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A controvérsia Dicey-Hauriou sobre os sistemas de controle jurisdicional da Administração Pública

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15/06/2013 às 07:58
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Hauriou distingue “função administrativa” de “regime administrativo”, universalizando a existência da primeira em todos os Estados modernos ocidentais e reduzindo a da segunda apenas à França. Dicey acertou ao afirmar que o sistema do contencioso administrativo tendia a decidir questões de modo mais favorável à administração.

1 INTRODUÇÃO

A história do contato entre o direito inglês da common Law e o direito romano-germânico da Europa continental é, com freqüência, marcada pelo signo da incompreensão mútua. Já lamentava o grande juscomparatista René David em sua conhecida obra “Os grandes sistemas do direito contemporâneo”, a presença de “tantas opiniões errôneas e preconceitos nos países do continente europeu acerca da teoria das fontes do direito inglês”[1], atentando para a necessidade de se melhor conhecê-lo. Idêntica atitude, contudo, se verifica do outro lado do Canal da Mancha, como o próprio David admite: 

“o jurista inglês – que subestima a continuidade dos direitos continentais, convencido de que a codificação provocou uma ruptura com a tradição destes direitos – gosta de valorizar a continuidade histórica do seu direito; este surge-lhe como sendo produto de uma longa evolução que não foi perturbada por nenhuma revolução; orgulha-se desta circunstância, da qual deduz, não sem razão, a prova da grande sabedoria da common Law, das suas faculdades de adaptação, do seu permanente valor e de qualidades correspondentes nos juristas e no povo inglês”.[2]

Um dos capítulos desta querela – que é, por seu turno, capítulo de outra, muito maior, entre Inglaterra e continente europeu – é a controvérsia Dicey-Hauriou acerca dos sistemas de controle jurisdicional  da Administração Pública. Neste confronto entre os dois grandes juspublicistas – o primeiro inglês, o segundo francês – vemos todos os ingredientes destas “opiniões errôneas e preconceitos” de que fala David, oriundas de concepções muito distintas de Direito, de Estado, de Administração Pública e da posição do cidadão diante dela. Neste confronto, não falta algo (ou muito) daquele velho orgulho nacional destes dois países, antagonistas quase milenares, orgulho de quem é cioso de sua tradição jurídica e da validade do que defende.

Que tradições são essas? Inicialmente, para que as possamos entender, é preciso relembrar de alguns pontos relevantes da diferença entre os sistemas jurídicos da Inglaterra (e dos países colonizados pelo Império Britânico) e da França (que, também, a de toda a Europa continental.

Como se sabe, o sistema inglês da “common Law” é estruturado com base na jurisprudência e nos casos de precedência, com os tribunais assumindo papel fundamental em sua formação. Por sua vez, o francês, sendo, como todos os seus coirmãos da Europa continental, descendente direto do Direito Romano, tem a lei como fonte de direito e uma influência muito maior da doutrina e dos códigos do que da jurisprudência, baseando-se sobretudo em princípios gerais ordenadores e numa antiga tradição de interpretação da norma.

Se pudéssemos escolher uma frase para resumir o “espírito” do Direito inglês e sua oposição à família romano germânica, lembraríamos de mais este trecho de René David: “O direito inglês não é um direito de universidades nem um direito de princípios; é um direito de processualistas e práticos”[3].

Roscoe Pound, em sua obra clássica sobre as liberdades constitucionais[4], define assim os começos do direito inglês e a diferença deste para o direito romano, dando-nos, assim, importantes pistas de como esta diferença se verificará a seguir:

“[No Império Romano] a teoria da ordem jurídica era administrativa. O ajustamento das relações e a ordenação da conduta estavam nas mãos dos funcionários administrativos que forneciam instruções escritas aos juízes sobre a maneira de decidir (...)”.

Segue assim o grande constitucionalista americano:

“Enquanto na teoria romana final a lei provinha do imperador – era feita por ele – na teoria inglesa era preexistente, e o rei ou os seus juízes a achavam e aplicavam aos casos que tinham ante si como algo obrigatório tanto para eles como para as partes. (...) No sistema romano moderno (...) são exortações dirigidas aos órgãos do governo quanto à maneira como devem agir. No sistema da lei comum são preceitos da lei suprema da terra, obrigando igualmente cidadão e funcionário e posta a vigorar pelos tribunais por processos ordinários a pedido das pessoas agravadas”.

Esta distinção terá importante conseqüência para a compreensão da polêmica em questão. É o que veremos a seguir, com a exposição dos dois grande sistemas de controle jurisdicional da administração pública.


2 O sistema do contencioso administrativo

O sistema de contencioso administrativo é considerado o primeiro sistema administrativo moderno e está no centro da origem da própria disciplina do Direito Administrativo.[5] Seu surgimento está profundamente ligado à experiência francesa pós-revolução de 1789, com a chegada de uma nova elite dirigente que encontra resistência da nobreza descontente com a perda de seus privilégios. Tal resistência se revelou, no seio da Administração Pública, nos antigos tribunais comuns, onde a nobreza tinha grande influência. A fim de que estes tribunais não atrapalhassem o funcionamento das reformas de toda ordem que o Executivo recém empossado (o que, aliás, já faziam com o Executivo do “Ancién Regime”) promoveu-se uma interpretação do princípio da separação de poderes muito peculiar e distinta da existente na Inglaterra: da mesma forma que o Poder Executivo não pode interferir no Judiciário, também o Judiciário não poderia interferir nas atividades do Executivo[6].

Assim, lei de agosto de 1790 diz, de modo bem claro: “as funções judiciárias são distintas e permanecerão separadas das funções administrativas. Não poderão os juízes, sob pena de prevaricação, perturbar, de qualquer maneira, as atividades dos corpos administrativos”[7].

A Constituição de 1791, por sua vez, afirmava: “os tribunais não podem invadir as funções administrativas ou mandar citar, para perante eles comparecerem, os administradores, por atos funcionais”.[8]

Por fim, em 1799, são criados os Conselhos de Estado. Em princípio com natureza apenas consultiva, hoje funcionam como um verdadeiro supremo tribunal administrativo ao qual os tribunais locais franceses se sujeitam. Sua principal atribuição é atuar como órgão jurisdicional nos litígios em que é interessada a Administração ou seus agentes, além de servir como órgão consultivo[9]. A importância do Conselho é tanta que Celso Antonio Bandeira de Mello opina ser “o órgão responsável pela formulação das bases ideológicas do Direito Administrativo, as quais se espraiaram pelos países continentais europeus e, por via destes, aos por eles culturalmente influenciados”[10]

Concordando ou não na integralidade com a opinião do mestre[11], é fato que o Conselho de Estado personifica aquilo que o sistema francês tem de mais característico isto é, a existência de um contencioso administrativo, destinado a tratar de modo diferenciado os litígios referentes à Administração Pública. Mais do que isso: sendo revestidas de interesse público, órgãos e agentes administrativos têm uma série de privilégios e “poderes exorbitantes” (“pouvoirs exorbitants”, como os chamou a doutrina francesa) a fim de poder satisfazer as vontades coletivas da maioria da população[12].

Além disso, como diz Diogo Freitas do Amaral, a formação deste novo conjunto de normas tem origem também nas características da família jurídica romano-germânica:

“a tradicional distinção, nos países da família romano-germânica, entre direito público e direito privado permitiu facilmente o nascimento de um novo ramo do direito público, ao mesmo tempo definido em função dos pouvoirs exorbitants que conferia à Administração Pública”[13].  

Tem-se,assim, o nascimento do Direito Administrativo,

“(...) um conjunto de normas jurídicas de Direito Público, bem diferentes das do direito privado; diferentes para mais, na medida em que a Administração é dotada de poderes de autoridade, de que os particulares não dispõem; e diferentes para menos, na medida em que a Administração é sujeita a deveres e restrições que tão-pouco oneram a vida dos particulares (....). É o droit administratif”[14].

Droit administratif, que – nós acrescentamos, concluindo e sintetizando – surge a partir das necessidades de um momento, potencializado por certos aspectos da tradição jurídica da qual fazia parte. E mantém-se assim, em seus caracteres essenciais, até os dias de hoje.


3  O sistema de jurisdição única

Ao contrário do sistema francês, que prevê a existência de uma justiça administrativa separada do Poder Judiciário e unida ao Executivo, o sistema britânico de jurisdição única sujeita os agentes e órgãos da administração pública aos mesmos tribunais comuns (courts of law) e ao mesmo direito comum em que são julgados os particulares do país, sem qualquer privilégio, prerrogativa ou “poder exorbitante”. As normas sobre servidores públicos, por exemplo, são as mesmas que incidem sobre o vínculo empregatício do setor privado [15].  Impera, aí, o conceito de “rule of law”, característico do sistema jurídico britânico e de significado múltiplo, sobre o qual discorreremos mais à frente.

Assim, no que respeita à separação de poderes, os britânicos adotaram uma interpretação distinta da dos franceses e que está, por sua vez, mais em consonância com o presente na formulação original feita por Montesquieu, onde o Judiciário tem legitimidade para julgar os atos da Administração. Embora o sistema de jurisdição única seja característico da common law anglo-saxônica, ele está presente, também, em alguns países cujo direito é de família romano-germânica, como é o caso do Brasil e, também, da Romênia, Bélgica, México, dentre outros.

Fica, assim, claríssima a diferença entre estes dois sistemas tratados aqui, em sua forma pura, à maneira, repetimos, de um tipo ideal weberiano. Tanto o sistema francês como o inglês não são estanques, como se verá em breve. À guisa de simplificação e explicação da matéria, elencamos aqui algumas diferenças para melhor clarificar a questão[16]:

Quanto à organização administrativa, o sistema francês é centralizado, e o sistema inglês, descentralizado;

Quanto ao controle jurisdicional da Administração, o sistema inglês entrega-o aos tribunais comuns, e o francês, aos tribunais administrativos;

Quanto às garantias jurídicas dos administrados, a Inglaterra confere aos tribunais comuns amplos poderes de injunção em face da Administração, que lhes fica subordinada da mesma forma que a generalidade dos cidadãos, enquanto a França só permite aos tribunais administrativos que

A controvérsia Dicey-Hauriou diz respeito a estes dois sistemas distintos, e engloba em seu bojo outras questões acerca do Direito Público daqueles dois países. Passamos, agora, a analisá-la.

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4  O PONTO DE VISTA DE A.V. DICEY

Albert Venn Dicey (1835 – 1922), renomado constitucionalista inglês, publicou em 1885 um de seus livros mais importantes, “Introduction to the Study of the Law of the Constitution”, em cujo capítulo XII desenvolve um estudo comparativo entre os sistemas administrativos inglês e francês.

O próprio título do capítulo dá-nos logo à partida o tom da análise de Dicey: “Rule of Law confronted with ‘Droit Administratif”[17]. É um verdadeiro confronto, um duelo de opostos inassimiláveis: e opõem-se a própria matéria do Direito Administrativo e a rule of law inglesa, conceito que, nas palavras do próprio Dicey, significa “(...)Todo homem, qualquer que seja sua posição ou situação, está sujeito à lei comum do reino e sujeito à jurisdição dos tribunais comuns”[18]. E vai além: “Entre nós, qualquer funcionário, do Primeiro Ministro até um cobrador de impostos, responde por qualquer ato perpetrado sem justificação legal da mesma forma que qualquer outro cidadão”[19] Para Dicey, o Direito Administrativo opõe-se diretamente à noção de igualdade de todos perante a lei, central para o sistema jurídico inglês.

E vai além: “O esquema do autodenominado Direito Administrativo opõe-se a todas as ideias inglesas”[20]. Veja-se: todas as ideias inglesas, jurídicas ou não. E afirma também, de modo ainda mais decidido: “Qualquer um que examine com cuidado a natureza do “droit administratif” da França ou o tipo de assunto ao qual ele se aplica, em breve descobrirá que ele baseia-se em duas ideias principais, que são alheias às concepções dos Ingleses de hoje”[21] .Ver-se-á, em breve, quais são estas ideias.

Por ora, importa-nos dizer que, para Dicey, não restam dúvidas: são sistemas decididamente incompatíveis, antagônicos e representam diferenças que vão muito além do meramente jurídico, abrangendo a própria cultura dos países envolvidos. Isto fica ainda mais claro quando ele aponta o problema da terminologia: a própria expressão “direito administrativo” – que se traduziria por “administrative Law” em inglês – “não tem um equivalente exato em inglês”, segundo ele.[22] E vai além:  “Na Inglaterra e em países onde, como os EUA, derivam sua civilização de fontes inglesas, o sistema de direito administrativo e os princípios mesmos onde ele se baseia são, na verdade, desconhecidos” [23].

É uma marca, portanto, não só de um país, segundo Dicey, mas de toda uma civilização: a anglo-saxônica, à qual se opõe a continental. Uma é a civilização da “rule of Law”; a outra, a do “droit administratif” [24]

E qual o entendimento que Dicey tem acerca do “droit administratif”? Para ele, repousa naquelas “two leading ideas alien to the conception of modern Englishmen”.  São elas: a noção de que o governo e seus servidores públicos possuem tribunais separados, com privilégios e prerrogativas diante do particular, baseados em princípios distintos dos do direito civil, e a separação de poderes “à francesa”, onde o Judiciário não pode interferir no Executivo e vice-versa.

Aqui, o inglês Dicey, cheio de orgulho de liberal inglês defensor da “rule of law”, da liberdade e da igualdade diante dos autoritários regimes continentais, aponta de modo cabal que o que um inglês entende por separação de poderes não é o mesmo que um francês entende, ressaltando mais uma vez a diferença essencial entre o entendimento que um e outro povo têm do Direito. E mais: são idéias alheias à concepção do inglês moderno – isto é, do inglês liberal do final do século XIX e começos do XX – que sequer as pode conceber. Da mesma forma que, como ele diz anteriormente, sequer há a expressão “direito administrativo” em inglês, por impossibilidade de se a traduzir em conceitos jurídicos comumente aceitos[25].


5 O PONTO DE VISTA DE MAURICE HAURIOU

Tendo em vista o vigor do ataque, pode-se dizer que a resposta francesa até demorou. Veio apenas duas décadas depois, da pena de Maurice Hauriou, um dos maiores juspublicistas franceses de todos os tempos. Uma resposta que impressiona pela elegância e engenhosidade.

Hauriou põe em causa um ponto – talvez mesmo O ponto – central da discussão iniciada por Dicey: o de que o fenômeno do Direito Administrativo  seria uma exclusividade continental  - sobretudo francesa - e sem correspondente na Inglaterra. Hauriou parte do conceito de função administrativa, que consistiria em “prover a satisfação das necessidades de ordem pública e assegurar o funcionamento de certos serviços públicos para a satisfação de interesses gerais e a gestão dos assuntos de utilidade pública”[26]. Segundo Hauriou, tal função é exercida por todos os Estados modernos. O que nem todos têm – e aí reside, para ele, o equívoco de Dicey – é o regime administrativo, que consiste, segundo Hauriou, no seguinte: “(...) todas as funções administrativas aí existentes foram fortemente centralizadas e confiadas a um poder executivo”[27]. É essa centralização das funções administrativas e sua submissão jurídica à autoridade do executivo que caracteriza este regime.

Tal regime, diz Hauriou, tem sua forma mais acabada na experiência francesa. Na Inglaterra, por outro lado, não há regime administrativo, pois não há nem a centralização e nem o controle dos atos da administração pelo Executivo. Mas há função administrativa – há, portanto, lá também, direito administrativo.

Hauriou aponta, ainda, que os sistemas inglês e francês não são os únicos existentes: “Não é de se crer que só existam no mundo dois tipos distintos de país, um sem regime administrativo, como a Inglaterra, e um com regime administrativo, como a França; ao contrário, Inglaterra e França elaboraram apenas, cada um em seu gênero, o seu tipo específico (...) A maior parte dos países optou por combinações de administração judiciária e administração”.[28]


6 CONCLUSÃO

A controvérsia Dicey-Hauriou provocou e vem provocando notáveis debates jurídicos. E é natural: sendo uma questão que toca em pontos essenciais de Direito Público, Teoria do Estado e mesmo Filosofia Política, pode-se esperar dos posicionamentos ali desenvolvidos a paixão com que as disputas ideológicas são travadas. Veja-se, a título de exemplo as posições dos nossos Celso Antônio Bandeira de Mello e Hely Lopes  Meirelles, que tão bem representam, de modo típico, os pontos extremos do debate ideológico aí existente: o eminente professor Bandeira de Mello, cujas posições sobre a intervenção do Estado na economia e na sociedade são conhecidas, tende a simpatizar mais com o modelo continental dos franceses e menos com o inglês, a ponto de dizer que é “o sistema da chamada common law, o qual expressa com fidelidade o ‘espírito tradiconalmente individualista e libertário dos povos germânicos (...)’ – como bem o disse Rolando Pantoja (aliás, em rigor, os bárbaros em geral)”[29]. Já Meirelles, animado por um espírito totalmente oposto, afirma de modo definitivo que não abona o sistema francês por ser “uma jurisdição especial constituída por funcionários saídos da própria Administração e sem as garantias de independência que se reconhecem necessárias à magistratua”[30].

O debate segue animado. Mas, quanto nele não haverá da incompreensão, daquela incompreensão de que falava o mestre René David, citado anteriormente? Quando não há de desconhecimento mútuo, de facciosismo, de cegueira, de falta de capacidade de diálogo?

Não é, e nem pode ser, pretensão nossa encerrar esta já secular disputa, e nem ousar pregar onde tantos grandes calaram. No entanto, entendemos ser válido observar alguns pontos que, em nossa opinião, podem fornecer pistas para elucidar a questão.

Em primeiro lugar, é nossa opinião que Dicey acertou ao afirmar que o sistema do contencioso administrativo tendia a decidir questões de modo mais favorável à administração, e que foi criado justamente para tal. Como vimos, é o caso: as circunstancias históricas do momento pós-revolução francesa – e mesmo alguns pré-revolução, que Dicey muito bem apontou, mais concretamente os do Ancien Régime – contriburam sobremaneira para a criação do sistema do contencioso administrativo.

Entretanto, não podemos aceitar a tese, central para Dicey, de que a Inglaterra não tenha direito administrativo por não possuir tribunais administrativos nos moldes do Council D’État francês. Assim, o inglês reduz o Direito Administrativo à existência deste sistema de contencioso, desprezando a possibilidade de haver Direito Administrativo em sistema de jurisdição única, onde tribunais comuns cuidariam de temas ligados à Administração.

Nesse sentido, muito mais convincente e elegante é a explicação dada por Hauriou, distinguindo “função administrativa” de “regime administrativo”, universalizando a existência da primeira em todos os Estados modernos ocidentais e reduzindo a da segunda apenas à França e a países culturalmente afiliados. O Direito Administrativo , não se esgotando na existência de um tribunal desta espécie, existe em outros países e sistemas.

Além disso, contrariando parte das idéias de Dicey, há no sistema francês uma série de garantias, punições para o funcionário e defesas dos particulares que, neste sistema, impede o governo de passar das medidas. Como diz Maria Sylvia Zanella di Pietro, comentando a opinião do jurista americano James W. Garner sobre o trabalho de Dicey,

“(...)os funcionários franceses respondem perante os tribunais administrativos, apenas quando se trata de falta cometida em razão do serviço; por suas faltas pessoais e por seus crimes, eles respondem perante a jurisdição ordinária. Por outro lado, (...) não é inteiramente verdadeira a afirmação de Dicey segundo a qual, no direito inglês, funcionário e cidadão encontram-se em pé de igualdade perante a lei, no que concerne à prática de infrações. Além do Chefe de Estado, personificado pela Coroa, e dos Ministros, uns e outros gozando de proteção e imunidades especiais, inúmeros funcionários ingleses são total ou parcialmente liberados de responder perante os tribunais ordinários pelas conseqüências de seus atos oficiais; é o caso dos juízes, oficiais de polícia, funcionários das alfândegas e outros. Além disso, uma lei de 1893 concedeu certo privilégio aos servidores do Estado, ao exigir que todas as ações contra os mesmos, por atos praticados no exercício do cargo, sejam iniciadas no prazo de apenas seis meses da data do ato.

Quanto à impossibilidade de os tribunais ordinários, na França, apreciarem atos da Administração Pública, (...) essa apreciação ocorre em vários casos, como nas faltas pessoais cometidas por funcionários, nas desapropriações, na responsabilização civil da Administração, na aplicação das regras de polícia, nos processos contra a administração dos correios e telégrafos”[31].

Neste sentido, bem como no que respeita à existência ou não de Direito Administrativo na Inglaterra, é importante ressaltarmos que Dicey, em edição posterior de sua obra, disse que, após conhecer melhor o trabalho dos juristas franceses, chegou à conclusão de que o sistema daquele país está dentro do que se pode considerar aceitável juridicamente[32] . No entanto, mesmo aí Dicey aponta que é um sistema impossível de se conciliar com o princípio da “rule of Law” inglesa, já que o exame das questões não é responsabilidade dos tribunais ordinários. Esta característica, segundo ele, faz completamente impossível a identificação do “droit administratif” com qualquer ramo do Direito Inglês[33]

É importante ressaltar que Dicey e Hauriou são homens da virada do século XIX para o XX. Suas reflexões, dizem,portanto, respeito a outro tempo, com outras circunstâncias, inclusive no que respeita aos sistemas jurídicos. Erra quem pensa que o sistema administrativo inglês e francês não mudaram com o tempo. Pelo contrário: mudaram e não foi pouco, refletindo as novas tendências e circunstâncias históricas.

Do ponto de vista da organização administrativa, verifica-se na Inglaterra um aumento considerável da burocracia estatal e da centralização, com transferência de competência dos municípios para unidades regionais. Na França, ao mesmo tempo, houve um processo de descentralização (ao contrário do que se verficava no Império Napoleônico, quando surge o Direito Administrativo), transferindo várias funções da administração central para órgãos regionais.

Ao mesmo tempo, já não é correto dizer que a Inglaterra é a terra do Estado mínimo liberal. Várias leis administrativas foram criadas para prestar serviço de vária ordem (assistenciais, culturais, etc) [34], enquanto, na França, assiste-se a uma “privatização” da Administração Pública, com, por exemplo, empresas públicas funcionando nos moldes do Direito Empresarial.

A centralização progressiva da administração inglesa redundou num aumento substancial das prerrogativas da administração e até mesmo o surgimento dos chamados tribunais administrativos (administrative tribunals), a ponto de Entrena Cuesta opinar que

“Da afirmação segundo a qual um funcionário na Inglaterra não dispõe de mais faculdades legais das que possa ostentar um patrão diante a seus operários em virtude de um contrato constituiu-se, até data bem recente, quase um dogma de fé entre a opinião pública e a doutrina jurídica britânica. O estudo da realidade legislativa daquele país permite, sem embargo, chegar a conclusões muito distintas.”[35].

É mito, portanto, que na Inglaterra administração e particular estejam na mesma posição e de que a administração submeta-se ao mesmo direito privado dos cidadãos comuns. Entrena Cuesta diz:

“Hoje não se pode sustentar que exista país onde a administração se encontra submetida ao direito privado. Em todos os países ocidentais se dá o direito administrativo, e se da este ramo do direito porque em todos eles encontramos com uma série de normas presididas pela idéia de coordenar as prerrogativas da administração com as garantias dos particulares”[36].

Prova de que há paulatino reconhecimento entre os próprios ingleses e americanos é a publicação de numerosas obras sobre o tema[37] – que, no entanto, reduzem o Direito Público a apenas uns poucos temas [38].

No entanto, é mister sermos cuidadosos para não cometermos confusões. O fato de que a administração inglesa se tenha centralizado progressivamente, e a francesa se tenha descentralizado e que as prerrogativas administrativas inglesas tenham aumentado, e que até mesmo se possa falar, como a maioria dos doutrinadores, em uma aproximação dos dois sistemas, a verdade é que subsistem diferenças essenciais e decisivas para que ainda se possa falar em um tipo britânico e um tipo francês. Quando se diz que a administração francesa se descentraliza e privatiza, e a inglesa se centraliza e criar prerrogativas, é importante ter-se em mente de que se parte de posições antípodas, de extremos opostos. Ademais, no que respeita à característica fundamental do controle da administração, a situação segue inalterada: ainda é a administração francesa basicamente sujeita aos tribunais administrativos e, do lado inglês, a criação das administrative courts  não é prova da adoção do sistema continental , visto que funciona de maneira muito distinta da dos tribunais administrativos franceses, não devendo-se confundir pela similtude de nome. É, portanto, perfeitamente lícito falarmos ainda em sistema inglês e francês. O “núcleo duro” dos dois permanece.

Importa dizer ainda que não é estanque a idéia sistema francês-continente, sistema inglês-ilha. Concede-se que haja uma tendência continental para a criação de um regime administrativo e uma tendência anglo-atlântica para o liberalismo, rule of law , descentralização administrativa. Mas isso não é definitivo. E prova disto é o Brasil. Nossa tradição é romana, continental, e somos tributários, nesta matéria, do direito anglo-americano. Como diz Cirne Lima, “foram as instituições dos Estados Unidos da América e os princípios da common law tomados para fundamento do nosso regime jurídico incipiente“[39]. E ainda hoje é assim.

Permanecem, assim, os dois sistemas, com suas vantagens e desvantagens, características e instituições próprias, ancorados na experiência histórica e, vale dizer, espírito de seus povos e países. A disputa Hauriou-Dicey, de certa forma, ainda não acabou.

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Sobre o autor
Celso Augusto Uequed Pitol

Advogado em Canoas (RS). Pós-graduando em Direito do Estado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PITOL, Celso Augusto Uequed. A controvérsia Dicey-Hauriou sobre os sistemas de controle jurisdicional da Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3636, 15 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24672. Acesso em: 19 abr. 2024.

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