Artigo Destaque dos editores

O Tribunal Militar Internacional para a Alemanha – Tribunal de Nuremberg:

seu caráter de exceção e o princípio da legalidade

Exibindo página 3 de 6
23/10/2013 às 13:14
Leia nesta página:

4.O princípio da legalidade e a aplicação de lei “ex post facto”

“- O senhor concorda comigo que esse documento foi obtido pela mais intolerável pressão e ameaça de agressão? É uma questão simples. O senhor concorda?

- Nesse sentido, não.

- Que outro tipo de pressão o senhor poderia impor sobre o chefe de um Estado que não seja ameaçá-lo de que seu exército marchará sobre ele, com força descomunal, e que a força aérea bombardearia Praga?

- Guerra, por exemplo.

- E o que é isso senão guerra?”[98]

4.1.Conceito do princípio da legalidade penal

Um dos princípios básicos da lei penal, talvez o mais essencial de todos, é o da legalidade, ou o princípio da reserva legal, ou ainda, da anterioridade da lei penal, também conhecido pelo famoso brocardo “Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege” (“Não há crime, não há pena sem lei anterior”).[99]

Julio Fabbrini Mirabete, que considera esse princípio norma básica do Direito Penal moderno (aquele posterior ao Iluminismo), assim o define:

“Pelo princípio da legalidade, alguém só pode ser punido se, anteriormente ao fato por ele praticado, existir uma lei que o considere como crime. Ainda que o fato seja imoral, anti-social ou danoso, não haverá possibilidade de se punir o autor, sendo irrelevante a circunstância de entrar em vigor, posteriormente, uma lei que o preveja como crime.

[…]

O postulado básico inclui também, aliás, o princípio da anterioridade da lei penal no relativo ao crime e à pena. Somente poderá ser aplicada ao criminoso pena que esteja prevista anteriormente na lei como aplicável ao autor do crime praticado.[100]

Nelson Hungria e Cláudio Heleno Fragoso, por sua vez, resumiram esse princípio numa simples frase, “Não há Direito Penal vagando fora da lei escrita.[101]

Já William A. Schabas define esse princípio como uma das regras que não apresenta qualquer derrogação na maior parte das convenções de direitos humanos, pois “uma pessoa não pode ser punida se os atos incriminados, quando praticados, não eram como tais em lei.”[102]

Ainda que essencial, esse princípio, todavia, encontra certa mitigação em algumas legislações penais atuais e passadas, como nos indica Mirabete:

“Na Inglaterra, não há nenhuma disposição constitucional expressa a esse respeito, e o Código Penal dinamarquês de 1930 estabelece que um fato é punível também quando 'inteiramente assimilável' a determinada incriminação. […] Na União Soviética, o princípio da reserva legal, suprimido desde 1919, foi novamente inscrito na legislação pelo Código Penal de 1960.[103]

Cumpre ressaltarmos, ainda, que, na Alemanha nazista, esse princípio também encontrou forte mitigação, como relata Mirabete: “Alterou-se na Alemanha nazista o Código Penal em 1935 para permitir-se a punição de qualquer fato segundo 'os princípios fundamentais do Direito Penal' e 'o são sentimento do povo.”[104]

Igor Pereira, ao debruçar-se sobre essa exceção ao princípio da legalidade na Alemanha de Hitler, assim entendeu como objetivo dessa alteração legal:

“A extrema mitigação do princípio da legalidade foi levada a cabo pelo nazismo, para atingir com mais facilidade os seus objetivos autoritários e eliminatórios. […] A partir daí o Direito Penal abriu escancaradamente as portas para a política criminal nazista, nulificando a importância da lei ao colocá-la em conjunto com o conceito de 'são sentimento do povo', que nada mais foi do que uma cláusula aberta para o morticínio. Se o princípio da legalidade nos permite trabalhar com a ideia de que sem legalidade só pode haver liberdade, a sua diluição na abstração do sentimento do povo nos leva à intelecção de que, na Alemanha  nazista, sem legalidade só há liberdade, caso o indivíduo estivesse em conformidade com o desejo do partido nacional socialista. Hungria identificou bem o mote das ideologias autoritárias: 'a necessidade não tem lei'. (Not kennt kein Gebot). O próprio absurdo do nazismo é um exemplo contundente da importância da legalidade para a liberdade de cada ser humano. Tanto que após a Segunda Guerra Mundial, o art. 2º do Código Penal Alemão foi declarado inaplicável e derrogado expressamente pelos aliados, tendo sido substituído por uma versão nova do princípio da legalidade [...][105]

Por outro lado, a lei penal instituída após a ocorrência do fato por ela declarada como criminoso, ou seja, a lei que retroage para declarar criminosos fatos pretéritos, é denominada de lei ex post facto.

Nas palavras do saudoso professor Hans Kelsen:

“[...] Blackstone, falando sobre 'métodos irracionais' de elaboração de leis, refere-se a 'leis ex post facto, quando, após uma ação (indiferente em si mesmo) é cometida, o poder legislativo, então, pela primeira vez, declara-a ter sido um crime e impõe uma punição sobre a pessoa que a cometeu.' Isto é uma lei penal retroativa […]

A regra estabelecida pela primeira vez pela jurisprudência romana foi incorporada pela doutrina do direito natural. […] Regular a conduta humana que teve lugar no passado é impossível. Se uma lei retroativa significa uma lei prescrevendo uma certa conduta do homem no passado, a regra contra legislação retroativa expressa uma necessidade lógica.

Essa foi, provavelmente, a ideia que sustentou a doutrina do direito natural da inadmissibilidade de leis ex post facto. Para entendê-la, devemos considerar que, de acordo com a doutrina do direito natural, o império da lei é uma norma prescrevendo diretamente a conduta desejada dos sujeitos, sem levar em consideração sanções atreladas à conduta contrária. Sanções não são essenciais à lei, uma vez que suas regras são derivadas da natureza ou da razão e evidentes ao homem como sendo providas de razão. Uma regra estabelecendo que os homens devem se comportar de um certo modo é sem sentido se refere-se ao passado e não ao futuro.[106]

Kelsen resumia a questão da irretroatividade da lei numa frase. Leis retroativas “são consideradas injustas, pois fere nossos sentimentos de justiça impor a um indivíduo uma sanção que ele não previu, já que essa sanção não estava ligada à sua conduta e, consequentemente, essa conduta não era ainda ilegal, no momento em que ele cometeu a ação ou omissão [...]”[107]

Os crimes de que eram acusados os réus em Nuremberg, descritos no art. 6º do Estatuto, eram, sem dúvida, crimes novos, uma vez que inexistia legislação que os previsse anteriormente. Dentre as acusações, certamente a Acusação numero 2 era a que despertava as maiores críticas.

4.2.A acusação número dois – Crimes contra a Paz

O art. 6º, alínea a, do Estatuto do Tribunal conferia a este competência para julgar “Crimes contra a Paz”, que consistiam, especificamente, em “planejar, preparar, iniciar ou mover uma guerra de agressão, ou uma guerra em violação a tratados, acordos ou compromissos internacionais, ou participar de um plano ou conspiração comum para a consumação de qualquer um dos atos anteriores”[108]

Segundo o Indiciamento, os réus eram acusados de terem promovido (compreendendo-se nesse verbo as condutas de planejar, preparar, iniciar e mover) guerras de agressão contra a Polônia, França, Reino Unido, Dinamarca, Noruega, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Iugoslávia, Grécia, União Soviética e Estados Unidos da América,[109] bem como de terem cometido atos de agressão anteriormente à deflagração da Segunda Guerra Mundial, tais como a remilitarização da Renânia, em 1935, e a ocupação da Tchecoslováquia, em 1939, sempre em violação de tratados internacionais.[110]

Era elemento do tipo o conceito de guerra de agressão, a qual, segundo Hermes Marcelo Huck, até hoje inexiste. Narra este, que, no período pré guerra, as nações chegaram próximo de definir o que seria uma guerra de agressão, sem, no entanto, atingirem um acordo definitivo quanto à questão:

“Durante a Conferência para redução e limitação de armamentos, que se realizou em 1933, o tema da agressão é amplamente debatido, e o representante da União Soviética apresenta uma proposta de definição enumerativa para o conceito. Segundo tal proposta, caracterizar-se-ia como agressor o Estado que primeiro cometesse atos de agressão, tais como declaração de guerra a outro Estado, invasão do território estrangeiro, com ou sem declaração de guerra, ataque praticado contra o território, navios ou aeronaves de outro Estado e a imposição de bloqueio naval. A Comissão de Assuntos de Segurança, criada no seio da própria Conferência, ao examinar a proposta soviética, adicionou à lista uma outra hipótese de agressão, qual seja, o apoio a grupos armados dentro do território do Estado agressor, com o objetivo de invadir o território de outro Estado, ou recusa, não obstante a solicitação do Estado invadido, em tomar as medidas necessárias em seu território para cessar a concessão de apoio e proteção aos referidos grupos. Essa proposta de definição enumerativa, criticada por sua grande rigidez, a ponto de não admitir a inclusão de outros tipos de atos igualmente agressivos, foi inserida no Projeto de Convenção para o Desarmamento, de 1933 [...]”[111]

Essa definição, como explica Huck, serviu de base para tratados firmados entre a URSS e alguns de seus países satélites (dentre eles os países bálticos)[112], mas não foi aceita pela ampla maioria das demais nações. Isto porque, o conceito de agressão, a ensejar sua ilegalidade, sempre suscitou divergências profundas entre os Estados, uma vez que, até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a guerra era vista como um direito soberano dos Estados.[113] Importante notar que, a Liga das Nações, criada em 1919, ao final da Primeira Guerra Mundial, já declarara a guerra de agressão legítima “se formalmente bem declarada e desfechada dentro dos prazos e condições do Pacto [da Liga das Nações]”, ainda que patente seu caráter 'moral ou politicamente injusta em seus objetivos e finalidades.”[114]

A ausência de uma definição de guerra de agressão foi vencida pelo Tribunal, como afirma Smith por meio da utilização frequente do segundo elemento do tipo do art. 6º, alínea a, o de “guerra em violação a tratados, acordos ou compromissos internacionais.” O Tribunal eximiu-se de definir o conceito de guerra de agressão, mas deparou-se, todavia, com complexa questão: os tratados que os réus teriam supostamente violado não traziam qualquer tipo de sanção ou responsabilidade ao indivíduo transgressor.[115]

Os tratados utilizados como base para a acusação de crimes contra a paz eram, essencialmente, o Pacto da Liga das Nações, firmado em 1919, e o Pacto de Paris, ou Tratado Briand-Kellog, firmado em 1928, ambos tratados aos quais a Alemanha aderira.

O primeiro trazia em seu art. 10 a seguinte disposição: “Os membros da Liga responsabilizam-se em respeitar e preservar contra agressão externa a integridade territorial e independência política existente de todos os membros da Liga.”[116]

O segundo estipulava em seu art. 1º que seus signatários “declaram solenemente, em nome de seus respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução de controvérsias internacionais, e renunciam a ela como instrumento de política nacional nas relações entre si.”[117] Para Gonçalves, esse artigo, bem como o tratado em si, não passavam de “uma declaração moral, para atender os anseios de uma forte corrente idealista das relações internacionais” ante o horror experimentado durante a Primeira Guerra Mundial.[118]

Outros tratados também tomados como base para a acusação eram as Convenções de Haia, firmadas em 1889 e 1907, e que instauraram um regime de segurança coletiva internacional que, conforme narra Gonçalves, “mostrou sua ineficiência em virtude da Grande Guerra [Primeira Guerra Mundial].[119]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Malgrado a existência desses tratados que, ao menos moralmente, tornavam ilegal a guerra de agressão, era costume no Direito Internacional de então, conforme suso exposto, a utilização da guerra como extensão da política externa nacional.[120]

A defesa dos réus, conforme diz Gonçalves, utilizou-se dessa ambiguidade para combater essa acusação. Para ela, não havia como imputar aos réus conhecimento de que a guerra de agressão tornara-se ilegal se, concomitantemente aos atos por eles praticados, outros países também o haviam feito. Ou seja, não havia como presumir que a guerra de agressão era ilegal ou até criminosa se ela era aceita, ainda que tacitamente, pelo costume internacional:

“Admitindo-se que havia um direito novo sendo moldado, que condenava a guerra de agressão, e que este direito convivia no sistema internacional com uma concepção jurídica que admitia a 'guerra como continuação da política', para que fosse a acusação dos crimes contra a paz aplicável aos acusados, deveriam estes, argumentava a Defesa, ter consciência daquele novel Direito. As provas de que os réus em Nuremberg recepcionavam o sistema jurídico nascente caberiam à Acusação. E, em caso de dúvida, deveria decidir-se em favor dos acusados. Diante de um direito em transição, não seria cabível uma interpretação que resultasse em condenação das condutas daqueles homens.”[121]

Kelsen nota que os tratados em comento não traziam, outrossim, qualquer proibição quanto ao planejamento, preparação ou iniciação de uma guerra de agressão, mas somente tornavam ilegal a utilização da guerra por um Estado. Esses tratados tampouco traziam qualquer estipulação quanto a responsabilidade penal individual daqueles que travassem esse tipo de guerra.[122]

Para ele, o Tratado de Briand-Kellog não tornava ilegal a guerra de agressão nos moldes que o Tribunal agora considerava. Isto porque, a guerra de agressão poderia ser definida como “uma guerra por parte de um Estado que é o primeiro a iniciar hostilidades contra seu oponente.” Dessa forma, quando a França e o Reino Unido, em 1939, “declararam guerra à Alemanha sem que tivessem sido por ela atacados, essa guerra era, tecnicamente, uma guerra de agressão, mas em completa conformidade com o Pacto Briand-Kellog e, dessa forma, legal.”[123]

Assim, ainda segundo Kelsen, uma guerra em violação a tratados era, em si, ilegal, mas não, necessariamente, uma 'guerra de agressão” como queria fazer crer o Tribunal.

O Tribunal, por sua vez, aplicou um entendimento bastante divergente à controvérsia em questão. Para ele, ao considerar que o Tratado Briand-Kelogg fora ratificado por 63 nações, incluindo a Alemanha:

“As nações que assinaram o Tratado ou aderiram a ele incondicionalmente condenaram o recurso a guerra no futuro como instrumento de política, e a renunciaram expressamente. Após a assinatura do Tratado, qualquer nação que utilize a guerra como instrumento de política nacional viola o Tratado. Na opinião do Tribunal, a renúncia solene da guerra como um instrumento de política nacional envolve, necessariamente, a proposição de que tal guerra é ilegal perante a lei internacional; e que aqueles que planejam e movem tal guerra, com suas terríveis e inevitáveis consequências, estão cometendo um crime ao fazê-lo.”[124]

Mais adiante, ao reconhecer que o Tratado de Briand-Kelogg não cominava expressamente nenhuma sanção quanto à violação de seus artigos, o Tribunal, traçando uma analogia com as Convenções de Haia, declarou que:

“A Convenção de Haia de 1907 proibiu a utilização de certos métodos de conduta de guerra. [...] Muitas dessas proibições já eram reforçadas muito antes da data da Convenção, mas, desde 1907, elas certamente tornaram-se crimes, puníveis como ofensas contra as leis de guerra; a Convenção de Haia, todavia, em nenhum momento declara tais práticas como criminosas, tampouco alguma pena é prevista, ou qualquer menção a uma corte para julgar e punir transgressores. Há muitos anos, porém, tribunais militares têm julgado e punido indivíduos culpados por violar as regras de guerra terrestre estabelecidas por aquela Convenção. Na opinião do Tribunal, aqueles que promovem guerra de agressão estão fazendo algo igualmente ilegal, e de muito maior gravidade do que a violação de uma das regras da Convenção de Haia.”[125]

O Tribunal também entendeu que, ainda que o conceito de guerra de agressão fosse indefinido, as nações haviam, certamente, prescrito sua utilização: “A resolução unânime [...] de vinte e uma repúblicas americanas da Sexta Conferência Pan-Americana, em Havana[126], declarou que ‘a guerra de agressão constitui um crime internacional contra a espécie humana’.[127]

Note-se que, o Tribunal optou por simplesmente justificar a declaração de que a guerra de agressão (ainda que indefinido seu conceito) era uma guerra ilegal e, portanto, criminosa.

Não bastava ao Tribunal, todavia, declarar criminosa a guerra de agressão.Se fazia necessário declarar a responsabilidade penal dos réus quanto à utilização desse tipo de guerra.

O Tribunal reconheceu, expressamente, que o Tratado de Briand-Kelogg não trazia nenhuma punição ao Estado que movesse uma guerra de agressão. Tampouco trazia qualquer sanção ao indivíduo, membro desse Estado, que participasse na conduta dessa guerra. Mas, nas palavras do Tribunal, “Crimes contra a lei internacional são cometidos por homens, não por entidades abstratas, e somente ao punir indivíduos que cometem tais atos podem as previsões da lei internacional serem reforçadas.”

Para o Tribunal:

“[...] a essência do Estatuto [do Tribunal] é que indivíduos possuem deveres internacionais que transcendem as obrigações nacionais de obediência impostas por seu Estado. Aquele que viola as leis de guerra não pode obter imunidade enquanto em execução da autoridade do Estado se o Estado, ao autorizar a ação, desloca-se de sua competência sob a lei internacional.”[128]

    Kelsen mais uma vez debruçou-se sobre a questão, apontando a inexistência de qualquer legislação, nacional ou internacional, que estabelecesse a responsabilidade individual de agentes de uma guerra por tê-la movido, ainda que esta fosse declarada ilegal. Ele atacou a decisão do Tribunal de utilizar-se da analogia com tribunais militares que aplicavam sanções a indivíduos com base na Convenção de Haia, pois “[esses tribunais] aplicam a lei positiva nacional, a lei do Estado que transformou as leis da Convenção de Haia - regras regulando a conduta na guerra - em sua própria legislação penal”[129], enquanto o Tribunal aplicava uma novel lei internacional, que nenhum Estado incorporara em seu ordenamento jurídico, e sobre a qual ainda residiam muitas divergências.

Ademais, Kelsen concordou com a tese de que violações ao Pacto Briand-Kelogg somente poderiam ser cometidas por Estados, não por indivíduos, ao contrário das previsões da Convenção de Haia, estas sim passíveis de violação por um indivíduo. Isto porque, nenhum indivíduo, sozinho, poderia mover uma guerra de agressão, mas somente sob as ordens de seu governo, estando acobertados pelo ato de Estado.[130]

Dessa forma, ao estabelecer responsabilidade penal a indivíduos pela violação ao Tratado Briand-Kelogg, o Tribunal “criou nova lei, ainda não estabelecida [...] ou válida como regra de Direito Internacional.”[131]

Kelsen concluiu, por fim, que o Tribunal, ao declarar a responsabilidade penal dos réus por Crimes contra a Paz, não poderia basear-se nos tratados internacionais então existentes, mas somente no Acordo de Londres, o que implicaria na aplicação de lei ex post facto: “Para o Tribunal eles [os réus acusados por guerra de agressão] eram criminosos, e isso significa passíveis de punição, somente sob a lei criada pelo Acordo de Londres, que é a única base legal do julgamento [...] e o Acordo de Londres [nesse sentido] certamente criou lei nova.”[132]

4.3 .Mitigação ao princípio da irretroatividade da lei penal

Os defensores da opinião de que, desconsideradas quaisquer argumentações quanto à aplicabilidade dos tratados aos quais a Alemanha pré-guerra aderira, Nuremberg não desrespeitou o princípio em comento, são unânimes em apoiar-se numa inovadora noção de mitigação do princípio do nullum crime, nulla poena sine previae lege.

Kelsen foi, sem dúvida, o mais aguerrido defensor dessa tese. Para o ilustre professor, muito mais importante do que considerar como injusto punir alguém por uma conduta que, à época em que ela fora cometida, não havia sanção aplicável, era analisar se a conduta em si, indiferente a época em que cometida, já não guardava um caráter de imoralidade intrínseca:

“Se é injusto não atar a um certo ato uma sanção se, por exemplo, um legislador omitiu punição pelo roubo de eletricidade porque ele não previu a possibilidade de tal ato, é certamente justo promulgar uma lei determinando tal sanção, mesmo com força retroativa, especialmente se o ato ou omissão é geralmente considerado como uma violação da moral ou outra norma maior, ainda que não ilegal.[...] Existe uma clara diferença entre uma lei retroativa por meio da qual um ato 'indiferente' em si ou 'inocente' quando realizado é atado a uma punição e uma lei retroativa por meio da qual um ato que era imoral ou, de qualquer outra forma, conflitante com uma norma maior, é tornado ilegal.”[133]

Kelsen ressalta que a absoluta irretroatividade da lei é fantasiosa, pois “[...] toda lei é retroativa, uma vez que altera a situação legal estabelecida sob uma lei anterior.”[134], ou seja, levando-se esse princípio ao pé da letra, “a regra contra leis retroativas evita qualquer mudança da lei.”[135]

Debruçando-se sobre a natureza dos crimes julgados em Nuremberg, Kelsen é categórico em reconhecer que os mesmos, ainda que não formalmente expressos em qualquer legislação, constituíam “violações abertas aos princípios da moral geralmente reconhecidos pelos povos civilizados” e, desse modo, descaradamente ilegais à época em que cometidos.[136]

O Tribunal, por sua vez, decidiu seguir essa linha de raciocínio, ao declarar, como aponta Smith, que o Direito não surgia somente de legislações e tratados: “o Direito surgia do costume e daquilo em que acreditavam os países 'civilizados' do mundo. […] Só havia inovação relativamente ao processo; a consciência pública internacional definira o crime [...]”[137]

Ademais, o Tribunal também reconheceu que:

“[...]a um soldado ter sido ordenado a matar ou torturar em violação às leis internacionais de guerra jamais foi reconhecido como defesa para tais atos de brutalidade. [...] O que se deve observar, conforme, em variados graus, as leis penais da maioria das nações, não é a existência da ordem, mas se a escolha moral era, de fato, possível.”[138]

Kai Ambos, ao debruçar-se sobre o tema, entendeu, a partir do legado de Nuremberg, por abarcar essa noção de mitigação do princípio da irretroatividade da lei penal dentro da figura da proteção da confiança, ou seja, de que não caberia ao Direito proteger o autor de uma conduta cuja criminalidade era por ele sabida, ainda que não houvesse lei que assim o estipulasse. Para tanto, bastaria que a criminalidade dessa conduta estivesse identificada pelos costumes internacionais da época:

“[...] é suficiente que a ação em questão seja punível segundo os princípios não escritos do direito consuetudinário. Pelo geral, isto é afirmado com o argumento de que os fatos em questão – guerra de agressão, crimes contra a humanidade e crimes de guerra – eram puníveis no momento do fato segundo o costume internacional.

Assim, o autor que cometeu tais fatos não poderia invocar sua confiança protegida, isto é, que ele confiava em que os fatos não eram puníveis. Antes bem, deveria ter sabido que sua conduta era punível.A violação da proibição da retroatividade não existe, portanto se esta é entendida como uma mera norma de proteção de confiança.”[139]

Ambos, outrossim, avança ainda mais na questão, procurando combater eventuais críticas à ideia de proteção de confiança (principalmente aquela que entende inexistir possibilidade de utilização do direito consuetudinário para estabelecer punições), justificando o afastamento do princípio da legalidade também perante o princípio de justiça:

“Desse modo, é possível sua desconsideração quando a justiça não exija a proteção do autor senão, justamente, seu castigo. Essa relativização e, ao mesmo tempo, carga normativa da proibição de retroatividade com um valor de orientação adaptável caso por caso foi sustentada em Nuremberg [...]”[140]

Kai Ambos, por fim, procura fulminar qualquer crítica à mitigação do princípio da legalidade delineando o Direito Internacional como um ordenamento jurídico dinâmico, do qual “não é possível exigir uma determinação formal, no sentido de um ordenamento jurídico escrito”, concordando, enfim, que no Direito Internacional “se há de tolerar um determinado grau de insegurança.”[141]

Mesmo ante essas justificativas, Kelsen nos lança uma observação contundente:

“Contra essa visão pode-se opor que o afastamento da regra contrária a leis 'ex post facto' é um dos métodos que tornaram o regime nazista tão odiado aos olhos do mundo civilizado, e que as forças que travaram uma guerra para destruir o regime nazista não devem aplicar seus detestáveis princípios.”

Termina Kelsen, porém com a brilhante afirmação, que resume bem a essência de qualquer controvérsia quanto ao assunto:

“[...] ninguém tem o direito de tomar vantagem do princípio de justiça que ele próprio não respeita. […] um assassino não pode se opor a pena de morte com o mandamento 'não matarás' […]  A não-aplicação da regra contra leis 'ex post facto' é uma sanção justa aplicada sobre aqueles que violaram essa regra e, portanto, abdicaram do privilégio de serem protegidas por ela.”[142]

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marcos Rafael Zocoler

Advogado. Bacharel pela Universidade São Judas Tadeu .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZOCOLER, Marcos Rafael. O Tribunal Militar Internacional para a Alemanha – Tribunal de Nuremberg:: seu caráter de exceção e o princípio da legalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3766, 23 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25599. Acesso em: 17 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos