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O papel central que adquiriram os princípios jurídicos no constitucionalismo a partir de meados do século XX:

a abordagem de Dworkin versos a abordagem de Alexy

11/12/2013 às 06:11
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A partir de meados de século XX, as teorias principiológicas do Direito destacaram o papel central dos princípios jurídicos na interpretação do Direito e no constitucionalismo. Workin e Alexy ocupam posições distintas nessa abordagem principiológica.

As teorias positivistas concebiam o ordenamento jurídico como um sistema fechado de regras, cuja compreensão seria independente da política e da moral. Para o positivismo, a noção de segurança jurídica era mais importante do que a ideia de justiça, enquanto pretensão de correção normativa. Nesse sentido, o problema da fundamentação do Direito é puramente procedimental, ou seja, refere-se unicamente à sua gênese, deixando o problema do conteúdo das normas para outros ramos do conhecimento humano, como a moral, a política, a sociologia, a história, etc (SCOTTI, 2013, p. 01-02).

Os positivistas até reconheciam a base teórica linguística do ordenamento jurídico e, consequentemente, reconheciam o seu caráter impreciso, indeterminado ou lacunoso. Também reconheciam que a pretensão de regulação de todas as possíveis condutas por meio de regras abstratas era uma tarefa impossível, em face da estrutura aberta da linguagem (SCOTTI, 2013, p. 03).

No entanto, diante dos casos que não podem ser solucionados com recurso a uma regra jurídica suficientemente clara, os hard cases, os positivistas entendiam que a saída era o decisionismo, ou seja, “A discricionariedade do juiz preencherá o espaço não regulado pelas regras jurídicas expressamente positivadas” (SCOTTI, 2013, p. 03). E para isso, a própria ciência do direito de Kelsen não podia assegurar “qualquer moldura de interpretações que vincule as autoridades competentes para decidir” (SCOTTI, 2013, p. 03), podendo essas autoridades valerem-se de fundamentos extrajurídicos.

Para os positivistas, o juiz, ao fazer uso de sua discricionariedade, estaria criando uma nova regra e aplicando-a retroativamente, por mais que ele se esforçasse para dar a entender que estaria simplesmente aplicando um direito preexistente, tentando assim salvaguardar a ficção da segurança jurídica (SCOTTI, 2013, p. 04).

Contudo, o grande problema da teoria positivista com o seu decisionismo foi querer igualar as atividades legislativa e judicial. Scotti (2013, p. 05) expõe muito bem essa confusão de argumentos de política e argumentos de princípio, perpetrada pelos positivistas:

A teoria positivista da interpretação, ao igualar em essência as tarefas legislativa e judicial, especialmente diante de hard cases, nivela as distintas lógicas subjacentes, causando uma profunda confusão entre argumentos, cuja distinção é cara a toda a estrutura política das sociedades modernas: argumentos de política e argumentos de princípio. Os primeiros se referem à persecução de objetivos e bens coletivos considerados relevantes para o bem-estar de toda a comunidade, passíveis de transações e compromissos, enquanto os segundos fundamentam decisões que resguardam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo assim um papel de garantia contra-majoritária.

Todavia, a partir de meados do século XX, Ronald Dworkin começou a demonstrar as insuficiências das teses positivistas, tendo como ponto de partida a distinção entre regras e princípios e a afirmação da natureza deontológica destes últimos. Com Dworkin, fomos capazes de apreender “a tessitura aberta ou indeterminada, principiológica, de todo o ordenamento jurídico” (CARVALHO NETTO, 2013a, p. 01).Scotti (2013, p. 07), com bastante acuidade, identifica essas insuficiências das teses positivistas, ao afirmar que:

A leitura positivista do direito como um sistema auto-suficiente de regras, que pretendem regular com alto grau de precisão suas situações de aplicação, deixa escapar a dimensão central de qualquer ordenamento jurídico pós-convencional: sua estrutura principiológica, necessariamente, indeterminada em abstrato, embora determinável em concreto, aberta hermeneuticamente à construção intersubjetiva dos sentidos das normas universalistas positiviadas enquanto direitos fundamentais.

Assim, a partir desses influxos teóricos, os princípios passaram a ocupar papel central no constitucionalismo, dada a natureza necessariamente principiológica do texto constitucional, sobretudo das normas que estipulam direitos fundamentais.

O modelo interpretativo proposto por Dworkin é uma crítica ao modelo interpretativo defendido pelo positivismo. Segundo Dworkin (1985, p. 04), “O modelo distingue entre direito positivo – o direito nos livros, o direito apresentado nas declarações evidentes das leis e das decisões passadas das cortes – e o direito como um todo, que aceita a estrutura dos princípios da moralidade política, tomados em conjunto como a melhor interpretação do direito positivo”.

Essa concepção de hermenêutica jurídica vai de encontro à tese positivista de que a interpretação é o processo de recuperação da “intenção” do autor histórico do material a ser interpretado, ou seja, de que a interpretação volta-se para algo como a mens legislatoris, a vontade dos pais fundadores ou uma vontade geral.

De acordo com a teoria Dworkin, haverá, em cada caso, uma única norma adequada à suas especificidades e aos interesses em jogo. Cabe ao juiz então descobrir qual é essa norma. É a ideia da “única resposta correta” de Dworkin. Nesse sentido, a hermenêutica jurídica é assim um exercício de interpretação construtiva de uma prática social (AZEVEDO 2013, p. 22).

A teoria dos princípios de Robert Alexy também adota a distinção proposta por Dworkin entre regras e princípios. Porém, essa distinção seria inerente à própria estrutura das normas jurídicas. As regras seriam normas cogentes e determinantes de conduta, imperativos definitivos, ao passo que os princípios seriam comandos de otimização (AZEVEDO, 2013, p. 05).

Alexy (1988, p. 143-144) extrema regras e princípios da seguinte forma:

El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que se realice algo em la mayor medida possible, en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas. Los principios son, por consiguiente, mandados de optimización que se caracterizan porque pueden ser cumplidos en diversos grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas. El campo de las posibilidades jurídicas está determinado a través de princípios y reglas que juegan en sentido contrário. En cambio, las reglas son normas que exigen un cumplimiento pleno y en na medida, pueden siempre ser sólo o cumplidas o incumplidas. Si una regla es válida, entoces es obligatório hacer precisamente lo que ordena, ni más ni menos. Las reglas contienen por ello determinaciones en el campo de lo posible fáctica e jurídicamente. Lo importante por ello no es si la manera de actuar a que se refiere la regla puede o no ser realizada em distintos grados. Hay por tanto distintos grados de cumplimientos. Si se exige la mayor medida posible de cumplimiento en relación com las posibilidades jurídicas y fácticas, se trata de un principio. Si solo se exige una determinada medida de cumplimento, se trata de uma regrla.

Para essa teoria, os princípios, embora jurídicos, não seriam propriamente imperativos, mas meramente orientadores, pois sua aplicação é condicionada fática e juridicamente. Nesse contexto, essa teoria nega o próprio caráter deontológico aos princípios, pois afirma que os princípios não trazem em si um dever ser, mas sim um valor moral que pode ser atendido de diversas maneiras e proporções variáveis (AZEVEDO, 2013, p. 05).

Segundo essa teoria, na aplicação do direito, as regras submetem-se à técnica da subsunção e os princípios à técnica da ponderação. As regras, por conterem em si todas as suas situações de aplicação, não requerem interpretação, sendo suficiente a sua subsunção ao fato, tratando o direito como um dado a priori, pronto e acabado, ou seja, como um fato. Já aplicação dos princípios deve dar-se mediante o método da ponderação proporcional de valores, que se encontram escalonados hierarquicamente. Assim, para Alexy, a aplicação da norma jurídica deve contemplar, simultaneamente, todos os possíveis princípios jurídicos aplicáveis ao caso concreto, graduando-o, proporcionalmente, conforme um escala de importância (AZEVEDO, p. 03).

No entanto, o grande problema da teoria de Alexy foi ter equiparado, tal como o fez o positivismo, a atividade de aplicação do direito à atividade de legislação, ao transformar o problema da aplicação das normas num problema ético, portanto, externo ao direito. Essa questão foi muito bem elucidada por SCOTTI (2013, p. 16-17) ao afirmar que:

A tarefa propriamente de aplicação dos princípios é então recusada por Alexy, ao considerá-la como algo idêntico à legislação, uma atividade de balanceamento de valores concorrentes, passíveis de tratamento metodológico e hierarquizado. Direitos, entendidos como interesses, devem assim ser sacrificados de acordo com o seu grau de relevância, e os princípios ensejam múltiplas possibilidades de decisão correta à discricionariedade do aplicador.

E essa confusão de atividades se deu por meio da equiparação dos princípios a valores, consoante se depreende da seguinte afirmação:

Toda colisión  entre princípios puede expressarse como una colisión entre valores y viceversa. La única diferencia consiste en que en la colisión entre principios se trata de la cuestión de qué es debido de manera definitiva, mientras que la solución a una   colisión entre valores contesta a qué es de manera definitiva mejor. Principios y valores son por tanto lo mismo, contemplado en un caso bajo un aspecto deontológico, y en otro caso bajo un aspecto axiológico (ALEXY, 1988, p. 145).

Dessa forma, ao negar o caráter deontológico aos princípios, equiparando-os a valores e permitir que decisão judicial seja fundada em argumentos extrajurídicos, ou seja, em preferências axiológicas do julgador, a teoria de Alexy acaba por cair no mesmo “decisionismo” da teoria positivista.

Além disso, ao afirmar que as regras já contem em si a sua própria forma de aplicação e, como tais, não requerem interpretação, e ao reservar o conceito de argumentação jurídica à tarefa de ponderação de valores, essa teoria transforma a aplicação do direito numa mera questão de fato, numa mera questão de lógica jurídica, tal como concebia o positivismo.

Portanto, a teoria de Alexy nada mais representa que “tentativas de reduzir a interpretação jurídica a fórmulas matematizantes e a modelos prévios de compreensão” do direito (AZEVEDO, 2013, p.02).

Conforme visto acima, a teoria Dworkin defende que haverá, em cada caso, uma única norma adequada à suas especificidades e aos interesses em jogo. Cabe ao juiz então descobrir qual é essa norma. Robert Alexy, ao fazer a leitura dessa teoria de Dworkin, entendeu que ela requereria um consenso sobre sua correção.

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No entanto, segundo SCOTTI (2013, p. 16), Alexy não compreende bem a ideia acerca da “única decisão correta”, pois a teoria de Dworkin não tem a pretensão de cunhar um procedimento metodológico “racional” capaz de fornecer a correção das decisões jurídicas. Ao revés, trata-se de “uma postura hermenêutica diante do caso, dos princípios jurídicos de todo o ordenamento e da história institucional”, cuja racionalidade é bastante limitada. Busca-se fazer do objeto interpretado (o direito) o seu melhor, trazer a melhor luz ao direito.

Na opinião de SCOTTI (2013, p. 08), a teoria da única decisão correta de Dworkin deve ser entendida “não enquanto mandamento inscrito a priori nas normas gerais e abstratas, mas como uma postura a ser assumida pelo aplicador em face das questões aparentemente não reguladas apresentadas pelos hard cases, de densificação dos sentidos abstratos em face de um compartilhamento existente, embora sempre passível de ser problematizado e polemizado, do sentido vivencial dos princípios jurídicos”.

Portanto, a ideia de única decisão correta de Dworkin remete ao sentido vivencial dos princípios jurídicos, presente em determinada comunidade de princípios. Os princípios são componentes necessariamente presentes na autocompreensão normativa das sociedades pós-convencionais, “em contextos epistemologicamente cientes da contingência e precariedade da validade e verdade de proposições linguísticas” (SCOTTI, 2013, p. 08).

E é exatamente em função dessa dimensão vivencial, pragmática dos princípios que não se atribui a eles (aos princípios) uma natureza metafísica, mas claramente social, histórica e intramundana. Eis aí os elementos filosóficos, históricos, políticos e psicológicos que reforçam essa leitura constitucional principiológica.

A teoria de Alexy concebe que somente as regras criam os direitos. O direito não é criado pela institucionalização de discursos jurídicos voltados para a solução de conflitos. Ele é um dado, outorgado, pela regra. Somente os direitos baseados em regras seriam “direitos definitivos”, pois somente essas espécies normativas já trariam em si suas próprias condições de aplicação, o que afastaria a possibilidade de interpretá-las, as quais devem ser aplicadas por mera subsunção. Nesse sentido, o direito é concebido como um dado a priori contido na norma (AZEVEDO, p. 06).

Além disso, para Alexy, o nível das regras precede prima facie ao nível dos princípios na tarefa de aplicação (SCOTTI, 2013, p. 14), ou seja, as regras teriam precedência em relação aos princípios na tarefa de aplicação.Já para Dworkin, as regras, por mais simples que sejam, também têm aplicação principiológica, pois a compreensão de regras específicas e bem determinadas requer um contextualização que permita atribuir-lhes um sentido coerente com as demais normas do ordenamento jurídico, tal como ocorre com os princípios, a fim de que se mantenha a integridade do direito como um todo (AZEVEDO, 2013, p. 35).

Por outro lado, as regras, por mais que pretendam ser completas, nunca serão capazes de prever suas condições de aplicação, pois a cada instante surgem situações concretas de aplicação que jamais poderiam ser previstas por qualquer legislador, pois a realidade é viva e requerer a todo instante um novo olhar e uma nova compreensão, daí que a ideia de “direitos definitivos” de Alexy afigura-se equivocada (AZEVEDO, 2013, p. 37).

Ademais, em Dworkin, regras e princípios possuem a mesma dignidade normativa, não havendo entre eles relação de precedência, sendo que ambos podem ser base para o reconhecimento de direitos.

Em resumo, pode-se dizer que Robert Alexy faz uma leitura axiológica do ordenamento jurídico enquanto Ronald Dorkin faz uma leitura deontológica desse mesmo ordenamento jurídico. O primeiro concebe os princípios como valores e defende que a solução de eventuais conflitos entre eles deve ser feito mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, com uso de ponderação de bens. Já Dworkin entende que o conflito aparente entre princípios é um conflito entre normas jurídicas e, como tal, deve ser resolvido mediante o reconhecimento do caráter deontológico dos princípios, tendo em vista o caso concreto e considerando o direito em sua integridade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
Jose Domingos Rodrigues Lopes

Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB. Procurador Federal (PGF/AGU) atuante no STJ e STF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Jose Domingos Rodrigues. O papel central que adquiriram os princípios jurídicos no constitucionalismo a partir de meados do século XX:: a abordagem de Dworkin versos a abordagem de Alexy. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3815, 11 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26109. Acesso em: 16 abr. 2024.

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