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Judicialização da política

05/12/2013 às 06:31
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A Justiça Política, sem dúvida, pressupõe que o Estado resulte em atividades de cunho ético.

A Judicialização da Política é um fenômeno político-institucional que permeia a expansão do Poder Judiciário e a implicação de uma geração de direitos políticos de natureza negativa (se podemos dizer assim) e, portanto, impõe sanções ao exercício irregular do poder. O que reforçaria a tese geral dos direitos humanos, pois todo controle de abusos e excessos do Poder Político, como a corrupção pública, é uma garantia de preservação e de efetividade dos direitos sociais e coletivos.

Muito brevemente, pode-se dizer que a Judicialização da Política comporta algumas dimensões essenciais: 1) é um típico ativismo judicial; 2) há uma procedimentalização da democracia política – o que implica em adotar expedientes[1] inerentes ao Poder Judiciário[2]; 3) aproxima o ordenamento jurídico da soberania popular, pois leis antissociais podem/devem ser revistas[3]; 4) verifica-se a interdependência dos poderes.

De inspiração no direito estadunidense, especialmente no pensamento do filósofo e jurista Ronald Dworkin, com a Judicialização da Política, espera-se retratar o descompasso da ação pública e alicerçar a interdependência dos poderes:

Nos Estados Unidos, por exemplo, o Supremo Tribunal tem de decidir questões constitucionais importantes que também são questões políticas, como a de determinar se criminosos acusados têm direitos processuais que dificultam mais a implicação da lei [...] Quero indagar, porém se os juízes devem decidir casos valendo-se de fundamentos políticos, de modo que a decisão não apenas a decisão que certos grupos políticos desejariam, mas também que seja tomada sobre o fundamento de que certos princípios de moralidade política são corretos (Dworkin, 2001, p. 03 – grifos nossos).

É perfeitamente cabível a indagação de Dworkin – em saber se os juízes devem decidir casos valendo-se de fundamentos políticos – mesmo porque, desde Montesquieu, nunca se tratou de uma separação estanque entre os poderes. Observando-se como o filósofo francês, realmente é clara a correção de rota do poder que se opera com a Judicialização da Política. Para Montesquieu, o Estado é o princípio soberano e unificador da existência social.

A separação dos poderes induz o Governo Moderado e isto assegura institucionalmente a liberdade política. As leis próprias à Humanidade devem gerir o poder. O Governo Moderado – regulado pela lei humana – é o governo da razão, porque a lei é a razão. Mas, essa lei geral é induzida da observação da realidade social. O princípio é o que determina a lei; o que também é facilmente confirmado, pois a corrupção de tudo tem início na deturpação dos princípios.

No governo republicano, cabe dizer, a natureza e o princípio estão depositados no governo do povo e na virtude: o amor à res publica. A liberdade política, por seu turno, não é o governo ou o poder do povo, visto que equivale à liberdade vigiada pela lei. Sem lei, ninguém é livre. Já o Governo Moderado, é óbvio, é o governo de poder limitado pela lei e pelas garantias asseguradas à liberdade política. Para que seja impossível abusar do poder, é preciso que o poder freie o poder.

A moderação do poder resulta da distribuição racional das forças disponíveis. O governo atribuído à lei racional não se filia ao acaso e nem implora pelo socorro da prudência – o governo da lei é previdente. No governo equilibrado, o poder distribuído faz com que se desista do desvio de cada função. Portanto, o povo (como um todo) e o governo devem temer a magistratura (não os magistrados). O Legislativo deve se amparar na soberania popular e ser vigia do Executivo.

Do que se depreende que a lei racional é produto da abstração ou depuração das vontades particulares – neste que é um fenômeno inerente à representação política. Nobreza e povo devem se controlar, nas Câmaras Alta e Baixa, do passado, e no Senado e na Câmara Federal, do presente. Ambas deveriam legislar para impedir os excessos. Contudo, isto só ocorrerá se o movimento desses poderes fluir em concerto, como forma-cooperada e não em separação estanque e impotente (como potências isoladas). Manter o vínculo entre os poderes será uma das funções precípuas do Executivo. O abuso do poder, então, é toda ação excessivamente unilateral (Châtelet, 2000, p. 60).

No que compete ao Judiciário de hoje em dia, indagaria se é possível decidir-se sem combinação política, ideológica, filosófica, moralista, ao menos em forma de consciência política geral, conjuntural. É (ultra)passado o tempo das crenças na imparcialidade, tecnicidade, isenção de todo ânimo pessoal (até porque a moral pública implica em valores). É uma fuga à consciência e à análise realista imaginar que decisões (de qualquer natureza) não sejam impregnadas de valores, preceitos e, evidentemente, preconceitos.

É evidente que as decisões judiciais devem ter menos preconceitos do que as disposições políticas, mas toda ação humana se estabelece entre meios e fins, e isto em si indica que escolhas são feitas com base em valores[4]. Reconhecer a natureza política dos fatos sociais e jurídicos é, enfim, o melhor remédio ético para se diagnosticar, evitar ou corrigir os preconceitos.

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Neste sentido, vale frisar que também os excessos do Poder Judiciário são politizados nos EUA, como se vê no uso do Recall Judicial[5] e do Veto Popular[6], e que são ações de controle popular de constitucionalidade do Judiciário ou de controle externo e popular do próprio Poder Legislativo (Dallari, 2000).

De qualquer forma, uma legislação que afronte a Justiça Ética e a efetividade material dos direitos fundamentais sociais poderia ser corrigida – além de se atender à necessária aproximação/vinculação entre a soberania constitucional e a soberania popular, de acordo com os preceitos e patamares civilizatórios demarcados pelo atual Estado Democrático de Direito Social[7]. Este que é um tipo ideal de Estado Democrático em que o direito socorre a sociedade (por vezes, contra o Estado) e é o primeiro e o ultimo bastião em defesa das garantias e dos próprios direitos sociais.

A Justiça Política (Höffe, 2006) tem muitas implicações diante da Judicialização da Política, uma vez que se cobra do Poder Público uma atuação Ética e de acordo com a soberania popular. O que inclui, evidentemente, uma legislação democrática e um profundo senso de responsabilidade pública.

Todo excesso administrativo ou desvio de função, como a corrupção evidenciada nos últimos tempos, é óbvio, forçam o Poder Político em seus recursos e obrigam o Estado a abdicar de atender determinadas áreas que são essenciais. Por causa da corrupção, morrem crianças e idosos, homens e mulheres, sofrem todos os pobres e desassistidos. A reserva do possível, certamente, teria um sarrafo bem mais baixo se os recursos públicos (já escassos) não fossem desviados e se as verbas públicas fosse utilizadas com capacidade técnica, sem desperdício.

Enfim, conclui-se que o meta-valor ético deve suplantar a mais-valia econômica. Mas, a pós-modernidade será capaz disso? Hodiernamente, somos todos reféns da ânsia econômica e do realismo político que cobra cada vez por melhores resultados e pragmatismos eleitoreiros. Portanto, diante desses e de tantos outros desafios, como mais-valor político, nosso dilema já no início do século XXI é verificar na política alguma integridade ética. A Justiça Política, sem dúvida, pressupõe que o Estado resulte em atividades de cunho ético.

Não é um contrassenso, mas sim uma justiça histórica, epistemológica, pensarmos o Estado como Polis que se organiza a partir de valores humanos e com base na urbanidade e na convivialidade. Nossos maiores problemas têm algo em comum com os embates dos séculos XVI-XVII, como séculos decisivos de aspiração/demarcação do direito político burguês, e que se trata precisamente de refrear o abuso, o descalabro, a impropriedade moral do poder constituído.


Bibliografia

CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; KOUCHNER, Evelyne. História das Ideias Políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21ª ed. São Paulo : Saraiva, 2000.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo : Martins Fontes, 2000.

HÖFFE, Otfried. Justiça Política. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.

WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.


Notas

[1] No sentido empregado por Max Weber (1979), para expressar a racionalidade administrativa capitalista.

[2] http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_34/rbcs34_09.

[3] Mais ainda se são inconstitucionais ou se violam a Justiça Social.

[4] Mesmo os valores morais globais, como os direitos humanos, podem chocar-se com determinadas orientações culturais ou morais em espécie. De certo modo, é este o componente de que se abastece o multiculturalismo.

[5] Preconizado por Theodore Roosevelt, em 1912, prevê uma revisão de decisão judicial antipopular, também em forma de referendo.

[6] O veto popular tem semelhanças com o referendo, pois após a aprovação de um texto legal, o povo tem entre 60/90 dias para requerer sua aprovação.

[7] Martinez, 2013.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Judicialização da política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3809, 5 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26003. Acesso em: 24 abr. 2024.

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