Resumo: O presente estudo se presta a dissecar os argumentos contrários e favoráveis à adoção do incidente de deslocamento de competência pelo ordenamento jurídico brasileiro, analisando sua compatibilidade com a ordem constitucional vigente, e visando, em último plano, fomentar futuros debates e reflexões acerca do tema em referência.
Palavras-chave: Incidente de Deslocamento de Competência. Emenda Constitucional n. 45. Poder Judiciário. Graves violações a Direitos Humanos. Justiça Federal. Constitucionalidade.
Sumário: 1. Introdução. 2. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3486/DF e 3493/DF. 3. Os fundamentos constitucionais de validade jurídica do IDC. 3.1. Regularidade formal da Emenda n. 45. 3.2. Ausência de violação aos princípios constitucionais. 3.3. Auto-aplicabilidade do art. 109, § 5º, da CF/88 e desnecessidade de definição prévia de “grave violação aos direitos humanos”. 3.4. Respeito ao pacto federativo. 3.5. Importância do incidente de deslocamento de competência. 4. Conclusão.
1. Introdução
O incidente de deslocamento de competência é instituto criado com a Emenda Constitucional nº 45, intitulada Reforma do Judiciário, que possibilita ao Procurador-Geral da República, como único legitimado, nos casos de graves violações aos direitos humanos, suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, o deslocamento da competência do feito para a Justiça Federal.
A questão apontada vem gerando inflamados debates. De um lado, várias entidades se insurgem contra o referido instituto, alegando sua inconstitucionalidade, face à ofensa a vários preceitos da Constituição, citando-se como exemplos, o juiz natural e o pacto federativo. De forma antagônica, outras permanecem firmes na defesa da possibilidade de se federalizar os crimes de graves violações aos direitos humanos, de modo a assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais.
Nesse contexto, busca-se, com este estudo, analisar a constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, destacando-se sua importância no combate à impunidade, tendo em vista ser esta uma das maiores preocupações do cidadão brasileiro, diante do grave quadro de violações a direitos fundamentais.
2. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3486/DF e 3493/DF
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) propôs ação direta de inconstitucionalidade em face do art. 1º da Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, que incluiu o inciso V-A e o § 5º ao artigo 109 da Constituição Federal vigente, instituindo o incidente de deslocamento de competência ora tratado.
Nos fundamentos do pedido, após discorrer sobre eventuais contornos imprecisos do instituto, a autora da ADIN afirma ter, a Emenda Constitucional n. 45, violado uma série de garantias constitucionais do processo penal, estabelecidas como cláusulas pétreas, dentre as quais as previstas no art. 5º, incisos XXXVII, XXXVIII, XXXIX e LIV, da Constituição Federal.
O primeiro dos princípios violados seria o princípio do juiz natural, estabelecido nos incisos XXXVII e LIII do art. 5º, da Constituição. Nos termos da ADIN proposta:
O que o legislador constituinte jamais poderia ter feito é criar competência discricionária ao alvedrio da lei, a depender somente da provocação e do prévio exame do Procurador-Geral da República com base em critérios genéricos como a gravidade da infração.
Se é certo que deslocamentos de competência são admitidos no direito processual penal brasileiro, é igualmente certo que os mesmos decorrem de fatos objetivos definidos em lei, tais como o exercício ou não de um cargo, na hipótese, por exemplo, de competência por prerrogativa de função.[1]
Além do juiz natural, prejudicada estaria a cláusula pétrea que estabelece as competências do júri popular, excepcionada somente pelo Constituinte Originário, e também a segurança jurídica, consubstanciada, no caso, no princípio penal da legalidade estrita, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Relativamente a este último, para a AMB:
É inequívoco que todos esses princípios aplicam-se, guardadas as devidas particularidades, ao processo penal, principalmente no que se refere às regras de competência. Assim, se a EC n. 45/2004 pretendia estabelecer uma nova hipótese de competência da Justiça Federal, relacionada ao julgamento de crimes graves contra os direitos humanos, deveria desde já esclarecer que tipos de crimes seriam esses ou, no mínimo, condicionar sua eficácia à lei posterior regulamentadora.
No entanto, não foi isso que aconteceu. A referida EC, que se projeta no ordenamento constitucional como norma de eficácia plena e irrestrita, limitou-se a criar nova hipótese de competência para a Justiça Federal, definindo-a a partir de critérios extremamente vagos e genéricos: crimes contra os direitos humanos que possam ser considerados graves.
Ora, o que são crimes contra os direitos humanos? A EC nada diz. O que pode ser considerado um crime grave contra os direitos humanos? A EC novamente nada diz e nem remete o assunto à necessária disciplina pela lei.[2]
Por derradeiro, a federalização dos crimes de grave violação aos direitos humanos o ofenderia o princípio do devido processo legal, em razão da presença de um “elemento surpresa”, pelo qual o Procurador-Geral da República poderá, em qualquer momento, requerer ao Superior Tribunal de Justiça o deslocamento da competência.
A ADIN n. 3486/DF foi distribuída em 05 de maio de 2005 ao ministro Cezar Peluso, e em 27 de maio de 2005 redistribuída ao ministro Sepúlveda Pertence. O relator já foi substituído pelo ministro Menezes Direito e após pelo ministro Dias Toffoli, nos termos do art. 38 do Regimento Interno do STF. Diversas entidades requereram a habilitação na qualidade de amicus curiae. Como exemplos, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e a Associação Nacional dos Procuradores da República. [3]
No entanto, esta não é a única ação em que questiona a federalização dos crimes contra os direitos humanos. A Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) ajuizou a ADIN n. 3493/DF no Supremo, em 11 de maio de 2005, contra os mesmos dispositivos contestados pela AMB. Além dos argumentos supracitados, a ADIN posterior trouxe outros fundamentos.
Para a ANAMAGES, violado estaria, também, o pacto federativo, igualmente erigido a cláusula pétrea, por se tratar, em verdade, de uma “intervenção federal branca”, gerando uma "discriminação odiosa", pois, parece desconfiar da capacidade e eficiência de instituições dos Estados-membros.
Ainda, defendem os propositores da ADIN n. 3493/DF a desnecessidade do incidente, porquanto já haveria outros meios de assegurar os mesmos propósitos como por exemplo, a federalização das investigações, o desaforamento do julgamento no procedimento do Júri e a intervenção nos Estados, em clara ofensa ao princípio da proporcionalidade.
Outrossim, alega-se que não só o princípio do devido processo legal restaria maculado, mas, do mesmo modo, o contraditório e a ampla defesa. De acordo com entendimento da associação:
(...) a "federalização dos crimes", inserida pela EC n.45 ao art. 109, é inconstitucional pela ausência de contraditório, eis que para sua concretização basta o Procurador-Geral da República suscitar o deslocamento de competência e o Superior Tribunal de Justiça deferir o pedido, não havendo qualquer procedimento dialético entre o Procurador-Geral da República (autor do incidente de deslocamento de competência) e o réu ou o Procurador-Geral de Justiça do Estado.[4]
Por fim, entre os argumentos da entidade, encontra-se o da não auto-aplicabilidade imediata da norma contida no §5 do art. 109 da CF/88, visto que tal dispositivo estaria pendente de regulamentação. Em conclusão, aduz a ANAMAGES:
E, por fim, há que se considerar que o §5 do art. 109 da CF/88 não é norma auto-aplicável, porque não se tem ainda a definição sobre os crimes relacionados a direitos humanos que poderão ser abarcados pelo deslocamento de competência. Há, sim, norma genérica que está a merecer regulamentação.
Cuida-se de conceito de amplo e indefinido alcance, a ponto de abarcar qualquer causa que envolva delito contra a pessoa, até mesmo um simples atropelamento, num subjetivismo sem precedentes, poderia ser considerado crime contra direitos humanos.[5]
No tocante aos pedidos, em ambas as ações requereu-se o deferimento de provimento cautelar, para suspender a eficácia do inciso V-A e do §5º do art. 109 da CF, nos termos do §3º do art. 10 da Lei 9869/99 c/c a alínea "p" do inciso I do art. 102 da CF/88 e o julgamento final pela procedência do pedido formulado na ADIN, para reconhecer inconstitucionalidade do artigo 1º da Emenda Constitucional n. 45 de dezembro de 2004, no que se refere à introdução do inciso V-A e do § 5º ao artigo 109 da CF/88, com eficácia ex tunc.
Particularmente, na ADIN ajuizada pela ANAMAGES requereu-se, sucessivamente, caso se entenda pela constitucionalidade do referido dispositivo, que seja declarada a não auto-aplicabilidade do dispositivo impugnado, suspendendo-se assim, qualquer eficácia até que sejam devidamente regulamentados.
Ambas as ações se encontram pendentes de julgamento do âmbito do Supremo Tribunal Federal, não tendo sido apreciados os pedidos de medida liminar.
3. Os fundamentos constitucionais de validade jurídica do IDC
Feita a exposição dos conteúdos das ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam com o escopo de expurgar do ordenamento jurídico o incidente de deslocamento de competência, passa-se à análise dos argumentos expostos.
3.1. Regularidade formal da Emenda n. 45
As ações constitucionais também se prestam ao controle formal das leis e atos normativos. Como já foi explanado, a não observância dos procedimentos traçados na Constituição para as espécies normativas, em seus arts. 59 e seguintes, viciará o ato, vício este caracterizador da inconstitucionalidade.
No atinente às emendas constitucionais, os trâmites estão previstos no art. 60, que prevê limitações formais, circunstanciais e materiais.
Assim, relativamente à Emenda Constitucional n. 45, que inseriu o incidente de deslocamento de competência, foram respeitados tais limites, pois se obedeceu à iniciativa legislativa e ao processo legislativo (limites formais), à vedação de emenda na vigência de intervenção federal, estado de sítio ou estado de defesa (limites circunstanciais) e à proteção conferida ao núcleo rígido da Constituição, já que não houve proposta tendente a abolir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais (limites materiais).
3.2. Ausência de violação aos princípios constitucionais
É incontestável a importância dos princípios para a criação e a aplicação das normas. Servem, nas palavras de Paulo Bonavides, como “normas-chaves de todo o sistema jurídico”, seja pela carga de normatividade que apresentam, seja pelas novas formulações conceituais desenvolvidas, assumindo, nas Constituições, feição de fundamentos da ordem jurídica. [6]
Nesse diapasão, ao contrário do que se afirma nas ADIN comentadas, a Emenda Constitucional n. 45, ao adicionar ao art. 109 da Constituição vigente, o inciso V-A e o §5º, não ofendeu qualquer princípio elevado à condição de cláusula pétrea, nem se mostra incompatível com a sistemática processual em vigor. É o que será demonstrado a seguir.
a) Juiz natural
O princípio do juiz natural é observado em duas vertentes. Pela primeira vertente, nos termos do art. 5º, LIII, da CF, “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Pela segunda vertente, veda-se a criação de juízos ou tribunais de exceção, prevista no art. 5º, XXXVII, da Constituição.
Desse modo, verifica-se a necessidade de obediência às regras de competência estabelecidas na Norma Maior e na legislação infraconstitucional, para a designação do órgão julgador com base nessas regras. Não se afigura possível a escolha do magistrado encarregado de examinar determinado caso, após a ocorrência do crime e conforme as características de quem será julgado, afastando-se dos critérios legais anteriormente estabelecidos. [7]
Acerca do postulado do juiz natural já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
O postulado do juiz natural, por expressar uma efetiva garantia de ordem constitucional, limita, de modo subordinante, os poderes do Estado – que fica, assim, impossibilitado de instituir juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção -, ao mesmo tempo em que assegura ao acusado o direito ao processo perante autoridade competente abstratamente designada na forma da lei anterior, vedados, em conseqüência, os juízos ex post facto.[8]
Do julgado do Pretório Excelso se depreende o costume em se afirmar que o juízo de exceção é aquele criado após o fato. Tal argumento poderá levar a equívocos, em virtude da possibilidade de aplicação imediata das regras de competência. Como bem explica Guilherme de Souza Nucci:
Não se ofende o princípio do juiz natural se, ao criar uma Vara nova, especializada em determinada matéria, vários processos para ela são encaminhados, desvinculando-se de outros juízos onde tramitavam. A medida é geral e abrangente, tomada em nome do interesse público, sem visar qualquer réu específico. [9]
Coíbe-se, portanto, a designação casuística de julgadores específicos, em razão de qualidade pessoal de quem vem a ser julgado, com o escopo de se obter o julgamento em determinado sentido. Neste caso, sim, haverá risco inevitável à imparcialidade do juiz.
O argumento do desrespeito ao juiz natural tem concentrado algumas críticas no tocante à federalização dos crimes de grave violação aos direitos humanos, mas basta um simples entendimento do princípio para se verificar que não há qualquer ofensa.
Ora, o incidente de deslocamento de competência prevê a mudança da condução das investigações ou do processo para algum dos diversos órgãos da Justiça Federal, de acordo com os critérios de distribuição previamente estabelecidos, respeitando-se a competência prevista.
A possibilidade de modificação da competência foi inserida em nosso sistema por meio idôneo, qual seja, emenda constitucional, e não visou de forma alguma minar a imparcialidade do julgador. Não há a designação de magistrados ou tribunais para casos particulares e sim o deslocamento da competência fundamentado em determinados critérios, os quais não se limitam à subjetividade do Procurador-Geral da República, como adiante se verá, à semelhança do instituto do desaforamento.
Neste sentido já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, ao se deparar com questionamentos sobre a incompatibilidade do instituto com os princípios constitucionais no julgamento do IDC n. 1/PA:
Com efeito, não se discute que o novo instituto é instrumento a ser utilizado em situações especialíssimas, quando devidamente demonstrada a sua necessidade, a sua imprescindibilidade, tal como acontece, semelhantemente, com o pedido de desaforamento (CPP, art. 424) ou com a intervenção federal (CF, art. 34), observadas, é claro, as peculiaridades e finalidades de cada instituto.
De fato, o IDC, principalmente na hipótese de homicídio doloso qualificado, de competência do Tribunal do Júri, guarda muita semelhança com o desaforamento, no qual o direito de o réu ser julgado pelos seus pares da comunidade, no chamado “distrito da culpa”, cede lugar ao objetivo maior, que é a realização da justiça em sua plenitude, finalidade última do processo, sem que isso represente violação ao princípio do juiz e/ou do promotor natural, nem se constitua em juízo ou tribunal de exceção, desde que presentes os pressupostos legais que a tanto o autorizem.[10]
Ressaltem-se, ainda, as inúmeras possibilidades de modificação da competência primitiva, existentes em nosso sistema processual. Citando exemplo do processo civil, a mudança de competência para a Justiça Federal no caso do ingresso de entidade federal na causa (art. 109, I, da Constituição Federal e Súmula n. 150 do STJ). Neste último caso também se afasta o juiz antes acreditado como “natural” por simples presunção de interesse da entidade pública no feito.
Obviamente, a simples alteração do juiz tido como competente não prejudicou o conteúdo do princípio, já que tal possibilidade foi prevista na legislação processual, da mesma forma em que está prevista, constitucionalmente, para o juiz que receberá a causa deslocada nos casos de graves violações aos direitos humanos.
b) Devido processo legal, contraditório e ampla defesa
O devido processo legal costuma ser colocado, pela doutrina, ao lado dos princípios do contraditório e da ampla defesa, mas é, na verdade, o conjunto de todas as garantias processuais. É, sem dúvida, o aglutinador dos inúmeros princípios processuais[11].
A Constituição Federal de 1988 referiu-se expressamente ao devido processo legal no art. 5º, LIV ao dispor que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. No entendimento de Alexandre de Moraes:
O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe a paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal). [12]
Dessa forma, o devido processo legal constitui o horizonte a ser perseguido pelo Estado Democrático de Direito, fazendo valer os direitos e garantias fundamentais[13], e tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV).
O contraditório, também chamado de bilateralidade das audiências, é a garantia de ambas as partes de tomar ciência dos argumentos da parte contrária, com a possibilidade de contraditá-los. A ampla defesa, em suma, é uma garantia assegurada ao réu de produzir livremente as provas que necessite para defender-se. Diferenciando-os, leciona o autor acima mencionado:
Por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazes para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.[14]
Assim, feitos os devidos esclarecimentos, não se vislumbra, com o deslocamento de competência, ofensa a quaisquer dessas garantias processuais. Ao contrário, no procedimento do IDC n. 1/PA respeitou-se a audiência das partes, pois foram chamados para prestarem os devidos esclarecimentos os órgãos suscitados, a saber, o Tribunal de Justiça do Pará e a Procuradoria-Geral do Estado do Pará, bem como os réus do processo originário, em nítida manifestação de respeito aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Além destes, também se manifestaram o irmão da vítima e uma diversidade de pessoas jurídicas e entidades dedicadas à proteção dos direitos humanos.
Ademais, no Projeto de Lei n. 6647/2006, que tem a pretensão de regular o instituto, está claramente exposto o procedimento do IDC e, em seu art. 5º, a previsão do contraditório dos envolvidos.
c) Segurança jurídica e estrita legalidade
A segurança jurídica é valor perseguido por todo o ordenamento jurídico. Fácil é observar uma série de situações em que se restringe o conteúdo do valor justiça a fim de não se alimentar situações perpétuas de incerteza.
No Direito Penal, o princípio da segurança jurídica se apresenta com toda força e se desdobra em uma série de garantias ao réu, entre elas a que consagra a regra do nullun crimen nulla poena sine lege. Deste modo, preconiza o art. 5º, XXXIX, da CF que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Consoante o ensinamento de Cezar Roberto Bitencourt:
Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida.[15]
Entretanto, as críticas feitas ao incidente de deslocamento de competência, tomando por base a ofensa ao princípio da estrita legalidade, são insubsistentes. Basta ver que os crimes a que se referem as grave violações não escapam à tipicidade penal, ou seja, constituem tipos preexistentes no ordenamento jurídico.
O IDC trata, na verdade, de delitos que causam grande repulsa à sociedade, em razão do modo e das circunstâncias em que eles são praticados. Cite-se, como exemplo clássico, os homicídios praticados em grupo de extermínio contra diversas pessoas. As conhecidas “chacinas” são homicídios qualificados, tipificados no art. 121, § 2º, do Código Penal, e significam, indubitavelmente, uma grave violação aos diretos humanos.
d) Soberania do Júri
A Constituição Federal estabelece como juiz natural para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida o Tribunal do Júri, sendo esta competência absoluta, insuscetível de alteração por vontade das partes. Haverá julgamento pelos cidadãos nos seguintes delitos: homicídio (art. 121 do CP); induzimento, instigação e auxílio ao suicídio (art. 122); infanticídio (art. 123) e as várias formas de aborto (arts. 124, 125, 126 e 127).
Sendo o crime de homicídio a grave violação por excelência, pois lesa o mais importante bem jurídico, qual seja, o direito à vida, há quem sustente o desrespeito ao princípio da soberania do júri em caso de deslocamento de competência. Contudo, tal alegação é visivelmente precária.
Nada se subtrai do júri popular, havendo apenas a alteração do juiz competente para conduzir o processo até que se instaure o julgamento perante o Conselho de Sentença. E este, da mesma forma que na Justiça Estadual, também será formado por representantes do povo.
Esclarecendo, nas palavras de Vladimir Aras:
(...) não há um povo “estadual” e um povo “federal”. O povo é um só. Nos crimes dolosos contra a vida eventualmente deslocados por meio de IDC, o “povo” que julgará o fato será o mesmo, o da comarca estadual ou da subseção federal em que se deu o fato, conforme o critério territorial. Enfim, nada se tira do júri (art. 5º, XXXVIII, da CF). [16]
Observando o exemplo do IDC n. 1/PA, a competência foi fixada originariamente no Tribunal do Júri da comarca de Pacajá. Se o Superior Tribunal de Justiça tivesse se manifestado favorável ao deslocamento, o processo seria submetido a julgamento perante o júri federal da subseção judiciária de Marabá.[17]
3.3. Auto-aplicabilidade do art. 109, § 5º, da CF/88 e desnecessidade de definição prévia de “grave violação aos direitos humanos”
Sobre a auto-aplicabilidade do art. 109, § 5º, da Constituição, no sentido de carecer o incidente de deslocamento de competência de regulamentação infralegal para produzir efeitos, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou nos seguintes termos:
Entretanto, dada a amplitude e a magnitude da expressão “direitos humanos”, é verossímil que o constituinte derivado tenha preferido não definir o rol desses crimes que passariam para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é a de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria. Além disso, não é comum definição dessa natureza no próprio texto constitucional. Pelo menos, momentaneamente, persiste em aberto tal aspecto, podendo o Congresso Nacional, por lei, especificar os tipos penais susceptíveis de ensejar o deslocamento de competência.
Logo, não há base jurídica para atribuir ao referido preceito eficácia limitada (sem o condão de produzir todos os seus efeitos, precisando de uma lei integrativa), ou que o processamento desse incidente dependa de regulamentação própria, até porque as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais – em cujo elenco, indiscutivelmente, se encontram inseridos os “direitos humanos” – têm aplicação imediata, por força do disposto no § 1º do art. 5º da Carta da República. É suficiente, portanto, para o deslocamento da competência, a demonstração inequívoca, no caso concreto, de ameaça efetiva, real, ao cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil, respeitando-se, obviamente, o direito de manifestação das partes interessadas sobre o pedido formulado pelo Procurador-Geral da República, aliado a terceiro pressuposto, que será abordado mais adiante. [18]
Destarte, não pode prosperar o argumento segundo o qual não haverá possibilidade de se aplicar imediatamente o dispositivo. Tanto é assim, que ao afastar a preliminar argüida pelas entidades suscitadas em suas defesas, o Superior Tribunal de Justiça deu prosseguimento ao julgamento do IDC nº 1-PA, considerando satisfeitos os requisitos de admissibilidade.
No tocante à falta de uma definição precisa de “grave violação aos direitos humanos” não faltaram propostas com o escopo de solucionar o problema. Cumpre esclarecer, aliás, que a proposta inicial apresentada ao Congresso Nacional em sugestão de comissão formada por Procuradores do Estado e Procuradores da República visava atribuir à Justiça Federal a competência para processar e julgar os crimes de direitos humanos.
Assim, seria esta última competente para processar e julgar os crimes de: a) tortura; b) homicídio doloso qualificado praticado por agente funcional de quaisquer dos entes federados; c) praticados contra as comunidades indígenas ou seus integrantes; d) homicídio doloso, quando motivado por preconceito de origem, raça, sexo, opção sexual, cor, religião, opinião política ou idade ou quando decorrente de conflitos fundiários de natureza coletiva; e) uso, intermediação e exploração de trabalho escravo ou de criança e adolescente em quaisquer das formas previstas em tratados internacionais. [19]
Assim explica Flávia Piovesan:
A justificativa é simples: considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir.[20]
Não obstante, o legislador reformador optou por não elencar um rol definido das violações aptas a ensejar o deslocamento de competência[21]. Agiu acertadamente, pois, pecando por uma extrema precisão, corre o risco de deixar de fora uma série de condutas que surgissem no caso concreto, e que, tanto quanto as outras, merecessem especial proteção e destaque. Neste contexto observou Luiz Edson Fachin:
Enfim, é de ser admitido um certo nível de imprecisão nas disposições legais, como é o caso da simples menção a “direitos humanos”, mas sem a intenção de definir os crimes que atentassem diretamente contra eles. [22]
Nada impede, entretanto, que legislação infraconstitucional venha a definir o que se entende por “graves violações” e os delitos passíveis de deslocamento. É o que pontificou o Superior Tribunal de Justiça no julgado colacionado acima.
Porém, a ausência de lei regulamentadora não obsta que se permita o exercício de certo nível de discricionariedade pelo Procurador-Geral da República e pelo Superior Tribunal de Justiça. Tal discricionariedade faz-se necessária como meio de dar efetividade ao instituto, adaptando-o ao cumprimento de seus propósitos e às exigências da realidade, tal qual se apresenta.
Na verdade, qualquer que venha a ser o critério adotado pelo legislador ou mesmo pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, é inevitável considerar a gravidade do crime, aliada a premissas diversas, como por exemplo, a repercussão, o clamor público e o propósito dos agentes delitivos, geralmente ligado a questões sociais. É o que se observou no crime que vitimou a missionária Dorothy Stang, porquanto apesar de ter sido homicídio praticado contra uma pessoa, teve como inegável “pano de fundo” a questão social dos trabalhadores no norte do país e foi cometido como forma de cessar os movimentos e os alertas contra o conflito fundiário e contra a degradação do meio-ambiente.
3.4. Respeito ao pacto federativo
A República Federativa do Brasil rege-se, em suas relações internacionais, pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, entre outros elencados no art. 4º, da Constituição Federal.
Outrossim, com fulcro no art. 21, I, da Carta Magna, compete à União manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, sendo ela a responsável, em nome do Estado brasileiro, pelas regras e preceitos estipulados em tratados internacionais, inclusive no que concerne ao respeito aos direitos humanos em território nacional.
Nesse diapasão, como já foi esclarecido, a União não pode invocar a cláusula federativa[23] para se eximir de responder em âmbito internacional, alegando que o descumprimento dos tratados decorreu de atos ou omissões dos Estados ou dos Municípios.
Tanto é assim, que é reservada constitucionalmente a possibilidade da intervenção federal nas hipóteses de desrespeito aos princípios constitucionais sensíveis, além de ter, a Emenda Constitucional n. 45, previsto o incidente do deslocamento de competência, como mais um meio de garantia de efetividade e proteção aos direitos humanos.
Não obstante, como já foi bem delineado no julgamento do IDC n. 1/PA pelo Superior Tribunal de Justiça, é requisito essencial do deslocamento de competência a incapacidade do Estado em cuidar do crime, sob pena de se caracterizar uma ingerência indevida nos assuntos da entidade federativa. Neste sentido, para o STJ:
Em síntese: Além dos dois requisitos prescritos no § 5º do art. 109 da CF: a) grave violação a direitos humanos e b) assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais, é necessário, ainda, a presença de terceiro requisito, qual seja, c) a incapacidade (oriunda de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais, materiais etc.) de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal. Tais requisitos – os três – hão de ser cumulativos, o que parece ser de senso comum, pois do contrário haveria indevida, inconstitucional, abusiva invasão de competência estadual por parte da União Federal, ferindo o Estado de Direito e a própria federação, o que certamente ninguém deseja, sabendo-se, outrossim, que o fortalecimento das instituições públicas – todas, em todas as esferas – deve ser a tônica, fiel àquela asserção segundo a qual, figuradamente, “nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco”. Para que o Brasil seja pujante, interna e externamente, é necessário que as suas unidades federadas – Estados, DF e Municípios –, internamente, sejam, proporcionalmente, também fortes e pujantes.[24]
Assim sendo, obedecendo-se à excepcionalidade da medida não há o que se falar em desrespeito ao pacto federativo, pois o instituto cumpre a função de possibilitar à União assegurar, em âmbito nacional, o respeito aos direitos humanos, em realização ao que foi pactuado por ela nos tratados internacionais, sem que se necessite da medida drástica da intervenção federal. Ressalte-se, portanto, que é de suma importância coibir a banalização do incidente de deslocamento de competência, pois:
A confiabilidade nas instituições públicas, constitucional e legalmente investidas de competência originária para atuar em casos como o presente – Polícia, Ministério Público, Judiciário – deve, como regra, prevalecer, ser apoiada e prestigiada, só afastando a sua atuação, a sua competência, excepcionalmente, ante provas induvidosas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais ou materiais etc. em levar a cabo a apuração e julgamento dos envolvidos na repugnante atuação criminosa, assegurando-se-lhes, no entanto, as garantias constitucionais específicas do devido processo legal.[25]
Conforme se observa, no IDC n. 1/PA o Superior Tribunal de Justiça afastou a possibilidade do deslocamento em virtude de faltar requisito essencial, qual seja, a omissão da entidade federativa na investigação, julgamento e punição dos culpados. Entendeu-se que a instituições do Estado do Pará foram eficientes e céleres no cumprimento de suas funções, rejeitando-se o pedido feito pelo Procurador-Geral da República.
3.5. Importância do incidente de deslocamento de competência
Sob esse prisma, também não pode prosperar o argumento segundo o qual a inserção do § 5º ao art. 109 da Constituição Federal, que prevê o incidente de deslocamento de competência, é instrumento restritivo e totalmente ineficaz, tendo em vista as demais medidas presentes no ordenamento jurídico, incompatível, por isso, com o princípio da proporcionalidade.
A federalização dos crimes de grave violação aos direitos humanos, ao contrário do que sustentam os autores das ADIN acima explanadas, é medida visivelmente menos traumática do que a intervenção federal nos Estados, porquanto prevê apenas o deslocamento de determinado processo, que não esteja sendo devidamente solucionado pelas autoridades estatais, para algum dos órgãos da Justiça Federal. Não há a nomeação de interventor, nem a perda temporária, total ou parcial, das autonomias dos entes federativos.
Ademais, é medida mais ampla e eficaz do que a previsão da Lei n. 10.446/02, acerca da investigação das infrações penais de repercussão interestadual ou internacional. Isto porque o IDC não se resume ao deslocamento da apuração das infrações penais e é mais uma garantia à célere tramitação dos feitos, consentâneo com o espírito do sistema processual e as novas reformas implantadas. É fundamental ver que a razoável duração do processo foi erigida à condição de direito fundamental pela emenda constitucional que criou o incidente de deslocamento de competência (art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal).
O mesmo raciocínio se aplica ao instituto do desaforamento, visto que este só desloca o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, todavia todo o processo[26] continua tramitando perante o juízo primitivo.
Por conseguinte, a federalização busca evitar, sobretudo, as demoras excessivas nos processos, o que, por ter tamanha gravidade, pode inviabilizar totalmente o provimento final, sem falar nos riscos da prescrição e da propagação da sensação de impunidade.
De acordo com Vladimir Aras:
Só caberá o deslocamento quando, por similitude com a ação penal privada subsidiária, uma determinada noticia criminis for “engavetada” e quando se revelar a inoperância, deliberada ou não, dos órgãos estaduais de persecução criminal e de prestação jurisdicional. Tal federalização ocorrerá sempre em função do interesse público na punição dos crimes contra os direitos humanos.[27]
O IDC não representa, de forma alguma, “discriminação odiosa” ou desrespeito à Justiça Estadual, somente mais uma via interna para a repressão às violações aos direitos humanos, de modo que a República Federativa do Brasil possa dar cumprimento aos preceitos pactuados e uma resposta às sociedades brasileira e internacional, pois, como se sabe, o esgotamento dos recursos internos é regra geral para se ter acesso às cortes internacionais.
Dentro deste contexto, para Flávia Piovesan, a federalização dos crimes de direitos humanos é medida imperativa diante da crescente internacionalização destes, e que, por conseqüência, aumenta extraordinariamente a responsabilidade da União nesta matéria, rompendo com o paradoxo presente no fato desta última centrar a responsabilidade internacional, estando esvaziada desta competência no âmbito interno.[28]
Do mesmo modo, a federalização das graves violações aos direitos humanos é, consoante pensamento de Luiz Edson Fachin, decorrência direta da supremacia da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos materialmente fundamentais, prevendo sua maior proteção e efetivação. [29]