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Jurisdição constitucional e a concretização dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal de 1988

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11/07/2013 às 08:10
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4.ASPECTOS GERAIS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DIFUSO E CONCENTRADO

O segundo aspecto da jurisdição constitucional (e o mais conhecido e importante) é o controle de constitucionalidade. Divide-se em dois grandes sistemas: a) sistema norte-americano, ou o controle difuso de constitucionalidade (também conhecido por controle de exceção, de defesa pela via incidental ou controle aberto) e b) sistema austríaco ou kelseniano, ou controle concentrado, abstrato ou direto de constitucionalidade. O Brasil adota um sistema peculiar, um misto dos controles difuso e concentrado.

A jurisdição constitucional foi formalmente instituída em nosso país com a Constituição republicana de 1891, inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América, que criou o controle difuso (mesmo que sejam conhecidos antecedentes históricos do controle difuso antes da Constituição Americana). No entanto, no sistema norte-americano da common law o controle difuso é baseado no stare decisis, em que os precedents podem irradiar seus efeitos para outros julgamentos; isto é, as decisões podem ter efeito erga omnes. No Brasil criou-se um modelo inusitado de controle difuso, em que a decisão incidental de inconstitucionalidade somente vincula as partes do processo.

O controle difuso é exercido incidenter tantum em um processo judicial, como prejudicial de mérito. O reconhecimento da inconstitucionalidade não é o objeto principal da demanda. Pode ser realizado por juízes singulares e pelos Tribunais. A declaração incidental realizada nos Tribunais pátrios subordina-se ao princípio da cláusula de reserva de plenário, com algumas atenuações. Assim, apenas mediante decisão da maioria absoluta do Pleno do Tribunal ou de seu órgão especial, poderá ser reconhecida a inconstitucionalidade. A decisão possui, em regra, efeitos inter partes e ex tunc. No entanto, o Supremo Tribunal Federal em algumas situações permite a modulação dos efeitos da decisão para o futuro (ex nunc), com esteio no princípio da segurança jurídica.

A Emenda Constitucional nº 16 de 1965 inaugurou no Brasil o controle concentrado de constitucionalidade, inspirado nas teses de Hans Kelsen, cuja principal característica é a aferição da constitucionalidade em um processo objetivo, realizado por um Tribunal Constitucional (ou que tenha tal atribuição como ocorre com o STF), em que os efeitos da decisão estendem-se a todos (erga omnes).

O controle concentrado de constitucionalidade é exercido perante o Supremo Tribunal Federal (por isso denomina-se concentrado, pois se realiza perante um único tribunal), caso o paradigma de confronto seja a Constituição Federal. Se for a constituição estadual competirá ao respectivo Tribunal de Justiça exercer o controle. Como ocorreu com o controle difuso, mais uma vez houve uma adaptação à brasileira no controle concentrado: no sistema idealizado por Kelsen o controle era exercido por um Tribunal Constitucional, cuja única função seria exercer tal mister. No Brasil, porém, o controle concentrado é apenas mais uma das atribuições da Suprema Corte, relegado a um papel secundário, pois o exercício da função jurisdicional recursal consome quase que totalmente a pauta do STF.

No Brasil, o controle abstrato de constitucionalidade é composto da ação direta de inconstitucionalidade (ADIN genérica), ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ação direta de inconstitucionalidade interventiva, a ação declaratória de constitucionalidade (ADECON), arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) e pelas técnicas da interpretação conforme e declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Para não fugirmos da nossa proposta inicial, abordaremos apenas a ADIN por omissão e a ADPF.


5.TERCEIRA FACETA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Por fim, temos a última faceta da jurisdição constitucional: a interpretação constitucional. Tradicionalmente, a interpretação apoia-se em dois brocardos jurídicos: interpretatio cessat in claris (a interpretação cessa nas coisas claras) e in claris non fit interpretatio (nas coisas claras não se faz interpretação). Apenas quando houver obscuridade poderá o intérprete extrair da norma o seu real significado; caso contrário deverá ater-se à literalidade do texto normativo.

Tal concepção de interpretação encontra-se totalmente ultrapassada. Os provérbios jurídicos são facilmente retorquíveis por apenas um argumento: para saber-se se uma lei é obscura, necessariamente deve-se realizar uma prévia interpretação. Outrossim, um texto legal que apresenta-se claro para uma pessoa poderá não o ser para outra. Nas palavras de Flávia de Almeida Viveiros de Castro:

Nas verdade, para se fazer exprimir, o pensamento utiliza as palavras contidas na língua, que não realizam de forma completa a adequação perfeita entre o pensar e sua expressão. A polissemia e a indeterminação semânticas são fatores inevitáveis da multiplicidade de significados nos textos. Certamente que tais variações podem ser reduzidas, mas isto só será possível com referência ao contexto no qual o texto é considerado (CASTRO, 2004, p. 8).

Portanto, devemos avançar muitos passos para um conceito de interpretação moderno, que se coadune com o Estado Democrático de Direito. Como salienta Lênio Luiz Streck, “o caráter da interpretação é sempre produtivo” (STRECK, 2002, p. 21). Além de produzir, a interpretação deve ir além: concretizar e tornar o texto legal o mais efetivo possível. No âmbito constitucional esta afirmação possui maior força, pois os textos constitucionais têm um conteúdo mais fluído, abstrato, com o intuito de evitar o “envelhecimento precoce” da constituição, já que disposições indeterminadas serão mais facilmente adaptadas às novas realidades, que surgem em um ritmo frenético.

Em suma, a interpretação constitucional numa acepção moderna visa:

fazer atuar a Constituição. Tal significa expandir ao máximo a sua força normativa, realizando a interpretação, conforme a Constituição, do resto do ordenamento jurídico. Há verdadeiro empenho em fazer valer os conteúdos da Lei Maior, na mais ampla medida possível, para regular com eles a inteira atividade do Estado e dos cidadãos (CASTRO, 2004, p. 22).

A interpretação constitucional possui extrema importância na concretização dos direitos sociais. A noção de que a interpretação é produtiva é o fundamento dos institutos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e da virada jurisprudencial no que concerne ao mandado de injunção, como se verá adiante. Aliás, a interpretação constitucional deve ser o ponto de partida de toda decisão proferida por qualquer juiz.

Como bem assevera Sarlet:

Sustenta-se que, por exemplo, que a natureza aberta e a formulação vaga das normas que versam sobre direitos sociais não possuem o condão de, por si só, impedir a sua imediata aplicabilidade e plena eficácia, já que constitui tarefa precípua dos tribunais a determinação do conteúdo dos preceitos normativos, por ocasião de sua aplicação. Para além disso, alega-se que mesmo em se tratando de preceitos imprecisos ou fluido, em sendo possível reconhecer um significado central e incontroverso, sempre se poderá aplicar a norma constitucional, mesmo sem intermediação legislativa, já que, do contrário, se estaria outorgando maior força à lei do que à própria Constituição. Por outro lado, há quem aceite um direito subjetivo individual à prestação, nas hipóteses em que a norma definidora de um direito fundamental determina suficientemente o conteúdo da prestação, e que o procedimento para sua realização esteja expressa ou, no mínimo, implicitamente regulado na Constituição. Mais recentemente, houve quem sustentasse que os direitos sociais (mesmo os de cunho prestacional), por força do disposto no art. 5º, § 1º, da CF, possuem o caráter de autênticos direitos subjetivos, já que o citado preceito, combinado com o art. 5º, inc. XXXV, de nossa Carta (inafastabilidade do controle judiciário), autoriza os tribunais a assegurar, no caso concreto, a efetiva fruição do objeto da prestação. Para os que propugnam este ponto de vista, a lacuna gerada pela ausência de uma atuação do legislador pode ser suprida, no caso concreto, pelo Judiciário, à luz da analogia, do costume ou dos princípios gerais de direito, sem que com isto se esteja transpondo a fronteira entre a atividade judiciária e legislativa. (SARLET, 2011, p. 306)


6.DIREITOS SOCIAIS PREVISTOS NO ART. 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

O art. 6º da CF de 1988 estabelece que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Segundo Alexandre de Moraes direitos sociais são:

direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal. (MORAES, 2006, p. 180)

Para Lenza:

os direitos sociais, de segunda dimensão, apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida, estando, ainda consagrados como fundamentos da República Federativa do Brasil. (LENZA, 2011, p. 974)

Comparando-se os dois conceitos acima, percebe-se que Lenza dá um sentido mais restrito aos direitos sociais, colocando-os como direitos que dependem de implementação do Estado, enquanto Alexandre de Moraes considera-os direitos fundamentais do homem, que devem ser obrigatoriamente observados pelo Estado. Parece-me que a intenção de Lenza foi enfatizar a necessidade de adoção de políticas públicas pelo Estado para a concretização dos direitos sociais.

De qualquer forma, é necessário ter em mente que os direitos sociais, mesmo tendo um caráter muito abstrato, possuem aptidão para gerar um mínimo de efeitos jurídicos, sendo, na medida desta aptidão, diretamente aplicáveis, pois inexiste norma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade. (SARLET, 2011, p. 280/281)

Os direitos sociais visam uma prestação positiva pelo Estado, com a finalidade precípua de reduzir as desigualdades sociais e promover o princípio da isonomia.

Essa prestação positiva pode ser realizada mediante três frentes: a) a integração legislativa dos direitos sociais, regulamentando a sua fruição, estabelecendo requisitos, público-alvo, condições, a respectiva fonte de custeio da prestação estatal etc.; b) mediante a adoção de políticas públicas pelo Poder Executivo, ou para dar concretude à legislação reguladora dos direitos sociais ou, independentemente de lei, para dar efetividade aos preceitos constitucionais, os quais possuem eficácia direta e c) pelo Poder Judiciário, quando instado a se manifestar, através do exercício da jurisdição constitucional.

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Como sabemos há uma crise no parlamento brasileiro. O Poder Legislativo tornou-se um “apêndice” do Executivo, pois este estabelece a pauta daquele. Outrossim, o Executivo, mediante a adoção irresponsável (e inconstitucional) de Medidas Provisórias, arrogou para si a função legislativa. Diante de um Legislativo refém do Executivo, vemos que temas de extrema importância para o país são esquecidos. Por isso, 23 anos após a promulgação da Constituição Federal, dispositivos de vital importância previstos em seu texto ainda hoje não foram complementados pela atividade legislativa. É o que ocorre com alguns dos direitos sociais previstos no art. 6º da CF.

Perante a inércia do Poder Legislativo, o Poder Executivo estipula sozinho quais diretrizes a seguir, sem pressão e quase sem fiscalização daquele. Então, o Executivo escolhe discricionariamente quais as políticas públicas a adotar, quais serão os textos constitucionais objeto de sua atuação, qual será o público-alvo atingido e em quais condições serão os programas governamentais implantados. Desta forma, muitos dos direitos e garantias fundamentais não são efetivados na realidade fática.

O Poder Executivo tem a obrigação constitucional de implantar políticas públicas que visem a concretização dos direitos sociais. Caberia, também, ao Legislativo a incumbência de regular tais direitos, de forma a assegurar aos seus destinatários o seu usufruto, bem como forçar o Executivo a concretizá-los.

Diante da inércia dos citados poderes, surge o Poder Judiciário, no papel de guardião da Constituição Federal. Adotando-se o entendimento de que as normas constitucionais, mesmo as mais abstratas, guardam um mínimo de eficácia, o Judiciário pode ser provocado a se manifestar para proteger eventual direito social que esteja sendo sonegado a seus destinatários.

Os direitos sociais possuem uma nítida característica econômica. Para implementar satisfatoriamente o direito social à saúde, por exemplo, exige-se o dispêndio de recursos públicos. E o mesmo acontece com o direito à moradia, lazer, alimentação etc.

Esse aspecto econômico ganha contornos relevantes na concretização dos direitos sociais, pois o principal argumento utilizado pelo Poder Público nos processos judiciais é que para ser reconhecido o direito subjetivo social deve ser observado o princípio da reserva do possível.

Ingo W. Sarlet faz uma interessante síntese sobre o aludido princípio. Vejamos:

A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competência tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. (SARLET, 2011, p. 287)

Parte da doutrina considera os direitos sociais como sendo direitos relativos, pendentes de concretização legislativa e subordinados ao princípio da reserva do possível. Entretanto, como já dito acima, os direitos fundamentais, mesmo dotados de alta abstratividade, possuem um mínimo de eficácia. Dotados de um mínimo de eficácia, reclamam também alguma efetividade – também denominada de eficácia social -, sob pena de redundar no fenômeno da baixa normatividade ou da Constitucionalização Simbólica.

Logicamente, os direitos sociais (como qualquer outro direito) não são absolutos. A concretização dos direitos sociais não pode significar a erosão dos recursos públicos; nem deve significar uma indevida judicialização da política ou, o inverso, uma politização da justiça. Deve sempre ser realizado um juízo de razoabilidade e de proporcionalidade entre o direito pleiteado e o meio para que ele seja prestado.

O princípio da reserva do possível, na tríplice dimensão comentada por Sarlet, deve ser um norte ao Judiciário, porém não pode ser utilizado como testa de ferro pelo Poder Público, para livrar-se da responsabilidade de sua omissão na concretização dos direitos sociais. O Poder Executivo não pode contrapor irresponsavelmente o princípio da reserva do possível para livrar-se da sua responsabilidade. Ou seja, em uma questão concreta, o Poder Judiciário não pode ficar refém do aludido princípio, mas utilizá-lo de forma racional e proporcional para dar efetividade às normas constitucionais.

Alguns dos direitos sociais previstos no art. 6º da CF, são tratados no Título VIII da Constituição Federal, intitulado “Da Ordem Social”. Conforme o art. 193, “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.

Os art. 194 ao 202 dispõem sobre a Seguridade Social, gênero do qual são espécies a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde. Dos art. 205 ao 217 são reguladas a educação, a cultura e o desporto. No art. 225 temos o meio ambiente. E os arts. 226 ao 230 tratam da família, da criança, do adolescente e do idoso.

Analisemos separadamente tais direitos, salientando desde já que algum deles já possuem uma normatização consolidada, o que lhe confere um grau maior de aplicabilidade (Previdência Social, trabalho, educação) enquanto outros ainda dependem, segundo o senso jurídico tradicional, de regulamentação normativa e adoção de políticas públicas para serem aplicados (alimentação, lazer, moradia). Outros há que possuem uma sedimentação jurisprudencial progressiva, em que o judiciário passou a exercer a jurisdição constitucional com o fim de torná-los efetivos (saúde).

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Sobre o autor
Robson da Costa Oliveira

Analista Judiciário Federal do TRT da 5ª Região. Assistente de Juiz. Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri - URCA-CE. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera - Uniderp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Robson Costa. Jurisdição constitucional e a concretização dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3662, 11 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24919. Acesso em: 21 mai. 2024.

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