O uso do procedimento monitório para a cobrança de títulos de crédito prescritos sempre gerou muitas questões polêmicas, algumas delas já dirimidas pela jurisprudência, outras, ainda dignas de muito debate.
Em 2004, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça aprovou o enunciado n.º 299 da sua súmula de jurisprudência, segundo o qual: “É admissível a ação monitória fundada em cheque prescrito”.
Fixado esse entendimento, coube àquele Tribunal definir qual o é prazo prescricional aplicável à pretensão de cobrança de títulos sem eficácia executiva. Enquanto os emitentes das cártulas sustentavam, frequentemente, a aplicabilidade do prazo trienal, previsto para a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa (art. 206, § 3.º, IV, do Código Civil), os respectivos credores apregoavam a utilização do prazo quinquenal, instituído para a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular (art. 206, § 5.º, I, CC).
O STJ, então, pacificou o entendimento de que é aplicável, nesses casos, o prazo de cinco anos, conforme previsão do art. 206, § 5.º, I, do CC. Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO. RECURSO ESPECIAL. NOTA PROMISSÓRIA. EXECUÇÃO PRESCRITA. AÇÃO MONITÓRIA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. NÃO PROVIMENTO.
1. A prescrição da cobrança via ação monitória de nota promissória cuja execução está prescrita é de cinco anos. Precedentes.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp 50.642/RS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 04/12/2012).
Hoje, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça parece caminhar no sentido de definir o termo inicial de contagem do prazo prescricional para o ajuizamento da ação monitória fundada em título de crédito sem força executiva. Em recente julgado, a Turma entendeu que o termo a quo do prazo prescricional corresponde à data da emissão do cheque, in verbis:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA FUNDADA EM CHEQUE PRESCRITO. APLICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PREVISTO NO ARTIGO 206, § 3º, VIII, DO CÓDIGO CIVIL. DESCABIMENTO. INCIDÊNCIA DO PRAZO PRESCRICIONAL DE 5 ANOS, NOS MOLDES DO DISPOSTO NO ARTIGO 206, § 5º, I, DO CÓDIGO CIVIL/2002. OPOSIÇÃO DE EMBARGOS À MONITÓRIA SUSCITANDO A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO. POSSIBILIDADE.
1. Como a pretensão para haver pagamento de crédito estampado em cheque, inclusive no que toca à ação cambial de execução, é regulada por lei especial (Lei do Cheque), é descabida a invocação do artigo 206, § 3º, VIII, do Código Civil, visto que esse dispositivo expressamente restringe a sua incidência à pretensão para haver o pagamento de "título de crédito", "ressalvadas as disposições de lei especial".
2. Assim, como no procedimento monitório há inversão do contraditório, por isso dispensável menção ao negócio jurídico subjacente à emissão da cártula de cheque prescrito, o prazo prescricional para a ação monitória baseada em cheque sem executividade, é o de cinco anos previsto no artigo 206, § 5º, I, do Código Civil/2002 - a contar da data de emissão estampada na cártula. Porém, nada impede que o requerido, em embargos à monitória, discuta a causa debendi, cabendo-lhe a iniciativa do contraditório e o ônus da prova - mediante apresentação de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.
3. Com a oposição dos embargos à monitória, ficou incontroverso que o cheque foi emitido para o pagamento de mensalidade escolar do ano de 1997, na vigência do Código Civil de 1916, que dispunha ser ânua a prescrição, por isso, ainda que o cheque tenha sido emitido para renegociação do débito, interrompendo a prescrição, por caracterizar reconhecimento do direito pela devedora, é inequívoco ter, de fato, havido a perda da pretensão, ainda na vigência do Código revogado.
4. Recurso especial não provido.
(REsp 1162207/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 19/03/2013, DJe 11/04/2013) [grifo nosso].
Tal entendimento, entretanto, não parece acertado. É que, consoante o art. 59 da Lei do Cheque, a pretensão executiva da cártula prescreve em 6 meses, contados da expiração do prazo de apresentação, que é de 30 ou de 60 dias, conforme a praça de emissão (art. 33 da Lei n.º 7.357/85). Assim, dentro desse período, em que o cheque conserva a sua exequibilidade, falta interesse processual ao credor para propor ação monitória, que é cognitiva. Se a ação injuntiva visa à formação mais célere do título executivo (em summaria cognitio), não faz sentido propô-la com base em documento que já possui tal eficácia.
De fato, o artigo 1.102-A do CPC prevê que a ação monitória é manejável por quem possua prova escrita sem eficácia de título executivo, o que, por óbvio, exclui a cártula ainda dotada de executividade. Nesse sentido, prelecionam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero:
O art. 1.102-A, CPC, quando faz referência à prova suficiente para fundamentar a ação monitória, fala apenas em prova escrita sem eficácia de título executivo. O objetivo do legislador é evitar o surgimento de uma discussão atinente ao interesse de agir do titular de título executivo na propositura da ação monitória. Em face desta norma, não há dúvida que o credor que pode se valer da ação executiva está impedido de propor ação monitória[1].
Igualmente, filiam-se a essa corrente Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery[2], Antônio Cláudio da Costa Machado[3], Alexandre Freitas Câmara[4], Misael Montenegro Filho[5], Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini[6].
Além disso, o próprio STJ já se manifestou sobre o tema:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. CHEQUE NÃO PRESCRITO. INTERESSE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO À DEFESA. ANULAÇÃO DO PROCESSO.
I - A ação monitória, conforme previsão do art. 1102a do Código de Processo Civil, compete a quem pretender pagamento ou soma em dinheiro com base em prova escrita sem eficácia de título executivo. A princípio, não tem interesse processual na ação monitória quem dispõe de título dotado de força executiva.
II - Quando existente razoável dúvida a respeito da ocorrência ou não de prescrição do título executivo, é possível o ajuizamento de ação monitória, sabendo que a solução que prestigia a economia processual e não prejudica o direito de ampla defesa do suposto devedor. Precedentes.
III - Recurso Especial provido.
(REsp 839.454/MT, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 01/07/2010) [grifo nosso].
AÇÃO MONITÓRIA. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. PRESCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. AMPLA DEFESA. ANULAÇÃO DO PROCESSO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA CELERIDADE E ECONOMIA PROCESSUAIS.
Quem dispõe de título executivo carece, em tese, de interesse processual de propor ação monitória, conforme prescreve o artigo 1.102a do Código de Processo Civil. Entretanto, existindo dúvida quanto à prescrição do título executivo e ausente o prejuízo para o devedor em sua ampla defesa, é possível a escolha do procedimento monitório. Ademais, em observância aos princípios da celeridade e economia processuais, não se justifica a anulação do processo, com a perda de todos os atos processuais já praticados.
Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 504.503/RS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 29/10/2003, DJ 17/11/2003, p. 323) [grifo nosso].
Outrossim, deve-se observar o princípio da economia processual, “o qual preconiza o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego de possível de atividades processuais”[7]. Assim, se o credor já é portador de título executivo extrajudicial, é contraproducente proceder à instauração de um processo de conhecimento.
Destarte, mais adequado seria fixar o termo inicial do prazo de prescrição na data em que o cheque perde sua força executiva, isto é, no dia seguinte àquele em que se extingue a pretensão executória, quando exsurge, de fato, a pretensão condenatória.
Com efeito, adotar conclusão contrária seria diminuir o prazo prescricional em comento em 6 meses e 30 dias ou em 6 meses e 60 dias, conforme tenha sido o cheque emitido na mesma praça do saque ou em localidade distinta.
Portanto, tem razão a 3.ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, a qual, em recentíssimo precedente, adotou a tese ora defendida:
PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA. CHEQUE. PREJUDICIAL DE PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA. REJEIÇÃO. DEMONSTRAÇÃO DA CAUSA DEBENDI. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES DO STJ. MÉRITO. PAGAMENTO. ÔNUS DA PROVA. INCUMBÊNCIA DA PARTE RÉ. ART. 333, II DO CPC. SENTENÇA MANTIDA.
- Tratando-se de ordem de pagamento à vista, o cheque deve ser apresentado ao banco sacado para liquidação no prazo de 30 dias a contar da sua emissão, quando apresentado na mesma praça, e no prazo de 60 dias, quando apresentado em praça diferente. Após, o credor dispõe do prazo de seis meses para ajuizar o processo de execução, nos moldes do art. 59 da Lei do Cheque. Consumada a prescrição prevista no art. 59 da Lei do Cheque (seis meses), o portador tem a opção de ajuizar a ação de locupletamento ilícito (art. 61 Lei 7.357/85), no prazo de dois anos, ou, então, ação pelo rito ordinário ou a monitória (art. 62 da Lei 7.357/85), no prazo previsto no art. 206, § 5º, do CC/02 (cinco anos). Dessa forma, o prazo prescricional de cinco anos só começa a correr após o decurso do prazo para o ajuizamento do processo executivo, e não da emissão da cártula. Prejudicial rejeitada.
- Não se aplica a regra estatuída no § 4º do art. 219 do CPC quando não evidenciada conduta negligente do autor.
- Como espelhado na jurisprudência do eg. STJ, na ação monitória fundada em cheque prescrito, mesmo vencido o prazo para propositura da ação de locupletamento, não se exige do portador do título a declinação da causa debendi, porquanto é suficiente para tanto a juntada da própria cártula devolvida por insuficiência de fundos, cumprindo ao réu, ao embargar, deduzir contrapostamente causa que elida a pretensão do autor.
- Recurso conhecido e não provido. Unânime.
(Acórdão n. 669545, 20090111908838 APC, Relator: OTÁVIO AUGUSTO, Revisor: MARIO-ZAM BELMIRO, 3ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/04/2013, Publicado no DJE: 17/04/2013. Pág.: 119) [grifo nosso].
Assim, é de se esperar que o Superior Tribunal de Justiça reveja seu posicionamento, fixando, como termo inicial da contagem do prazo prescricional para o ajuizamento da ação monitória, a data da perda da exequibilidade do cheque.
Notas
[1] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. 4.ª tiragem. São Paulo: RT, 2009, p. 927.
[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 7.ª ed. São Paulo: RT, 2003, p. 1207.
[3] MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil interpretado. 9.ª ed. Barueri: Manole, 2010, p. 1464-1465.
[4] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 12.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, v. 3, p. 529.
[5] MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2005, v. 3, p. 495-496.
[6] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de Processo Civil. Luiz Rodrigues Wambier (coordenador). 7.ª ed. São Paulo: RT, 2006, v. 3, p. 233.
[7] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 28.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 82.