dependia de qualquer fonte nacional. Em segundo lugar, constituía um corpo legislativo, uma vez que, em seu conjunto, formava um sistema coerente de normas comerciais. E, por fim, seus mais importantes institutos legais tiveram origem na Alta Idade Média[4]. Portanto, a Lex Mercatoria tinha como função derrogar as normas de direito romano, aplicadas até então, no que se refere ás relações comerciais, substituindo-as por normas de origem consuetudinária, mais adequadas aos trâmites mercantis[5].

O sistema usado pelos comerciantes da Idade Média era dotado, inclusive, de fontes próprias. Dentre elas, destacam-se, sobretudo, os estatutos das poderosas cooperações mercantis, os usos e costumes comerciais e a jurisprudência dos tribunais de comércio[6].

Aliás, a criação de cortes, no período medieval, com o intuito de apurar conflitos de caráter comercial é um aspecto decisivo no que se refere à constatação da existência de um sistema de normas efetivo utilizado exclusivamente pelos mercadores medievais. Tais tribunais destinavam-se a julgar aqueles casos eminentemente comerciais, utilizando-se de normas especiais que se destacavam do ius commune. O nascimento dessas cortes proveio da necessidade de decisões rápidas e adequadas às práticas comerciais, uma vez que as atividades das feiras duravam por um curto período de tempo. Consequentemente, as disputas deviam ser resolvidas e executadas quase imediatamente. A supremacia e a competência dessas cortes eram amplamente reconhecidas pelas nações e nunca foi abertamente negada ou contestada pelas mesmas[7]. Afinal, conforme argumenta Lopez, nenhum governante do período seria capaz de negar que determinadas concessões temporárias eram necessárias para o bom funcionamento do mercado, o que era de estrema relevância para garantir a fluidez monetária e mercadológica[8].  Contudo, deve-se ressaltar que a originalidade do sistema era relativa. Afinal, os procedimentos utilizados pelas cortes especiais de comércio muito se aproximavam aqueles utilizados nos procedimentos sumários das cortes ordinárias[9].

Todavia, há doutrinadores que sustentam costuma existir um equívoco na definição da antiga Lex Mercatoria. Afirmam que, apesar de muitos autores defenderem que a Lex Mercatoria consistia em um sistema de direito apartado da ius commune, a realidade não era essa. Argumentam que a Lex Mercatoria teve, na verdade, suas origens no direito medieval inglês e que, ao contrário do que costuma ser disseminado, tratava-se de uma ramificação do ius commune, ou seja, não era independente da legislação local ordinária. Segundo tais doutrinadores, esse ramo do antigo direito inglês tinha por escopo garantir certos privilégios aos comerciantes no que se refere ao procedimento legal.  Dessa maneira, o termo Lex Mercatoria, ao menos até o século XVII não teria qualquer significado além desse[10].

Independentemente de a Lex Mercatoria ter se configurado, de fato, como um ramo do direito inglês ou como um efetivo complexo de normas comerciais não emanadas de nenhum ordenamento jurídico local específico que regulou o comércio, sobretudo na Europa, durante a Idade Média, a questão é que um sistema consuetudinário de normas comerciais existiu. E existiu em virtude da falta de capacidade do direito civil de atender satisfatoriamente às necessidades comerciais da época. Tratava-se assim, de um direito especial. Era um direito especial tanto no que se refere à sua origem quanto no que se refere aos princípios em que suas normas eram inspiradas e ao modo como era aplicado. A especialidade da Lex Mercatoria tendo-se em vista a sua origem relacionava-se ao fato de ser emanado de um grupo social determinado, ou seja, os mercadores. Ao mesmo tempo, era especial em razão dos princípios que a regulam pois se tratam de princípios destinados, especificamente, a facilitar a circulação de bens móveis e, consequentemente, da riqueza. Por fim, eram especiais quanto à sua aplicação pois, ao contrário do que se verificava em relação à outras normas jurídicas, se dava por meio da arbitragem e dos tribunais mercantis[11].

De acordo com o doutrinador Fabrizio Marrella, a relação entre direito civil e comercial dividiu-se em três fases. Na primeira, o direito comercial teria surgido como direito especial destinado a atender as lacunas da vida mercantil não supridas pelo direito civil. Em uma segunda fase, pela gradativa aplicação do direito comercial pelos “não comerciantes” teria se verificado um fenômeno de generalização da disciplina comercial. E por fim, em uma terceira fase, teria ocorrido a redução do direito comercial ao direito civil. Entretanto, não se deve confundir as relações comerciais com as relações meramente civis. Afinal, as relações tradicionalmente civis possuem um conteúdo econômico social simples. Por esse motivo, as indagações dos estudiosos do direito tendem a gravitar nos aspectos formais. Em contrapartida, as relações de caráter comercial são dotadas de uma maior complexidade econômica e, sendo assim, as indagações dos juristas devem ultrapassar o plano formal, estendendo-se ao plano técnico-econômico, o que exige uma preparação mais adequada do intérprete jurídico[12].

Atualmente, em um contexto de intensa globalização derivado, sobretudo, das revoluções industriais ocorridas a partir do século XIX, é possível verificar um aumento cada vez maior das relações comerciais internacionais. Em virtude desse fenômeno, muitos teóricos do direito têm defendido o nascimento de uma Nova Lex Mercatoria. A Nova Lex Mercatoria, nas palavras de Fabrizio Marrela seria: “un diritto creato dal ceto imprenditoriale, senza la mediazione del potere legislativo degli Stati, e formato da regole destinate a disciplinare in modo uniforme, al di là delle unità politiche degli Stati, i rapporti commerciali che si instaurano entro l´unità economica dei mercati”[13].

Enquanto o surgimento da antiga Lex Mercatoria remonta à Idade Média, em um contexto de atomização do poder político, a nova Lex Mercatoria surge em um mundo já dividido em Estados[14]. Sendo assim, ao contrário da antiga Lex Mercatoria, cuja origem precede o surgimento do Estado moderno, a Nova Lex Mercatoria teria se originado justamente para suprir as dificuldades atuais do comércio internacional derivadas de descontinuidade jurídica, ocasionada, por sua vez, pela divisão política dos mercados em uma pluralidade de Estados.[15]

A divergência de funções entre a nova e a antiga Lex Mercatoria é uma das razões pela qual há doutrinadores que arguem ser equivocada a terminologia nova Lex Mercatoria para descrever esse fenômeno atual. Afirmam que o uso do termo é inconsistente e não histórico, pois existem grandes diferenças tanto teóricas quanto no que se refere ao contexto social e econômico. Argumentam, ainda, que uma antiga Lex Mercatoria, como um corpo de normas não ligado a nenhum ordenamento jurídico nacional, que existiu 350 ou 700 anos atrás pode influenciar apenas minimamente as bases teóricas e valores práticos das regras comerciais do século XXI[16].

Em contrapartida, a doutrina dominante defende a existência da nova Lex Mercatoria, ainda que ressalvadas as divergências em relação à antiga. Afirma-se que o surgimento dessa nova Lex teria sido produto de uma série de fatores em conjunto. Um dos fatores que pode ser apontado é a difusão espontânea das práticas comerciais no mundo, o que deu origem a modelos contratuais internacionalmente uniformes, legítimos na maioria dos países em virtude da vigência do princípio da autonomia contratual. A difusão das práticas comerciais deu-se, ainda, graças às organizações internacionais de comércio e às multinacionais, também responsáveis pela imposição de práticas comerciais uniformes em todo o globo. Outro fator determinante para o nascimento de uma nova Lex Mercatoria são os usos e costumes do comércio internacional, ou seja, a repetida e uniforme observância das práticas de determinado setor comercial. Por fim, também a jurisprudência das câmaras arbitrais internacionais pode ser apontada como fator de produção da nova Lex Mercatoria[17].

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Entretanto, mesmo dentre os doutrinadores que acreditam na existência de uma nova Lex Mercatoria existem divergências. Discute-se, em primeiro lugar, até que ponto o direito dos Estados contrasta-se com o direito do comércio internacional de fonte não estatal ou até onde o direito interno cede espaço a esse sistema jurídico[18]. Para alguns autores, a nova Lex Mercatoria consiste, propriamente, em um conjunto de usos e costumes do comércio internacional que constituem um verdadeiro corpo de normas que o regulam. Tratar-se-ia, nesse sentido, de um direito objetivo da societas mercatorum desvinculado de um ordenamento jurídico nacional específico[19]

Todavia, de acordo com uma segunda corrente doutrinária, apesar de ser inegável a existência de uma nova Lex Mercatoria, a mesma não consistiria em um complexo de regras autônomas e autossuficientes, completamente independentes da atuação Estatal. Defendem a relevância da atuação dos Estados na conclusão de tratados, convenções, acordos internacionais bi ou plurilaterais entre nações ou, ainda, na elaboração de leis nacionais para disciplinar a matéria de direito do comércio internacional. Argumenta-se que os sujeitos econômicos que compõem a societas mercatorum são provenientes de uma diversidade muita grande de nações e, consequentemente, possuem tradições culturais e sociais muito distintas. Alega-se que algumas das regras internacionais provenientes de operadores comerciais diversos podem ser, inclusive, contraditórias. Tal circunstância tenderia a resultar em incerteza jurídica o que prejudica a clareza nas relações de troca internacional. Sendo assim, em certas ocasiões, seria praticamente impossível encontrar um elemento comum capaz de ser apontado como regra uniforme. Além disso, argui-se que tais regras provenientes do comércio internacional são demasiadamente incompletas, bem como não autônomas em relação aos sistemas jurídicos nacionais. A exemplo disso, apontam a exigência de os usos e costumes internacionais estarem de acordo com as normas domésticas de ordem pública para que possam ser aplicadas internamente. Outro exemplo da não independência dessas normas, segundo essa corrente doutrinária, seria o fato de as regras da nova Lex Mercatoria serem observadas por serem, na realidade, acolhidas, em muitos casos, pelos ordenamentos jurídicos nacionais. Por fim, afirma-se que a atuação dos Estados seria relevante em virtude da falta de um sistema sancionatório certo e aplicável a determinada infração específica a um das regras da nova Lex Mercatoria[20].

Questiona-se, ainda, até que ponto a nova Lex Mercatoria é, efetivamente, capaz de resolver o problema de falta de uniformidade jurídica da normas que regulam o comércio internacional. Para alguns, trata-se de um solução indiscutivelmente eficaz. Para outros, a evocação de uma série de normas de diferentes proveniências pode resultar em uma difícil coordenação entre as mesmas. O resultado disso pode configurar-se em um quadro jurídico incoerente, incompleto e lesivo aos interesses dos agentes comerciais internacionais economicamente menos poderosos[21].

Apesar das divergências doutrinárias, um dado que nenhum jurista pode contestar é que, de fato, a uniformização, ainda que limitada, das regras que regulam o comércio internacional é necessária a fim de garantir maior segurança jurídica e estabilidade nas relações entre os operadores econômicos internacionais. A nova Lex Mercatoria, em maior ou menor grau e, ainda que deficitariamente, cumpre essa função. Nesse contexto, os Princípios Unidroit surgem como uma espécie de forma de codificação dessa nova Lex Mercaroria. Nesse sentido, qualquer que seja a opinião da doutrina a respeito do fenômeno ora estudado é um dado de fato que os princípios citados se autodeclaram aplicáveis, na riqueza de seu conteúdo, a título de Lex Mercatoria[22].


II – OS CONTRATOS INTERNACIONAIS DO COMÉRCIO

A prática do comércio internacional que surge a partir do século XIX não se confunde com as práticas comerciais de outrora, na medida em que as trocas deixam de ser lineares para tornarem-se complexas. Na atualidade, os contratos deixam de produzir seus efeitos somente no âmbito privado e passam a afetar também a esfera pública, uma vez que tendem a repercutir na dimensão social e econômica dos Estados.  Afinal, boa parte dos contratos internacionais, a exemplo daqueles que tratam de transferência tecnológica, são fator de imensurável influência no desenvolvimento dos países. Surge, nesse contexto, o conceito de obrigação como processo que não se exaure com a execução. Conclui-se, portanto, que, dada a sua complexidade, não é possível conferir o mesmo tratamento aos contratos internacionais e aos contratos afetados por apenas um único ordenamento jurídico. Por esse motivo, é relevante saber diferi-los para conferir a cada qual o seu tratamento jurídico adequado.

O comércio internacional desenvolve-se por meio do instrumento contratual. Contrato nada mais é senão o acordo de vontades ao qual o direito confere efeitos jurídicos. Sobre esse aspecto não existe qualquer indagação. A dúvida surge quando se trata de definir quando um contrato é internacional ou não. De acordo com o direito internacional privado, é internacional o contrato que apresente um elemento estrangeiro que resulta em conflito de leis no espaço[23]. Sob essa perspectiva, seria internacional aquele contrato que apresentasse um elemento de estraneidade no que se refere, ao menos, a uma das seguintes hipóteses: nacionalidade das partes, sede de atuação uma das partes, local de constituição da pessoa jurídica, local de conclusão do contrato, local de execução do contrato, local da situação do bem objeto do contrato, a moeda utilizada para o pagamento e o local do pagamento[24].

Entretanto, muitas vezes, há dificuldade prática na aplicação dessa regra. Afinal, o elemento estrangeiro, para que seja capaz de revestir o contrato de caráter internacional, deve ser dotado de uma certa relevância. Além disso, a estraneidade deve sempre ser apreciada em relação à ordem jurídica que virá a reger o contrato[25].

Há, apesar da complexidade da tarefa, autores que tentam auferir aos contratos internacionais alguns elementos caracterizadores determinados. Alguns afirmam que será internacional o contrato que se enquadre em uma das seguintes situações: a) as partes tenham sede em Estados diversos ou, ainda, em Estado diverso da sua nacionalidade; b) no que se refere a contratos à distância, a oferta e a aceitação tenham sido emanadas por contratante com sede em Estado diverso; e c) ao menos uma das prestações que caracterizam o contrato deva ser executada em Estado outro que não aquele onde o contrato foi concluído. Todavia, tais elementos caracterizadores dos contratos internacionais não são unanimemente acolhidos pela doutrina, perpetuando-se, dessa maneira, a dificuldade de elaboração de uma disciplina que leve em consideração as hipóteses em que existam contratantes que se comuniquem por meio de línguas diferentes, que provêm de países e culturas distintos e que têm conhecimento de sistemas jurídicos e de usos diversos[26].

Ao final, é possível concluir, ao menos, que, sobre os contratos internacionais, incide, necessariamente, mais de um ordenamento jurídico. Essa circunstância traz à tona uma série de questões. Um primeiro problema que se apresenta é em relação à lei aplicável ao contrato. Afinal, não existem, salvo em casos excepcionalíssimos, normas supranacionais específicas aplicáveis às relações comerciais entre empresas de países distintos. Sendo assim, caso as partes não façam menção à lei aplicável, as normas que regularão o contrato serão aquelas a serem determinadas pelas regras de direito internacional privado de cada país envolvido. O inconveniente é que tais normas de direito internacional privado podem ser tão díspares entre si que não se consiga encontrar um ponto de convergência para a individualização pacífica da lei aplicável[27].  Para evitar tal situação, é preferível que as próprias partes definam a lei que regerá o contrato, já que a maioria dos ordenamentos jurídicos reconhece o princípio segundo o qual as partes têm liberdade de escolher a lei aplicável a um contrato internacional[28]. Relevante, ainda, é que os contratantes decidam sobre o modo de resolução de eventuais conflitos, podendo ser a controvérsia submetida a tribunais estatais ou a um sistema de arbitragem privado[29][30].

Além das normas dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados, os contratos internacionais estão sujeitos a outras regras. Dentre elas destacam-se as normas estabelecidas por tratados e convenções internacionais, os costumes e usos das práticas do comércio internacional e os princípios gerais do direito do comércio internacional.

Os tratados e convenções internacionais são aqueles acordos celebrados entre Estados (bilateral ou multilateralmente). Em se tratando da matéria de direito do comércio internacional, tal iniciativa decorre da necessidade de uniformização das regras que regulam as trocas internacionais em prol de maior fluidez mercadológica e monetária.

Em se tratando dos usos e costumes, pode-se dizer que não restam dúvidas que compõem o conjunto de regras destinado a regular os contratos internacionais. Afinal, os usos e costumes são amplamente reconhecidos como fonte de direito tanto nos ordenamentos jurídicos nacionais[31] quanto nos tratados e convenções internacionais[32]. Além disso, também os árbitros internacionais devem levar em conta os usos e costumes em suas decisões[33].  Todavia, para serem assim considerados, os usos e costumes do comércio internacional devem preencher alguns requisitos, quais sejam: a) que os usos e práticas tenham validade de instrumento para integrar uma vontade não claramente expressa; b) as práticas e comportamentos dos quais o uso se compõe façam parte dos hábitos instaurados entre as partes ou constatados e reiterados em um determinado contexto de mercado ao ponto que não seja necessário citá-lo; e c) não contrariem uma expressa vontade das partes, nem prevaleçam sobre normas inderrogáveis da lei aplicável ao contrato[34].

Quanto aos princípios gerais, deve-se, preliminarmente, observar que é pacífico na doutrina que o direito serve-se de princípios gerais como instrumento para nortear um ordenamento jurídico para um ponto de convergência. Ou seja, os princípios gerais de direito têm a função de impedir que, em um mesmo ordenamento, existam regras incoerentes entre si. São, portanto, os princípios gerais que estão nas bases das relações obrigacionais. Acredita-se, nesse sentido, que a disciplina dos contratos, em diferentes sistemas legais do mundo, baseia-se em “valores comuns”. A exemplo disso, é possível citar a liberdade contratual, bem como a necessidade de preservação dos negócios jurídicos por razões de economia e de estabilidade das relações entre os agentes econômicos internacionais.

Contudo, deve-se observar que não se confundem, os princípios gerais reconhecidos pela nação civil com os princípios de direito internacional. Os primeiros tratam-se daqueles reconhecidos pelo artigo 38 do estatuto da Corte Internacional de Justiça. São aqueles princípios que são comuns à maioria dos ordenamentos jurídicos internos, ou seja, são princípios domésticos suscetíveis de transposição no ordenamento jurídico internacional. Tratam-se, portanto, de princípios existentes e aplicáveis na grande maioria dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados, ou, ao menos, nos ordenamentos jurídicos daqueles países mais representativos no cenário internacional contemporâneo. O mesmo não se verifica em relação aos princípios de direito internacional, que são aqueles provenientes diretamente da esfera internacional e não da doméstica. Os princípios do direito do comércio internacional remontam à primeira hipótese, ou seja, aos princípios gerais reconhecidos pela nação civil[35].

Tendo em vista as dificuldades de promoção do comércio internacional em face das diversidades linguísticas, das diferentes categorias conceituais e de sistemas jurídicos conflitantes, muitos estudiosos do direito têm se dedicado à identificação dos princípios gerais do direito do comércio internacional. Buscam, sob essa perspectiva, não uma definição fictícia de um sistema de valores comuns, mas visam, sim, definir um quadro que reflita, de forma efetiva, as práticas e intenções dos agentes comerciais com o objetivo de facilitar as trocas dos bens serviços e capitais em nível internacional[36]. O Unidroit trata-se de um instituto criado para esse fim, conforme será visto adiante.

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Sobre a autora
Erika Nicodemos

Advogada atuante na área cível, sócia do escritório Erika Nicodemos Advocacia, graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pelo Centro de Extensão Universitária, em convênio com a Universidad Austral de Buenos Aires. Pós-graduada em Direito Empresarial e especialista em Direito Digital e Planejamento Sucessório pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Mestre em Direito Internacional Privado pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza. Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família e das Sucessões da Ordem dos Advogados do Brasil, São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICODEMOS, Erika. A boa-fé pré-contratual nos contratos internacionais segundo os princípios Unidroit. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3610, 20 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24483. Acesso em: 19 abr. 2024.

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