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Falsos perfis nas redes sociais virtuais: direito à identidade

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18/08/2013 às 14:42
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5. Do direito à identidade

A construção do significado e alcance do direito à identidade passa por uma leitura civil-constitucional do termo, devendo ser concebida como um direito fundamental da pessoa em sentido amplo e não somente como um direito subjetivo da personalidade tutelado pelo Direito Privado.

Para Pietro Perlingieri, os direitos que tutelam a personalidade humana expressam, em verdade, mais que um mero direito subjetivo, mas um “valor”:

“A personalidade, portanto, não é um direito, mas sim, um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente exigência mutável de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer com que se perca de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade da tutela se torna instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre desenvolvimento da vida de ralação” (PERLINGIERI, 2008, p. 764).

A Constituição Federal de 1988, erigida sobre a pedra fundamental do princípio da dignidade da pessoa humana, superou o paradigma patrimonialista que então vigia, para alocar no centro de todo sistema a pessoa humana, congregando valores e direitos fundamentais que garantem o processo de realização do indivíduo.

Neste sentido, esses valores e direitos fundamentais, consagrados nos artigos 1º e 5º da Constituição, refletem as diferentes nuances ou dimensões de proteção do que deve ser compreendido como dignidade do ser humano. Entre essas dimensões, figura o direito à identidade.

“A força construtiva do ser emanada do texto constitucional indica que a ordem jurídica brasileira está voltada para a promoção e o desenvolvimento da pessoa humana. E a afirmação do ser para a pessoa significa a expressão de sua identidade” (CHOERI, 2010, p. 161).

Em outras palavras, reconhecer-se o direito à identidade como direito fundamental, constitucionalmente tutelado, é estabelecer um instrumento de realização da dignidade da pessoa humana, tutelado de maneira ampla.

Sob a leitura civil-constitucional, portanto, a identidade da pessoa humana deve ser compreendida sob diferentes perspectivas, conforme lição de Raul Cleber da Silva Choeri (2010, p. 163), que superam aquelas enumeradas no Código Civil, no capítulo que trata dos direitos da personalidade.

5.1. Aspecto estável do direito à identidade

Numa primeira perspectiva, destacamos o “aspecto estável” do direito à identidade, o qual reúne os elementos que respondem pela materialidade da identidade, de percepção imediata e, via de regra, de natureza perene, como o nome, nacionalidade, filiação, sexo, etc.

O Código Civil, neste ponto abordou apenas o direito ao nome, dedicando a ele quatro artigos, dentre os onze dispositivos dedicados aos direito da personalidade. Para Maria Celina Bodin de Moraes:

“O nome é o substantivo que se emprega para designar as coisas e as pessoas. Adquire relevo especial, do ponto de vista jurídico, quando serve para individualizar pessoas. Este é justamente o primeiro aspecto a ser evidenciado, isto é, o da importância do nome como o sinal designativo que permite a individualização da pessoa humana, constituindo, por isso mesmo, um dos direitos mais essenciais da personalidade” (MORAES, 2010, p. 149).

Conclui a autora:

“A relevância do nome não se reduz, então, como outrora, à designação como pertencente a determinada família. O nome, hoje, integra-se de tal maneira à pessoa e à sua personalidade que com ela chega a se confundir, vindo a significar uma espécie de sustentáculo dos demais elementos, o anteparo da identidade da pessoa, a sede do seu amor-próprio” (idem, p. 152)

De fato, o direito ao nome é a expressão maior do direito à identidade, no seu aspecto estável, merecendo ampla proteção do Estado. Neste sentido, em consonância com o tema analisado neste estudo, há de se destacar as duas faculdades atribuídas ao indivíduo no gozo desse direito: a) a de usá-lo e b) a de defendê-lo.

Quanto à faculdade de usá-lo, o indivíduo tem o direito de se fazer chamar por ele e “resume-se praticamente no poder de exigir a retificação do nome nos atos em que for alterado” (GOMES, 2010, p. 123).

Quanto à faculdade de defendê-lo, o indivíduo tem o direito de agir contra quem o usurpe, empregando-o para expor o verdadeiro titular ao desprezo ou ao ridículo. Mesmo que este não seja o objetivo, o simples fato da utilização indevida já merece a proteção jurídica. Para Orlando Gomes, “o titular tem direito a agir contra quem o usurpa, ainda quando o uso por outrem acarrete, tão só, o risco de confusão. A ação tem por fim obter a proibição do uso” (2010, p. 123).

Portanto, a criação de falsos perfis, com usurpação de nome alheio (falsos perfis de “identidades reais”) deve ser combatida com rigor, tenha ele sido utilizado para a prática de atos lesivos contra o verdadeiro titular ou terceiros, ou não. A simples utilização do nome, gera o direito de defendê-lo, fazendo cessar o uso, sem prejuízo de eventual indenização por danos sofridos.

5.2. Aspecto dinâmico do direito à identidade

A segunda perspectiva do direito à identidade se refere ao “aspecto dinâmico”, sendo constituído por elementos imateriais da identidade, de percepção mediata, variável ou não, como a ideologia, a forma de pensar, a espiritualidade, a orientação religiosa, a orientação sexual, etc.

“Toda pessoa é um tipo único identitário, diferente das demais: humanista, socialista, ecologista, simpatizante de algum clube futebolístico, advogado, engenheiro, médico, católico, umbandista, muçulmano, etc. Todos esses pertencimentos podem ser modificados no exercício da autonomia de que cada pessoa goza como ser física, moral e espiritualmente livre.

Enquanto expressão da vida vivente, a identidade é fluida, não se congela no tempo, renasce, renova-se com o interagir social, na busca da realização do projeto pessoa de vida” (CHOERI, 2010, p. 161).

O conceito que ora se busca é o que a doutrina denomina de “verdade pessoal” ou o direito de toda pessoa de expressar quem realmente é, em suas realidades moral, intelectual, religiosa, sexual, genética, entre outras. A tutela ao direito à identidade, portanto, deve coibir atos que falseiem a “verdade” pessoal de cada indivíduo, seja ela qual for.

No presente estudo dos falsos perfis nas redes sociais, é notório que o falsificador, muitas vezes, não usurpa apenas o nome de terceiros (aspecto estável), mas, nas atividades do falso perfil, distorce outros aspectos do direito à identidade ligados, justamente, à “verdade pessoal” da vítima.

É comum entre os falsos perfis nas redes sociais, ao se passar por pessoas reais, a falsa atribuição de opiniões, pensamentos, ideologias políticas e religiosas e, até mesmo, orientação sexual. Muitos utilizam deste expediente com o intuito de humilhar, zombar ou colocar em descrédito as vítimas. A esse respeito, uma vez mais, Raul Choeri:

“A tutela da identidade, sob o prisma da garantia da verdade pessoal, alcança as denominadas identidades genética e sexual, e estende-se à projeção psicossocial – intelectual, moral, política, religiosa, ideológica e profissional. Toda vez que a pessoa sofre alteração em suas características e qualidades, ou é representada com características ou qualidades inexistentes ou diversas das reais, ou quando se omite algum dos aspectos que definem sua identidade, configura-se lesão à identidade” (CHOERI, 2010, p. 244).

Pelo exposto, o dano à identidade, em razão da extensão jurídica do próprio objeto tutelado, numa leitura civil-constitucional que confere amplitude à sua incidência, não se reduz à lesão ao direito ao nome. Resulta, sim, da violação à cláusula geral de proteção da pessoa humana, na medida em que impede a expressão da verdade pessoal em todas as suas nuances, materiais e imateriais, e, por conseqüência, da realização da dignidade da pessoa humana.


6. Da responsabilização civil das redes sociais

No que diz respeito à responsabilização civil pela criação de falsos perfis nas redes sociais virtuais, sustentamos que, num primeiro plano, deva recair sobre o “falsificador” ou aquele que usurpa identidade alheia para transitar nos ambientes virtuais. Nada mais natural, na medida em que é ele o autor direto do ato lesivo.

Ocorre, porém, que esse usuário mal intencionado, na maioria das vezes não pode ser identificado fora das redes, no mundo real, pois não forneceu qualquer dado verdadeiro, tampouco há tecnologia capaz de localizá-lo.

Nessa hipótese, em que o criador do falso perfil não pode ser identificado, sustentamos que os proprietários das redes sociais respondam pelos eventuais prejuízos suscitados pelas vítimas, na medida em que esse ambiente de insegurança foi criado pelas próprias redes sociais, cujos donos se negaram a investir em mecanismos de controle efetivo de ingresso, aproveitando-se de uma legislação omissa.

Enquanto tais medidas não forem adotadas pelas redes sociais virtuais, incidirá nos casos em análise a denominada “teoria do risco do negócio”, pela qual haverá obrigação de reparar o dano, independentemente da demonstração de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida por determinada pessoa implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Neste sentido, a posição de Bruno Miragem:

“Não parece haver dúvida que as atividades habitualmente realizadas na Internet - em caráter profissional, no mais das vezes, pelo provedor de conteúdo - dão causa a risco de danos a terceiros. Neste sentido, correta é a aplicação da cláusula geral de responsabilidade por risco, assinalando o caráter objetivo desta responsabilidade para o efeito de afastar a necessidade de demonstração da culpa do provedor de Internet. Destaque-se, naturalmente, que com isso não se afasta a necessidade de demonstração dos demais pressupostos da obrigação de indenizar (em especial, o dano e o nexo causal), mas aproxima sensivelmente o regime de responsabilidade do regime imposto aos fornecedores de serviço do Código de Defesa do Consumidor” (RDC 70, 2009, p. 41).

Ressalte-se: não estamos aqui a defender o controle prévio de conteúdo nas redes sociais. Estamos destacando a necessidade de identificação efetiva de usuários nesses ambientes para impedir a criação de falsos perfis.

Nos ambientes das redes sociais virtuais, em razão do papel intermediário de controladores do sistema pelos proprietários dessas redes, que tomam parte de uma certa forma nas atividades que neles são desenvolvidas pelos usuários, embora nem sempre exerçam um controle real sobre o conjunto das informações que neles circulam, essa participação poderia ser interpretada como implicando uma presunção de ciência do caráter ilícito da informação que se encontra no próprio sistema.

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O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou pela qualificação da questão como acidente de consumo, fazendo incidir a regra do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, admitindo na hipótese que a atividade do fornecedor, mesmo que aparentemente gratuita ao consumidor direto, teria presente o critério de remuneração indireta. Diga-se, com destaque, que é notório que os proprietários das redes sociais lucram altíssimos valores ano após ano de atividade.

Mas o STJ foi além e reconheceu também que, independentemente da participação da vítima nas redes sociais virtuais, o caso reclamará a incidência da norma do artigo 17 do CDC, a qual equipara a consumidores todas as vítimas do evento danoso, atraindo por conseguinte, a incidência do regime de responsabilidade da legislação consumerista aos casos concretos. Neste sentido:

"Direito do consumidor e responsabilidade civil. Recurso especial. Indenização. Provedor da Internet. Divulgação de matéria não autorizada. Responsabilidade da empresa prestadora de serviço. Relação de consumo. Remuneração indireta. Danos morais. Quantum razoável. Valor mantido.

Inexiste violação ao art. 3.º, § 2.º, do CDC, porquanto, para a caracterização da relação de consumo, o serviço pode ser prestado pelo fornecedor mediante remuneração obtida de forma indireta.

Quanto ao dissídio jurisprudencial, consideradas as peculiaridades do caso em questão, quais sejam, psicóloga, funcionária de empresa comercial de porte, inserida, equivocadamente e sem sua autorização, em site de encontros na Internet, pertencente à empresa-recorrente, como ‘pessoa que se propõe a participar de programas de caráter afetivo e sexual’, inclusive com indicação de seu nome completo e número de telefone do trabalho, o valor fixado pelo Tribunal a quo a título de danos morais mostra-se razoável, limitando-se à compensação do sofrimento advindo do evento danoso. Valor indenizatório mantido em 200 (duzentos) salários mínimos, passível de correção monetária a contar desta data. (STJ, REsp 566.468/RJ, j. 23.11.2004, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 17.12.2004)

Em julgado de 2009, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou a Google (Orkut) ao pagamento de danos morais. Segundo o ofendido, a mencionada rede social deixou que fosse criada página e divulgadas imagens e mensagens pejorativas, que desrespeitaram a sua vida privada, e o Google sequer forneceu o nome e IP de quem a criou, razão pela qual deveria arcar com a responsabilidade daí decorrente.

Em acórdão da lavra do relator Desembargador Saldanha da Fonseca, o Google foi condenado ao pagamento de danos morais pela violação perpetrada por terceiro não identificado, usuário da rede social Orkut:

“A evolução científica dos meios de comunicação mostra-se patente, com isso o mundo se diz globalizado, e as pessoas buscam se relacionar de forma intensa. Nessa senda criam supostas comunidades virtuais, onde fazem confidências, mesmo sabendo do risco da exposição. Noutra ponta temos um prestador de serviço, que disponibiliza os acessos virtuais e nada cobra, mesmo sabendo da probabilidade de dano à honra e imagem das pessoas.

(...)

Afinal, a criação de comunidades virtuais tem por finalidade aproximar pessoas de diferentes regiões de planeta que se denomina globalizado e não imputar a qualquer delas situação vexatória à sua honra e imagem. Por isso o prestador desse serviço deve agir com diligência e não dizer que são muitos os acessos e impossível é o controle do conteúdo (contas). Ora, muitos acessos são bons para o negócio, todavia, que os muitos acessos (para criação de conta) sejam precedidos de identificação do participante, já que a responsabilidade do prestador de serviço, conforme visto alhures, é objetiva, por força da doutrina do risco criado.

(...)

Concluindo, o prestador do serviço orkut responde de forma objetiva pela criação de página ofensiva honra e imagem da pessoa, porquanto abrangido pela doutrina do risco criado; decerto que, identificado o autor da obra maligna, contra ele pode se voltar, para reaver o que despendeu.” (TJMG, APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0701.08.221685-7/001, Décima Segunda Câmara, Rel. Des. Saldanha da Fonseca, j. 5.8.2009).

Em caso que pode ser utilizado por analogia, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina condenou a filial da Yahoo! no Brasil a indenizar uma jovem que teve publicadas fotos suas em momentos de intimidade com o ex-namorado. No caso, tratava-se de serviço de hospedagem de páginas na internet e não propriamente de uma rede social.

O princípio, todavia, é o mesmo e diz respeito à disponibilização de conteúdo ofensivo na rede mundial de computadores, mediante suporte fornecido por empresa, para que usuários tenham acesso e publiquem informações na internet:

“Em resumo, qualquer pessoa, utilizando-se de informações suas ou de terceiros e sem a necessidade de comprovar a autenticidade das mesmas, pode iniciar, de forma simples, rápida e fácil, a construção e hospedagem de seu site. E isto, diga-se, sem qualquer restrição de seu conteúdo, já que não há prévia avaliação do que é publicado - o controle é feito apenas a fortiori, caso haja denúncia ou constatação, pela própria Yahoo!, de violação aos termos de serviço.

Nestes termos, é evidente que a atividade realizada pela recorrente, na forma em que a mesma a exerce, traz riscos que a ela são inerentes. A possibilidade de se desvirtuar o serviço oferecido é grande, clara e de fácil implementação, pelo que não se pode deixar de considerá-lo como atividade de risco. Ao diminuir a segurança no cadastramento de forma intencional, a recorrente assume o risco do desvirtuamento e deve, por isso mesmo, responder por eventuais prejuízos decorrentes do mau uso do serviço. A internet ainda é um mundo sem patrulheiros e onde as pessoas não tem rostos, de modo que a segurança deveria ser a primeira prioridade de qualquer empresa que nela atua.” (TJSC, APELAÇÃO CÍVEL Nº 2007.038693-2, Segunda Câmara, Rel. Des. Sérgio Izidoro Heil, j. 12.4.2010).

Nesse caso, como nos demais, envolvendo proprietários de redes sociais, a condenação se impôs, dada a atividade considerada de risco, desenvolvida pelas empresas, bem como a absoluta falta de controle efetivo de ingresso e trânsito de informações.

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Sobre o autor
Marcelo Romão Marineli

Mestrando em Direito Civil pela PUC-SP. Professor de Direito Civil no Complexo Educacional Damásio de Jesus, carreiras jurídicas e curso preparatório para a OAB. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINELI, Marcelo Romão. Falsos perfis nas redes sociais virtuais: direito à identidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3700, 18 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25141. Acesso em: 1 mai. 2024.

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