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Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica

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31/01/2014 às 10:50
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A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é instituto que se consolidou no sistema jurídico brasileiro e uma vez instituída, quer no Código de Defesa do Consumidor, no Código Civil ou na Lei Econômica, se faz necessário a regulação da forma pela qual deve o juiz conhecer da mesma

Resumo: Este estudo procura examinar a desconsideração da personalidade jurídica, considerando sua aplicação e inclusão no sistema jurídico em vigor, mencionando as teorias à mesma possível de compreensão. Para depois analisar, comparativamente, o incidente criado no anteprojeto do Código de Processo Civil para possibilitar a desconstituição da personalidade jurídica e as alterações introduzidas, com direção ao cumprimento dos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa, celeridade, tempo razoável do processo, dentre outros.

Palavras-Chaves: Anteprojeto do Código de Processo Civil. Incidente. Desconsideração da personalidade jurídica.

SUMÁRIO: Introdução. 1-Personalidade jurídica. 2-Teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 2.1 – As teorias denominadas maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica. 2.2 – O abuso de direito e a fraude para a desconsideração da personalidade jurídica. 3 – A desconsideração da personalidade jurídica perante algumas das legislações em vigor. 3.1 – No Código de Defesa do Consumidor. 3.2 – Código Civil de 2.002. 3.3 – Direito Econômico. 3.4 – Direito Tributário. 3.5 – Direito do Trabalho. 4 – A desconsideração no processo civil e o incidente previsto no anteprojeto do novo Código de Processo Civil. 4.1 – Aspectos processuais. 4.2 – No anteprojeto do novo Código de Processo Civil. 5- Conclusão.


Introdução:

Os estudos atuais do Direito Processual Civil não podem ser feito mais de forma isolada, porque a Constituição Federal de 1988 contém alguns princípios que têm amplo alcance em vários ramos do direito e dentre eles o Direito Processual Civil. Por esse motivo os estudos em Direito Processual Civil só podem ser realizados então mediante a conjugação dos princípios constitucionais sobre a matéria processual, uma vez que a Constituição possui ascendência sobre as normas processuais[1] e estas devem ser interpretadas sob a luz daquela e devem estar em conformidade com ela e assim deve ser para permitir que o processo venha a ser ferramenta cujo resultado possibilite o cumprimento dos princípios, direitos e garantias naquela previstos.

O mais relevante desses princípios é o que se denomina como princípio do devido processo legal e a ele estão vinculados os princípios da inafastabilidade do controle da jurisdição, do contraditório, da ampla defesa e da necessidade de motivação das decisões judiciais.[2] O cumprimento desses princípios, o respeito a eles, confere condições para asseverar as garantias e os direitos constitucionais, dentre os quais o da igualdade, o do acesso à justiça, do direito adquirido, ato jurídico perfeito e da coisa julgada, todos aplicáveis ao Direito Processual Civil, conforme se conclui da análise do art. 5º da Constituição Federal.

E para permitir a incidência desses princípios e garantias constitucionais contidos na Constituição Federal de 1988, foi o Código de Processo Civil submetido a algumas modificações ao longo dos anos que se seguiram a vigência dela, como se percebe com a edição das Leis 8.455, de 24.8.92; 8.637, de 31.3.93; 8.710. de 24;9.93; 8.718, de 14.10.93; 8.898, de 29.6.94; 8.950, de 13.12.94; 8.951, de 13.12.94; 8.952, de 13.12.94; 10.352, de 26.12.2001; 10.358, de 27.12.2001; 10.444, de 7.5.2002; 11.187, de 19.10.2005; 11.232, de 22 de dezembro de 2005; 11.276, de 7.2.2006; 11.277, de 7.2.2006; 11.280, de 16.2.2006.

Essas várias modificações ao Código de Processo Civil suscitaram, no espírito de alguns doutrinadores, que ao mesmo se deu o enfraquecimento da coesão[3] e deveria ser preservada a forma sistemática das normas processuais, no que resultou na criação de um anteprojeto de lei para novo Código de Processo Civil, onde procuraram os autores do mesmo aplicarem as mudanças necessárias na busca da eficácia da prestação jurisdicional. E assim foi reconhecido na exposição de motivos desse projeto de lei: “Há mudanças necessárias, porque reclamadas pela comunidade jurídica, e correspondentes a queixas recorrentes dos jurisdicionados e dos operadores do Direito, ouvidas em todo país. Na elaboração deste Anteprojeto de Código de Processo Civil, essa foi uma das linhas principais do trabalho: resolver problemas. Deixar de ver o processo como teoria descomprometida de uma natureza fundamental de método de resolução de conflitos, por meio do qual se realizam valores constitucionais”[4].

Diante dessa oportunidade da criação de um novo código, cabe aos doutrinadores colaborar com o legislador para o estudo e análise das leis processuais e proporem os ajustes e correções necessárias para a aplicação do novo código, pois os doutrinadores podem apresentar aspectos da vida comum que observaram e observam e assim contribuírem com essa experiência para a melhora do sistema processual, na medida em que estabelecido os critérios norteadores deste, donde a aplicação do conteúdo do mesmo não poderá mais variar, permitindo com isso que a nova lei dê a certeza, a segurança aos indivíduos de seus deveres e direitos, com o que possibilitará a eles notar que a lei lhes está presente, e não é uma abstração distante, estando a mesma atuando no centro da vida de todos.

Busca-se então conseguir que as leis sejam aplicadas de forma igual para todos os casos iguais, pois cabe também à lei processual possibilitar de maneira antecipada o estabelecimento dos critérios que serão aplicados para a solução do caso concreto, uma vez estabelecidos os direitos, revelando aos indivíduos que a lei será sempre aplicada em idênticas circunstâncias para todos, sem hesitação, tendo a certeza que seus deveres e direitos estarão garantidos e que a lei lhe é o limite da liberdade, pois o princípio da legalidade tem também implícito o princípio da dignidade moral de todos, com a observância de cada indivíduo que, está na lei a garantia da liberdade de cada pessoa e para casos iguais serão tratados igualmente.

É fundamental para o fim pretendido pelo anteprojeto do novo código alcançar e tornar efetivo, eficaz a aplicação do princípio da isonomia, porque a igualdade assegurada na Constituição está voltada para que a própria lei não desobedeça a esse princípio, atingindo o aplicador do direito e também o legislador. É o que orienta Celso Antônio Bandeira de Mello, ao dizer que o “preceito magno da igualdade como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas”[5]

Do exame realizado ao anteprojeto do novo Código de Processo Civil, destaca-se a preocupação ao respeito ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, combinada com a efetiva busca da aplicação do princípio da isonomia e respeito também ao princípio da legalidade. Verificando uma das novas propostas desse anteprojeto, ressalta a atenção do estudioso a criação do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, previsto no art. 62 de referido anteprojeto, porque esse incidente confere oportunidade às partes do pleno exercício do princípio do contraditório, pois no atual Código de Processo Civil inexiste esse incidente e a decisão judicial referente a concessão da desconsideração da personalidade jurídica se dá, muitas vezes, sem que a parte por ela alcançada tivesse exercido o princípio da contraditório e da ampla defesa. Nota-se assim a relevância que esse incidente previsto no anteprojeto do Código de Processo Civil possui, a merecer seu particular estudo e consideração.

Neste breve trabalho, pretendido é lembrar para o estudo desse incidente a história sobre a definição de pessoa física e pessoa jurídica e as peculiaridades e atributos de cada uma delas, pois conhecida é a regra geral segundo a qual “o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o patrimônio dos sócios que a compõem”, e, portanto, situações surgem, advêm a provocar a não incidência dessa regra geral, existindo por isso exceções, e dentre elas há a permissão para incidir a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. O estudo mencionará as teorias que foram criadas a respeito da desconsideração da personalidade jurídica, quais os requisitos necessários para sua aplicação e como se dá à impugnação a essa decisão. Para depois ser lembrada a possibilidade de sua ocorrência no direito positivo brasileiro e o exame do âmbito processual da aplicação do incidente criado pelo anteprojeto do Código de Processo Civil, observando os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.


I - A PERSONALIDADE JURÍDICA

Todo sistema jurídico contém regras para regular a conduta dos integrantes de uma sociedade. Ao longo dos tempos o direito foi evoluindo e nessa passagem da criação destacou-se a figura do reconhecimento de um grupo de homens que juntos buscam um fim lícito e possível, mediante trabalho industrial ou de prestação de serviços, ou ainda comercial, e dele se reconheceu ser diferente da pessoa física ou natural, podendo, assim como esta, participar de relações jurídicas, atuando com deveres e possuindo direitos.

O atual Código Civil, em seu art. 1º, dispõe de forma explícita: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”; com essa afirmação permite o legislador alcançar a conclusão em ser toda pessoa sujeito de direito e preocupou-se o legislador de 2002 em regular num Capítulo, os direitos da personalidade (arts. 11 a 21). No entanto não é somente o homem que possui deveres e direitos, uma vez que esse homem ao se agrupar com outros, visando fim diverso do individual, forma um grupo ao qual se é também reconhecida a sua existência e a lei confere direitos e obrigações, sendo esse grupo denominado como pessoa jurídica ou pessoa moral, tendo o atual Código Civil regulado tal figura no art. 40 e seguintes, como se vê no Título II do Livro I do referido Código, e da inteligência desses dispositivos percebe-se que a pessoa jurídica ou pessoa moral tem uma existência que não se confunde com a das pessoas daqueles homens que a integram, portanto tem diversa personalidade.

A partir da admissão, do reconhecimento das pessoas jurídicas, como sujeito de direito e de obrigação, advieram algumas teorias para explicar esse fenômeno e sua natureza. Dessas teorias, no atual quadrante da evolução do direito, devemos examinar apenas duas, as mais atuais, quais sejam, a Teoria da Instituição e a Teoria da Realidade Técnica.

A teoria da instituição, a qual está vinculada ao jurista francês Maurice Hauriou, teria por finalidade sustentar ser a pessoa jurídica uma instituição destinada para a realização de um trabalho próprio, com o atendimento de uma finalidade.[6] Para a teoria da realidade técnica as pessoas jurídicas são realidades admitidas pelo direito, porque ela é criada, é admitida a contar da realidade e não pelo direito, e não se confunde com os homens.

A Teoria da Realidade Técnica é bem elucidada por Caio Mario da Silva Pereira: “O jurista moderno é levado, naturalmente, à aceitação da teoria da realidade técnica, reconhecendo a existência dos entes criados pela vontade do homem, os quais operam no mundo jurídico adquirindo direitos, exercendo-os, contraindo obrigações, seja pela declaração de vontade, seja por imposição da lei. Sua vontade é distinta da vontade individual dos membros componentes; seu patrimônio, constituído pela afetação de bens, ou pelos esforços dos criadores ou associados, é diverso do patrimônio de uns e de outros; sua capacidade, limitada à consecução de seus fins pelo fenômeno da especialização, é admitida pelo direito positivo. E, diante de todos os fatores de sua autonomização, o jurista e o ordenamento legal não podem fugir da verdade inafastável: as pessoas jurídicas existem no mundo do direito, e existem como seres dotados de vida própria, de uma vida real”.[7]

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O Código Civil atual acolheu a teoria da realidade técnica, é o que se pode concluir do tratamento conferido às pessoas jurídicas pelo art. 45 desse Código, ao dispor que a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado começa com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Esse dispositivo prenuncia a existência da pessoa jurídica e, por conseguinte, dada essa realidade, regra sua existência perante o direito, com o que faz aplicar aquela teoria. E por sua técnica de reconhecimento, permite o direito atual que aquela personalidade possa ser desconsiderada em determinadas situações da vida, ou seja, para as hipóteses de exceção, de forma a chamar a responsabilidade os homens que integram essa pessoa jurídica, o que não faz afastar a idéia referente em ter a pessoa jurídica existência distinta da dos seus membros[8].

Mas é possível perceber que algumas vezes ocorrem à prática de atos fraudulentos em detrimento de terceiros, os quais são acobertados pela autonomia patrimonial da pessoa jurídica. E tal é possível por que essa autonomia acarreta a separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos particulares que a compõem, pois normal é que o patrimônio dos sócios não responda pelas obrigações da pessoa jurídica, a não ser em casos excepcionais e de forma subsidiária.

A personalidade jurídica pode ser então considerada como um atributo conferido pelo Estado à uma associação ou sociedade, dando-lhe vida jurídica própria e distinta de seus sócios, permitindo à mesma ser sujeito de direito e de obrigações. Ela necessita ter: a) organização de pessoas ou bens; b) licitude de propósito e finalidade; c) capacidade reconhecida da entidade.

Essa proteção deferida à pessoa jurídica poderá deixar de ser aplicada quando for ela usada para se desviar de seus objetivos, sendo por isso desconsiderada e permitindo que a responsabilidade recaia sobre os sócios que praticaram tal desvio.

No Código Civil de 1916 a pessoa jurídica deveria preencher os requisitos previstos nos arts. 18 e 19 para poder existir. O art. 17 previa que as pessoas jurídicas eram representadas ativa e passivamente, nos atos judiciais e extrajudiciais, por quem os respectivos estatutos designarem, ou não o designando, pelos seus diretores. O Código de Processo Civil, em seu art. 12, inc. VI, dispõe de forma semelhante, regulando como as pessoas jurídicas são representadas em juízo.

O art. 20 do Código Civil de 1916 conferia existência distinta da pessoa jurídica em relação aos membros que a compõem, conferindo-lhe capacidade autônoma. E previa que o ato praticado pelo representante em nome da sociedade, vinculava a pessoa jurídica, desde que não excedidos os poderes de representação conferidos pelo ato constitutivo da sociedade. Caso o representante tivesse ultrapassado os poderes, seria considerado responsável pessoalmente.

A responsabilidade contratual (art. 1.056, CC 1916) perante a pessoa jurídica não ensejou nenhuma dificuldade de interpretação e aplicação. No entanto a extra contratual causou maior reflexão quanto a responsabilidade civil, ao considerar apenas as pessoas jurídicas que exerçam a “exploração industrial”, que segundo Silvio Rodrigues, são as que têm finalidade de lucro (art.1.522).

Quase sempre é a pessoa jurídica que responde pelas obrigações que contraiu e seu patrimônio responderá pelas mesmas. Porém os atos praticados pelos sócios, alheios aos interesses daquela e que não lhe trazem proveito, acarretam a responsabilização pela prática desses atos, podendo assim ser desconsiderada a personalidade jurídica e alcançar os bens dos sócios. Essa teoria foi adotada pelo atual Código e se caracteriza pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. É a aplicação da teoria denominada disregard of legal entity.

É de ser destacado que o art. 2.031 do CC conferiu prazo para as associações, sociedades e fundações constituídas sob a égide de leis vigentes antes desse novo código promovessem a adaptação às novas regras. Inicialmente foi de 1 (um) ano, e expiraria em 2.004, mas editada foi a Lei n. 10.838/2004, que alterou aquele prazo para 2 anos e depois a Lei n. 11.127/2005 revogou-a, e deu nova redação ao art. 2.031, para estender até 11 de janeiro de 2.007 o prazo para que se desse a adaptação.

Com o novo Código Civil o Decreto n. 3.708/1919 foi revogado, mas manteve uma eficácia residual até que se escoasse o prazo definido no art. 2.031 do Código Civil. E deve ser assim compreendida a revogação desse decreto, porque dispõe o art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657/42), que a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Assim, como o novo Código Civil regula as questões pertinentes às sociedades limitadas, está revogado aquele decreto de 1919.

A amplitude da responsabilidade limitada no novo Código Civil é menor; segundo dispõe o art. 1.052 ser ela restrita ao valor das quotas de cada sócio, enquanto o art. 2º do Decreto n. 3.708/1919 dispunha que responsabilidade dos sócios deveria ser limitada “à importância total do capital social”. Disso tudo resulta que as sociedades que foram constituídas antes do atual Código Civil, se não atenderem as exigências da legislação atual poderão deixar de existir ou serão sociedades não personalizadas e serão regidas pelo que dispõe os arts. 987 a 990 desse Código, onde todos os sócios responderão solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais.


II – TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.

2.1 – As teorias denominadas maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sua origem ligada a realidade que permitiria a empresa inadimplente deixar de ser responsabilizada em razão do emprego de leis para se toldar as eventuais manobras em nome dela praticadas e assim beneficiar os argutos, criando então dificuldades aos homens honestos e que são cumpridores de suas obrigações.

Contra essa espécie de fraude, criou o direito inglês o denominado “Companies Act”, em 1929, que estabeleceu a competência da Corte para declarar que todos os que participam, de forma consciente, da fraude verificada no curso da dissolução de uma sociedade, seriam considerados responsáveis, direta e ilimitadamente pela obrigação existente. Não obstante esse dado formal, há notícia que no direito norte-americano, desde o século XVI, existiam métodos para não permitir a prática de atos fraudulentos, surgindo nos primeiros anos do século vinte o denominado “Uniform Fraudulente Conveyance Act”. E a preocupação em evitar tal espécie de fraude se robusteceu com a teoria conhecida no direito anglo-saxão como “disregar of legal entity”, a qual é conhecida na Itália como “superamento della personalitá giuridica”.

No direito brasileiro foi Rubens Requião que introduziu na doutrina essa teoria, ao lembrar a tese de Rolf Serick, da Faculdade de Direito de Heidelberg, e ressalta não ser o caso em “considerar ou declarar nula a personificação, mas de torná-la ineficaz para determinados atos”.[9] Esclareceu o doutrinador brasileiro que, segundo o professor italiano Piero Verrucoli, da Universidade de Pisa, a doutrina do superamento da personalidade jurídica teria surgido na jurisprudência inglesa, no fim do século XIX, quando, em 1897, a justiça inglesa julgou o caso que ficou conhecido como Salomon vs. Salomon & Co., que envolvia o comerciante Aaron Salomon, pois este teria constituído uma empresa com outras seis pessoas da sua família e cedeu seu fundo de comércio à sociedade que havia criado, recebendo vinte mil ações representativas de sua contribuição, enquanto que para cada um dos outros membros coube apenas uma ação para a integração do valor da incorporação do fundo de comércio na nova sociedade. Como pouco depois essa sociedade tornou-se insolvente, porque o ativo que possuía era insuficiente para responder pelas obrigações assumidas, nada restaria aos credores quirografários. E diante desse quadro denunciado à Corte Inglesa, foi admitido o novo entendimento de se permitir a desconsideração da personalidade jurídica daquela empresa.

Observou Rubens Requião que o “ponto mais curioso da doutrina é que sempre os Tribunais que lhe dão aplicação declaram que não põem dúvida na diferença de personalidade entre a sociedade e os seus sócios, mas no caso específico de que tratam visam a impedir a consumação de fraudes e abusos de direito cometidos através da personalidade jurídica, como, por exemplo, a transmissão fraudulenta do patrimônio do devedor para o capital de uma pessoa jurídica, para ocasionar prejuízo a terceiros.

Não temos dúvida de que a doutrina, pouco divulgada em nosso País, levada à consideração de nossos Tribunais, poderia ser perfeitamente adotada, para impedir a consumação de fraude contra credores e mesmo contra o fisco, tendo como escudo a personalidade jurídica, para ocasionar prejuízo a terceiros”[10]

Recentemente o direito brasileiro adotou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, conforme consta no art. 50 do Código Civil, visando com isso apenas e tão-somente possibilitar a impedir a prática de fraude ou abuso, mas sem comprometer o instituto da pessoa jurídica.

Segundo conceitua o dicionário Houais da língua portuguesa, desconsiderar significa 1) não considerar; desatender, desprezar; 2) tratar sem consideração, fazer pouco de (alguém ou algo); desvalorizar; 3) fazer perder ou perder o crédito, a estima, o respeito; desacreditar(-se), desconceituar(-se). Tendo em mente essa significação, pode-se perceber que a desconsideração da pessoa jurídica representa o ato pelo qual se é praticado para ser desconhecida, desprezada, afastada momentaneamente, sua existência e assim vir a responsabilizar os sócios componentes dessa sociedade, pelos atos por ela praticados por seus representantes nas relações obrigacionais.

Adverte a respeito desse tema Fábio Ulhoa Coelho dizendo que nesse aspecto a doutrina é denominada como maior, “que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto”. Depois explicita que a doutrina ainda considera a teoria denominada menor, “que se refere à desconsideração em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio de sócio por obrigação social, cuja tendência è considerar o afastamento do princípio da autonomia à simples insatisfação de crédito perante a sociedade”[11]

A desconsideração da personalidade jurídica cabe então quando houver a existência de abuso ou de manipulação fraudulenta do princípio da separação patrimonial entre a sociedade e os membros da mesma.[12] Percebe-se com isso que não é adequado e suficiente apenas o descumprimento de uma obrigação por parte da pessoa jurídica, sendo necessário que esse descumprimento se dê por abuso ou por fraude, ou por confusão patrimonial, nos termos do que dispõe o art. 50 do Código Civil, senão a aplicação desse instituto provocaria ofensa direta ao conceito referente a não haver confusão entre o patrimônio da sociedade com o dos sócios que a integram.

Nesse pensar, é o instituto denominado como teoria maior da desconsideração, na medida em que a má administração da pessoa jurídica, por incapacidade administrativa de seu responsável não representa, não identifica a prática de ato ilícito ou o desvirtuamento da pessoa jurídica. Logo, sem esses requisitos estarem presentes a situação, não pode o magistrado determinar a desconsideração de personalidade jurídica.[13]

No entanto, não se pode deixar de considerar a aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica quando se sabe que na oportunidade da realização do negócio jurídico com ela praticado, possuía a empresa bens de sua propriedade, mas, por exemplo, ao não honrar a obrigação contratual, deixando de proceder ao pagamento ou a realizar a obrigação de fazer ou não fazer estipulada, e tal patrimônio não mais existir, mesmo estando dita empresa em funcionamento, porque deve se compreender ter agido com abuso ao deixar de cumprir a avença (Schuld) e não vir a assumir a responsabilidade efetuando o respectivo pagamento (Haftung), mesmo estando em funcionamento, e produzindo o bem da vida ao qual foi instituída, criada, pois no âmbito da denominada teoria dualista, que se aplica à espécie, em assim atuando a empresa, deverão os sócios da mesma ser responsabilizados pelo abuso praticado, na medida em que com tal prática enseja prejuízo ao credor.

De outra parte é de ser destacado ainda a existência da denominada teoria menor da desconsideração, segundo a qual não se exige a presença de requisitos específicos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Considera então essa teoria ser suficiente o descumprimento de uma obrigação de crédito para possibilitar a aplicação do referido instituto, notadamente para a hipótese em que a sociedade não tiver patrimônio suficiente para sua responsabilização e os sócios que a integram tenham patrimônio para responder pelo crédito. A aplicação dessa teoria tem sido mais vista para as hipóteses em que ficaria o credor frustrado pelo não recebimento da dívida, dado ser hipossuficiente, como comumente se ocorre nas relações de consumo e trabalhistas.[14]

2.2 – O abuso de direito e a fraude para a desconsideração da personalidade jurídica.

Para se alcançar a conclusão da ocorrência do abuso de direito, fraude ou confusão patrimonial, antes é necessário ter em mente a doutrina referente aos elementos da obrigação e seu vínculo jurídico.

Alfredo Buzaid ensina a respeito de obrigação que: “Quem contrata deve satisfazer a obrigação assumida pelo modo e no tempo devido; está adstrito a prestar a coisa, a que se obrigou, com lealdade e boa-fé, tal como exige o trato comum dos negócios. As relações jurídicas entre credor e devedor são, de ordinário, resolvidas mediante satisfação espontânea pelo obrigado. O cumprimento da obrigação é a regra; o inadimplemento, a exceção. Os sentimentos jurídicos e morais do devedor levam-no normalmente a realizar os atos ou fatos a que o credor tem direito”.[15]

Possível notar desse conceito que o obrigado tem sob seus ombros a prática do ato referente ao cumprimento da obrigação assumida e ainda, se não a satisfizer, deverá ser considerado como responsável, com o que deverá sujeitar o patrimônio que possuir, conforme a aplicação da teoria dualista, onde se tem um débito, uma obrigação (Schuld) e uma garantia, a responsabilidade pelo cumprimento dessa obrigação (Haftung), o que está autorizado, dentre outros, pelo que dispõe o art. 391 do Código Civil.

E a responsabilidade do sócio de empresa, quando do descumprimento da obrigação, abrange ato independente de fraude ou abuso de direito, e dentre as de relevo vemos, entre outras, as em relação a sociedade por cotas de responsabilidade limitada, respondendo com os bens particulares que tiver (art. 1.052, CC); como também na sociedades em comandita simples e por ações (arts. 1.045, 1.090, ambos do Código Civil); na sociedade em comum e na sociedade em nome coletivo (arts. 990 e 1.039, ambos do Código Civil). E no que concerne a responsabilidade extraordinária pode-se ver o que dispõe os arts. 1.012, 1.016 e 1.036, todos do Código Civil; aquela prevista no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90); e ainda, por exemplo, arts. 16 e 18, ambos da Lei n. 8.884/94, dentre outras.

Essas responsabilidades estão a abranger o conceito da obrigação, o qual está conformado no dever do obrigado em satisfazê-la por ato voluntário, espontâneo, mas se não o fizer deverá o obrigado se sujeitar e submeter o patrimônio que possuir para o cumprimento daquela obrigação, possibilitando que o Estado-juiz atue sobre esse patrimônio em benefício do credor[16]. E essa dualidade alcança o âmbito do direito substancial e o direito processual, e não está vinculado tão-somente ao direito substantivo, como crêem outros.[17]

O arquétipo da pessoa jurídica tem previsão legal para permitir que exerça determinada atividade, que pode ser considerada como geral ou especial, a qual não se confunde, não pode se misturar com os integrantes dela. Porém, na hipótese em ser empregada para fins diferentes para os quais foi criada, destinada, abraçando objetivos diferentes daqueles com os quais foi instituída, desrespeitando o sistema jurídico em vigor, este então, permite concluir ter havido o abuso da personalidade jurídica ou ter sido praticado pela pessoa jurídica ato de fraude, de atitude especiosa, para atingir o credor e assim fugir da obrigação e também da responsabilidade por seu cumprimento, faz ignorar, afastar, desconsiderar a personalidade jurídica e permite que o patrimônio dos sócios da mesma respondam pelo ato de descumprimento por ela praticado.[18]

Percebe-se assim que a possibilidade em ter decretada a desconsideração da personalidade jurídica está vinculada de maneira necessária ao reconhecimento da prática de fraude ou do abuso de direito, pois afeta de forma direta a autonomia patrimonial da sociedade, uma vez que essa autonomia só poderá ser empregada para a hipótese em não ter sido utilizada em desrespeito as obrigações assumidas, porque é ela o meio pelo qual limita os riscos da atividade empresarial. No entanto, para a circunstância em ter o homem escopo que não atenda aos requisitos legais, ou desarrazoado, pode vir a empregar o instituto da autonomia patrimonial da pessoa jurídica com o intuito de esconder e descumprir as obrigações, praticando assim a fraude vinculada à autonomia patrimonial.

A fraude então praticada nesse âmbito tem a intenção de prejudicar terceiro e para tanto faz uso da autonomia patrimonial, pois no primeiro momento faz crer ser o ato praticado lícito, contudo ao ser notado que se deu desvio no emprego daquela autonomia, surge nítida a ilicitude praticada.

Além do ato que ocasiona prejuízo à terceiro, o emprego da autonomia patrimonial atribuída à pessoa jurídica pode também ensejar a prática de ato considerado como de abuso do direito, de forma a autorizar a aplicação do decreto de desconsideração da personalidade jurídica. O ato praticado pela pessoa jurídica inicialmente é admitido como sendo lícito pelo sistema legal em vigor, no entanto se aquela vir a praticar um ato diverso, em desvio ao fim para o qual foi criada, fugindo a função social para qual foi instituída ou à responsabilidade que lhe é inerente, aquele ato não poderá ser admitido como válido e eficaz, uma vez que a pessoa jurídica foi utilizada para outro fim que não aquele para o qual foi instituída, provocando com isso seu desvio de finalidade, como também a fuga da obrigação e sua responsabilidade, advindo o denominado abuso de direito, pois se deu a falsificação de trás do reposteiro, possibilitando a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

E com essa atitude, com essa ocorrência, com essa prática, poderão ser os sócios da pessoa jurídica responsabilizados por aqueles atos praticados com fraude ou abuso do direito, porquanto desrespeitaram a lei e o estatuto social daquela sociedade.

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Sobre o autor
Nelson Jorge Junior

Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Doutorando em Direito Processual Civil na Pontifícia Universadade Católica de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JORGE JUNIOR, Nelson. Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3866, 31 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26578. Acesso em: 20 abr. 2024.

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