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Participação ativa do juiz no âmbito de processos criminais: avanço ou retrocesso?

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O modelo de deliberação do STF está ultrapassado. O ideal seria que os ministros interrogassem os advogados, criando, assim, um diálogo capaz de esclarecer os fatos.

Em época de julgamentos com grande repercussão midiática, a atuação dos sujeitos do processo é tema recorrentemente debatido nos diversos meios de comunicação. No momento atual, em que o julgamento do chamado “esquema do mensalão” ocupa a mídia, o foco volta-se à avaliação dos ministros do Supremo Tribunal Federal e, por conseguinte, dos magistrados em geral.

Em artigo de opinião publicado em 10 de agosto do presente ano, no jornal Folha de São Paulo (versão online), Joaquim Falcão sustenta que o cansaço demonstrado pelos ministros do STF durante as sustentações orais proferidas pelos advogados na ação penal 470 demonstra que o modelo de deliberação do Supremo está ultrapassado. O ideal seria que os ministros interrogassem os advogados, criando, assim, um diálogo capaz de esclarecer os fatos. Defende Falcão que “nada impede que o ativismo processual da primeira instância chegue aos tribunais superiores e modernize o modelo de sustentações orais” [1].

A proposta, evidentemente, seduz muitos espectadores. Se ao juiz cabe a decisão do feito, nada mais correto, então, do que sua atuação no sentido de buscar os elementos capazes de demonstrar a realidade ou não dos fatos e formar seu convencimento. As versões e provas trazidas pela defesa – e, em raras vezes, até mesmo pelo órgão acusador – são consideradas, frequentemente, obstáculos à elucidação da verdade e à prolação de uma decisão justa. A história, contudo, já deu tristes exemplos do contrário.

Falar em ativismo processual do magistrado é trazer para o centro da discussão tema de fundamental importância no processo penal: o papel que deve ser exercido pelo juiz. É, aliás, a definição de tal papel que determina o modelo processual penal adotado pelo Estado: se inquisitório ou acusatório.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[2] sustenta que inexistem, contemporaneamente, sistemas processuais penais puros. Assim, todos os sistemas são mistos, diferenciando-se quanto ao princípio unificador, que pode ser dispositivo ou inquisitivo. Dessa forma, deparamo-nos ora com sistemas regidos pelo princípio inquisitivo, mas que trazem agregados elementos acusatórios; ora com sistemas regidos pelo princípio dispositivo, ao qual se somam alguns elementos inquisitivos.

Por sua vez, o princípio unificador consiste na gestão da prova. Em modelos nos quais o princípio unificador é inquisitório, a gestão da prova fica a cargo do juiz, cuja função primordial é descobrir e revelar a verdade real. Já nos modelos cujo princípio unificador é dispositivo (ou seja, acusatório), a gestão da prova é delegada às partes interessadas no processo, cabendo ao juiz o papel de garantir a efetividade do contraditório e demais garantias constitucionais.

Na mesma linha, Ferrajoli, na clássica obra Direito e Razão – na qual o jurista italiano traça seu modelo de garantismo penal –, afirma que a distinção entre o sistema inquisitório e acusatório passa, primordialmente, pela análise de dois elementos: a definição do papel e da colocação institucional do juiz e a determinação dos procedimentos que formam o juízo[3]. Assim, em um modelo inquisitório, o juiz imiscui-se na atividade probatória, possuindo iniciativa para buscar (ou determinar a busca) dos elementos de prova que considere relevantes para o alcance da verdade real.

É, aliás, o protagonismo judicial uma das principais características que marcou o modelo inquisitorial adotado pelo Tribunal do Santo Ofício, instituído em 1215, a partir do IV Concílio de Latrão. O juiz possuía tarefa ampla, que incluía acusar, instruir e julgar. Assim, poderia iniciar uma acusação ex officio, determinar as diligências probatórias necessárias ao alcance da verdade real e, ao final, evidentemente despido de imparcialidade, julgar o feito. Os resultados de tal modelo assombram, ainda hoje, a história do processo penal.

Sob influência das ideias iluministas, notadamente das obras de Cesare Beccaria - Dos delitos e das penas – e Pietro Verri – Observações sobre a tortura – o sistema penal passou por uma progressiva humanização. É evidente que, para tanto, não bastava a adoção de práticas menos severas: seria necessária uma reestruturação do modelo processual adotado, de modo a alterar o papel dos sujeitos envolvidos no processo e harmonizá-los com as garantias defendidas.

Neste sentido, embora o modelo acusatório remonte à antiguidade, pode-se considera-lo, nos moldes atualmente propostos, um avanço na história do processo penal. A separação entre as funções de acusar e julgar prima pela garantia da imparcialidade do juiz ao proferir sua sentença. A gestão da prova a cargo das partes indica uma democratização do processo, bem como uma nova concepção da verdade, em abandono ao mítico conceito da verdade real. O juiz, por sua vez, embora deva se distanciar da iniciativa probatória, não possui papel de mero expectador no curso do processo. Pelo contrário, cabe ao mesmo zelar pela efetivação do contraditório e das demais garantias que devem permear o processo penal, assumindo, assim, papel de grande relevância na consagração de um processo penal democrático.

Deve-se, portanto, tomar cuidado ao se defender uma postura mais ativa do juiz no curso do processo penal. Deve ser ativo, sim, no sentido de zelar pela efetivação dos direitos e garantias conquistados em séculos de lutas. Não se pode admitir, todavia, o ressurgimento de um juiz-acusador, a quem se atribua a tarefa quase divina de alcançar, mesmo a custo do sacrifício de garantias, a almejada verdade real.

Notas

[1]Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/1134885-analise-cansaco-de-ministros-indica-ritual-obsoleto.shtml. Acesso em 10 de agosto de 2012.

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[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In Revista do Instituto dos Advogados do Paraná, nº 39, novembro/2010. P. 187-207.

[3]FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. P. 518. 

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Sobre a autora
Jéssica Oníria Ferreira de Freitas

Mestranda em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada criminalista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Jéssica Oníria Ferreira. Participação ativa do juiz no âmbito de processos criminais: avanço ou retrocesso?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3663, 12 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24936. Acesso em: 29 mar. 2024.

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