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A responsabilidade civil do Estado nas prisões indevidas

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10/02/2014 às 15:16
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Começa a se desenhar na jurisprudência uma tendência a imprimir um regime de responsabilidade objetiva nos casos de prisões indevidas, o que se me afigura de extrema pertinência e acerto.

Sumário: 1) Introdução. 2) O Solidarismo Jurídico. 3) O Ato Jurisdicional como Fonte de Responsabilidade Civil. 4) Revisão do Paradigma. 5) Hipóteses Específicas. 5.1) Prisões Administrativas. 5.2) Prisões Cíveis. 5.3) Prisões Cautelares Penais. 5.4) Prisões Decorrentes de Sentença Penal. 6) Valores. 7) O Fator Imprensa. 8) Conclusões.


1) INTRODUÇÃO

Depois de relegada durante séculos a uma função preponderantemente cautelar e secundária, a prisão teve no século XX seu apogeu, e assistiu ao princípio, em fins deste mesmo século, de seu declínio que ainda continua a se firmar como realidade.

O advento das penas alternativas e a constatação de que a prisão não mais se coaduna com as funções eleitas como primordiais efeitos da sanção penal reduzem paulatinamente o espectro de aplicação da pena de prisão no último quarto do século XX. Mesmo sua função cautelar teve sua margem de aplicação reduzida com a introdução de novas espécies de medidas cautelares, as quais têm, no caso do Brasil, o paradigma da recente Lei nº 12.403/11

Todo este quadro não implica, porém, em suplantar por completo a prisão, seja pena, seja cautelar, do cenário jurídico. O incremento da criminalidade grave pode mesmo até manter intactos os números de prisões apesar da redução das hipóteses de sua aplicação[1].

Como a prisão, não importa sua natureza, é levada a efeito por pessoas, as quais são inevitável e naturalmente falhas, não são incomuns os casos de prisões que se revelam indevidas. Outras vezes a prisão acaba por se revelar indevida não por erros da polícia judiciária ou de decisão judicial, mas simplesmente porque a apuração dos fatos revela um contexto diverso do inicialmente descrito.

É inconcusso o fato de que a prisão em si é fonte de gravame moral (e eventualmente material), seja ela devida e legal, ou não. É fato que gera peia, vexação, que expõe negativamente o indivíduo. Quando ela é devida, justificada e legal, é apenas mais uma conseqüência da infração que o agente traz sobre si ao efetuar a escolha pela prática da infração.

Porém, quando indevida ou ilegal, ou as duas coisas, concomitantemente ou sucessivamente, ela traz ínsita a questão da responsabilidade civil do Estado e de seus agentes. Enquanto que a prisão ilegal tem solução mais fácil à luz do ordenamento, a prisão legal, mas que, posteriormente, se mostra indevida, se traduz em problema de solução que suscita conflitos de opiniões.

Duas soluções se põem em voga. Aplicar o regime de responsabilidade objetiva comum aos atos comissivos do Estado, ou aplicar a disciplina da responsabilidade pelos atos jurisdicionais, que dimana aplicação do requisito da culpa (subjetiva).

A presente abordagem pretende analisar estas alternativas propondo uma solução que melhor se coadune com o momento atual e com premissas históricas a seguir dissecadas.


2) O SOLIDARISMO JURÍDICO

Premissa fundamental para se estabelecer o caminho a ser seguido reside em se compreender o solidarismo jurídico como fundamento do Direito atual.

Como bem assevera Pontes de Miranda, a história da humanidade tem se pautado, em sua evolução, nitidamente por uma paulatina redução do que ele chamou “quantum despótico”, o qual pode ser traduzido, sinteticamente, como a medida de submissão de uns em relação ao arbítrio de outros.

O solidarismo jurídico tem sua base em princípios fundamentais da ética e na constatação de que o reconhecimento da igualdade entre os homens é um fato e uma conquista irrevogável. O reconhecimento desta igualdade como um processo histórico e contínuo vem igualmente reduzindo o índice de submissão de uns em relação ao arbítrio de outros, fator que é substituído pela noção do Estado de Direito.

Há sim, ainda, a imposição de uma pauta de comportamento, a qual, porém, antes de ser arbítrio de uns poucos, é construída, no plano ideal, a partir de um relativo consenso da maioria, dando azo ao primado da democracia e ao império da legalidade. Resultando a lei, no Estado Democrático de Direito, da vontade da maioria, a submissão de todos, pela aplicação da lei, apresenta-se menos despótica do que outrora, quando resultava da vontade de um soberano e quando os sujeitos destinatários da restrição ou da pauta a ser imposta não tinham participação alguma na sua determinação ou a tinham de forma reduzida.

Como bem se vê, o solidarismo jurídico, caracterizado como reconhecimento de uma igualdade eticamente pautada, era incompatível com um Estado Absolutista, e somente teve espaço a partir da derrocada deste modelo político.

No plano das relações do Estado com os administrados, e especificamente no da responsabilidade civil, o solidarismo jurídico respalda a presença da possibilidade de responsabilização do Estado frente a danos causados ao administrado, representando esta responsabilização a pulverização da responsabilidade dentre todos, pois todos são iguais. Esta repartição dos ônus da atividade estatal é a exata materialização de uma visão solidarista. O que a todos beneficia, deve por todos ser arcado, e cada qual que sofre restrição na sua esfera de direitos em vista do direito de outros, deve ser compensado caso esta restrição se mostre indevida exatamente porque, em sendo igual, seus direitos ostentam a mesma envergadura do que os direitos de todos os outros membros da sociedade. A reposição do equilíbrio que emerge desta equivalência pressupõe alguma forma de compensação.

Corolário deste primado, a responsabilidade do Estado parte, modernamente, de um modelo de viés objetivo, onde, prescindindo-se da culpa nos atos comissivos, basta a presença do dano e a relação de causalidade[2].

Esta noção da necessidade de distribuir o ônus da atividade do Estado é que deve permear a análise da responsabilidade civil nas prisões indevidas, pois melhor se coaduna com os fundamentos modernamente assimilados e usuais da responsabilização do Estado e com uma visão contemporânea dos fundamentos e finalidades da sociedade.


3) O ATO JURISDICIONAL COMO FONTE DE RESPONSABILIDADE CIVIL

Adotada quase que à unanimidade nos Estados modernos, a teoria da tripartição de poderes divide em três diferentes categorias os atos praticados pelo Estado conforme sua função preponderante, daí surgindo a organização do Estado em três Poderes[3].

A prisão pode resultar de um ato específico de um destes poderes, no mais das vezes do Judiciário[4], ensejando a análise da questão da responsabilidade civil pelo ato jurisdicional. A hipótese demanda análise específica, pois a disciplina da responsabilidade civil no ato jurisdicional não segue ao gabarito da responsabilidade ordinária pelos demais atos praticados pelo Estado, constante do artigo 37, parágrafo 6º, da CF/88.

Deveras, apesar de o artigo 37, parágrafo 6º, da CF/88, ter adotado, segundo majoritariamente se entende em doutrina e jurisprudência, a Teoria do Risco Administrativo, implicando, por conseguinte, responsabilidade de regime objetivo como regra nos atos comissivos, a disciplina da responsabilidade civil por atos jurisdicionais encontra fundamento específico em dispositivos do CPC e do CPP, mais precisamente os artigos 133 e 630, respectivamente, segundo os quais:

Art.133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:

I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.

Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no nº II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender o pedido dentro de 10 dias.”

“Art.630. O tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos.

§ 1º Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível, responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça.

§ 2º  A indenização não será devida:

a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder;

b) se a acusação houver sido meramente privada.”

A priori, a sistemática do primeiro dispositivo teria aplicação limitada aos atos jurisdicionais de natureza cível[5], bem como em vista da responsabilidade pessoal do agente público, nada havendo nela que fizesse crer ser aplicável à responsabilidade do ente administrativo, sobretudo de ser impeditiva ou limitativa da aplicação de outro regime diverso ao ente.

Já a segunda disposição teria aplicação aos atos jurisdicionais penais, e encontra-se inserida na disciplina do processo revisional, e, portanto, pressuporia que a condenação tivesse sido revista com absolvição do acusado. Os casos em que isso acontece são raros e uma indenização motivada por esta circunstância é fato dos mais incomuns, pressupondo, ainda, julgamento do processo quando não raro a irregularidade da prisão se revela bem antes.

A maior parte dos casos de prisões indevidas se revelam, todavia, em casos de prisões de natureza penal cautelar, e para estas não há disciplina específica.

O que se tem reconhecido, em termos de jurisprudência, é a ausência de responsabilidade objetiva nestes casos, valendo a disciplina do artigo 133 do CPC, salvo julgados esparsos. Exemplos de precedentes invocando o caráter subjetivo da responsabilidade por ato jurisdicional encontramos no âmbito do STF.

No julgamento do RE 553.637, julgado em 04/08/2009 pela Ministra Ellen Gracie, consignou-se que “o Supremo Tribunal já assentou que, salvo os casos expressamente previstos em lei, a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos de juízes.”. Na mesma esteira, em julgamento anterior, datado de 03/08/1999, o Ministro Ilmar Galvão concluiu que “o princípio da responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário, salvo os casos expressamente declarados em lei. Orientação assentada na jurisprudência do STF.” 

Já no julgamento do RE 505.593, em 26/07/2007, o Ministro Sepúlveda Pertence parece abrir uma brecha à prescindibilidade de aferição de um elemento subjetivo na responsabilização do Estado nos casos de prisões indevidas:

“Erro judiciário. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Direito à indenização por danos morais decorrentes de condenação desconstituída em revisão criminal e de prisão preventiva. CF, art. 5º, LXXV. CPP, art. 630. O direito à indenização da vítima de erro judiciário e daquela presa além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV, da Constituição, já era previsto no art. 630 do CPP, com a exceção do caso de ação penal privada e só uma hipótese de exoneração, quando para a condenação tivesse contribuído o próprio réu. A regra constitucional não veio para aditar pressupostos subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, conforme o art. 37, § 6º, da Lei Fundamental: a partir do entendimento consolidado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil do Estado por atos de jurisdição, estabelece que, naqueles casos, a indenização é uma garantia individual e, manifestamente, não a submete à exigência de dolo ou culpa do magistrado. O art. 5º, LXXV, da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que nem impede a lei, nem impede eventuais construções doutrinárias que venham a reconhecer a responsabilidade do Estado em hipóteses que não a de erro judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva do serviço público da Justiça."

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Consoante se depreende da ementa, a CF/88 não conteria qualquer limitação da responsabilidade no caso de prisão indevida no que concerne à exigir um elemento subjetivo. 

Mas será justa e consentânea a uma ordem jurídica que prima pela igualdade e pelo solidarismo esta solução da responsabilidade subjetiva que prepondera?

Como exceção a esta lacuna, a CF/88 previu a responsabilização em caso de o indivíduo ficar mais preso do que o tempo necessário ou de erro judiciário. Diz o artigo 5º, inciso LXXV, da CF/88 que “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.

Mas esta disciplina, posterior aos dois dispositivos infraconstitucionais acima citados, em nada acresceu ao entendimento sedimentado da disciplina da responsabilidade civil do erro judiciário, que continua regido, consoante ainda se entende majoritariamente, pelo sistema de responsabilidade subjetiva. Outrossim, o dispositivo constitucional tem em mira de forma específica e limitada a um caso bem delineado que não é o de maior ocorrência nos casos de prisões indevidas. Quide inde?   

Urge, pois, tecermos uma análise das múltiplas possibilidades de prisões e de seu regime de responsabilidade, seja o atual, seja o sugerido para atingirmos uma solução.


4) REVISÃO DO PARADIGMA

Antes de ingressarmos na análise casuística de hipóteses, é mister versarmos sobre a necessidade de mudança no paradigma do regime de responsabilidade do Estado em vista das prisões.

Está, a meu ver, mais do que na hora de o paradigma da responsabilização do Estado por atos jurisdicionais à base da teoria subjetiva ser revisto. A questão deve ser enfocada a partir de uma visão solidarista.

As prisões, em especial as de natureza cautelar penal, realizam-se no escopo da busca do bem comum. São atos levados a efeito para resguardo de toda a sociedade diante de um potencial risco, seja em vista dela própria diretamente, seja em vista de um valor, qual seja, a persecução penal.

São aptas a gerar gravame moral e prejuízos materiais, tanto mais quando, hoje, com a ampla cobertura da imprensa, ordinariamente o fato é divulgado, e em muitas vezes de forma distorcida ou incompleta, ou o que é pior, além das duas coisas, ainda de forma parcial. O gravame moral esta in re ipsa, pela pecha que é imposta ao indivíduo. Tal situação ainda se agrava na medida em que existe generalizado desconhecimento acerca das diversas espécies de prisões, sua natureza e sua causa, de forma que, grosso modo, o preso é, para a população, o mesmo que o culpado.

Mesmo com a posterior divulgação da liberdade e eventual inocência, é impossível dizer que os prejuízos frente à imagem do preso sejam amainados ou apagados, pois nunca se pode ter a certeza que todos os que ficaram sabendo da prisão também souberam do seu desfecho.

De outro lado, a situação do cárcere em si e por si é apta a gerar sofrimento psíquico e mesmo físico, este último decorrente, principalmente, das condições precárias dos cárceres, fato notoriamente sabido[6].

Há, da mesma forma, a possibilidade de dano material que pode decorrer diretamente do afastamento do preso de suas atividades profissionais ou mesmo decorrer da pecha que sobre ele é imposta e que pode dificultar, isso é inegável, sua vida profissional, afastando clientela ou fazendo com que perca o emprego ainda que de forma indireta.

Diante deste contexto, nenhuma razão lógica há em se negar um regime de responsabilidade objetiva ao Estado frente ao ato da prisão. Neste caso, o fundamento da responsabilidade não reside na noção de ilícito, de culpa ou mesmo de falha. Escuda-se na noção de que se um prejuízo foi causado pelo Estado para resguardo da sociedade e ele se revela injustificado posteriormente, é medida de justiça que divida os ônus da atividade por todos.

Se há um preceptivo que expressamente autoriza e determina que deve haver indenização no erro judiciário e no caso de o indivíduo ficar mais tempo preso do que o necessário e se outra disposição igualmente constitucional estabelece a regra do regime de responsabilidade objetiva (art. 37, parágrafo 6º), é de se entender que este regime é aplicável a todas as formas de prisões que se revelem destituídas de fundamento ao final.

Aliás, feita a escolha pela Constituição, se revela indevida a manutenção de uma limitação decorrente de dispositivo infraconstitucional, exigindo culpa grave ou dolo.

A atual ordem jurídica, calcada na distribuição igualitária dos ônus da atividade do Estado, não se compraz com o fato de resultar um gravame moral e eventualmente material sem ressarcimento quando decorrentes de algo que foi praticado em prol de toda sociedade.

Mas por que motivo ainda não teria sido reconhecida amplamente esta responsabilidade objetiva no caso de prisões indevidas? Aparentemente razões de cunho histórico ainda fazem com que assim o seja, havendo certa resistência no âmbito do Judiciário quiçá porque estaria em voga atos praticados em sua maioria por si mesmo.

O fundamento geral comumente invocado é o de que a possibilidade de responsabilização objetiva subtrairia do julgador a necessária tranqüilidade ao decidir, sendo o ato jurisdicional um ato de soberania do Estado. Ora, aqui me parece que há uma injustificada extensão das coisas, pois é preciso discernir que há duas responsabilidades a serem apuradas, uma a do ente Estatal e a outra do agente. Elas podem repercutir uma na outra, mas podem ser independentes em seus fundamentos, e, portanto, lastreadas em regimes diversos que coexistam.

Por outras palavras, é concebível que a responsabilidade do agente continue a ser apurada pelo gabarito da culpa (erro judiciário), ao passo que a responsabilidade do ente Estatal, União ou Estado Federado[7], seja apurada em regime objetivo, nos exatos mesmos moldes que a CF, no seu artigo 37, parágrafo 6°, estipula como regra geral. Isso terá por consectário que exista possibilidade de responsabilização do ente Administrativo sem responsabilidade do agente público e caso ocorram as duas, por regimes diversos em cada caso.

Isso iria ampliar drasticamente os casos de indenizações? Certamente que sim, sobretudo nos casos em que sequer erro existe e a prisão se revela indevida. Mas este aumento não é justificativa para se negar o direito àqueles que têm parte de sua vida retirada e são expostos, e realmente sacrificados, em vista de um bem comum, sem motivo legítimo constatado ao final. Não pode um gravame criado pelo Estado em sua atividade passar sem a devida indenização se quem o sofre não deu causa a este gravame. 

Uma ordem jurídica justa clama por esta revisão de paradigma. 


5) HIPÓTESES ESPECÍFICAS 

Várias hipóteses se colocam à apreciação, desde prisões cíveis e administrativas até as penais, sejam estas últimas penas ou de natureza cautelar. Impende proceder-se a uma divisão para melhor abordagem.

5.1) Prisões Administrativas

As hipóteses de prisão administrativa remanescem previstas no Estatuto do Estrangeiro e em vista da legislação militar, em caso de transgressão disciplinar. Vejamos sua conformação atual.

No caso do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80), a prisão ali preconizada, quando a ser determinada pelo Ministro da Justiça é de duvidosa constitucionalidade a teor do artigo 5º, inciso LXI da CF/88, sendo assente que, embora recepcionada prisão administrativa, esta passou à alçada do Judiciário. Neste caso, apesar da natureza administrativa do ato, aplica-se, segundo acima mencionado, ao caso o preceito do artigo 133 do CPC, pois se cuida de ato de natureza cível, praticado por magistrado.

A dicção do citado dispositivo é ampla, referindo-se a prejuízo causado pelo magistrado com seu agir, não estando relacionada diretamente a atos jurisdicionais. E em sendo ato de natureza não penal, é o dispositivo genericamente invocável à tutelas de natureza cível que deve ser aplicado imediata.

Como já referido, esta disciplina implica em condicionar a responsabilidade também da pessoa jurídica à presença de culpa no atuar do agente público.

Já as prisões decorrentes de transgressão disciplinar militar ostentam natureza administrativa e são consideradas constitucionais. Neste caso, a disciplina da responsabilidade civil é a mesma aplicada a qualquer ato administrativo, ou seja, o ente administrativo responde de forma objetiva e o agente de forma subjetiva na forma do preceito do artigo 37, parágrafo 6º da CF/88.

Porém, a responsabilização somente poderá ter azo no caso em se constatando a impropriedade fática ou jurídica da prisão, ou seja, que o ato se apresentou injustificado,seja por não ter ocorrido o fato que o legitimou, seja por ter ocorrido de forma diversa, seja, ainda, por não se caracterizar o ato infração disciplinar. Outra hipótese apta a ensejar responsabilização por uma prisão administrativa de natureza militar seria aquela na qual ela se prolonga por mais do que o razoavelmente necessário para conclusão do processo administrativo que necessariamente deve ser desencadeado a partir dela, inclusive como elemento de sua posterior legitimação. A rigor, esta última hipótese enseja, inclusive a concessão de habeas corpus.

5.2) Prisões Cíveis

Hoje o cabimento da prisão de natureza cível e não administrativa, ou seja, a prisão cível de natureza processual, somente subsiste em vista da prisão do devedor de alimentos no rito de execução do artigo 733 do CPC, ou seja, restrito aos valores vencidos até três meses anteriores ao ajuizamento acrescidos dos valores que se vencerem durante o processo de execução. A outra previsão constitucional, que era o caso do depositário infiel, hoje resta sumularmente afastada, seja o depósito negocial, legal ou processual.

Esta forma de prisão decorre sempre de decisão judicial, o que já indica prima facie subsumível ao gabarito do já versado artigo 133 do CPC, ou seja, somente enseja responsabilização, seja do ente administrativo ou do agente público, em regra, a presença de erro ou dolo, vale dizer, de culpa grave lato sensu.

Mas há uma hipótese de aplicação de disciplina diversa e pertinente à regra geral da disciplina da responsabilidade do Estado (objetiva). É que, assim como ocorre na prisão de natureza administrativa suso referida (relativa ao estatuto do estrangeiro), é necessário divisarmos o ato do juiz que a decreta dos atos executórios que a tornam concreta. A ordem de prisão em si é ato jurisdicional ou administrativo (aspecto discutível este ultimo) do juiz. Jurisdicional no caso da prisão do devedor de alimentos e administrativo no caso da determinação de prisão administrativa do estrangeiro. Porém, os atos concretos necessários a sua materialização empenham uma série de atos de natureza induvidosamente administrativa, sejam cartorários, sejam de diligências executórias levadas a cabo por outros agentes, inclusive vinculados a Poder diverso.

Se o evento danoso se originar destes atos, executados de forma errática, ilegal ou abusiva pelos servidores encarregados, o regime de responsabilidade será o do artigo 37, parágrafo 6º, da CF/88 (objetiva do ente, subjetiva do agente) e não o do artigo 133 do CPC.  Isso vale para prisões judiciais ou administrativas.

Uma das hipóteses mais comuns que podem fazer com que o indivíduo permaneça mais tempo do que o legalmente previsto preso por força de obrigação alimentar é o da demora em ser o pagamento analisado, com prolação da respectiva decisão homologatória e expedição do alvará de soltura. A hipótese encontra, de lege lata, solução no inciso II do artigo 133 do CPC, sendo o ponto nodal identificar se há ou não justo motivo no retardamento da decisão e da expedição do documento respectivo. O retardamento da decisão é falha jurisdicional, ao passo que o retardamento na expedição é ato administrativo cartorário, sujeito à regra geral do artigo 37, parágrafo 6º, da CF/88.

De lege ferenda, uma vez que se cogite de responsabilidade de cunho objetivo, o critério não deverá ser diverso, ou seja, deverá ser analisado, à luz da razoabilidade, se a demora ultrapassou a um tempo aceitável que é natural à analise do pagamento e sua eficácia, bem como confecção e envio de documentação necessária à soltura. Neste caso, não se cuidará de avaliar propriamente a presença de culpa, mas sim de verdadeira ruptura do nexo de causalidade não havendo ato ilícito ou irregular apto a ensejar indenização. Incidindo a razoabilidade como vetor, a indenizabilidade, ainda que considerada uma disciplina objetiva, somente terá azo na anormalidade.

5.3) Prisões Cautelares Penais

Consoante já ressaltado, o espectro das prisões cautelares penais restou, no plano formal, sensivelmente limitado com o advento da Lei nº 12.403/11.

Hoje, a rigor, temos apenas três espécies de prisões cautelares, quais sejam a em flagrante, a preventiva e a temporária. As duas últimas são necessariamente decorrentes de atos judiciais, ao passo que a primeira pode ser executada por quisquis de populo. Esta diferença implica tratativa diversificada.

Como a prisão em flagrante pode decorrer de ação de pessoas não vinculadas ao Estado, a disciplina de responsabilidade civil segue à regra do Código Civil enquanto em voga atos de execução por terceiros[8]. Uma vez que ocorra o concurso dos agentes do Estado, o regime passa do privado ao público, devendo ser verificado se o ato ensejador do dano e praticado por agente público é jurisdicional ou não.

Em caso de a prisão se tornar indevida ou abusiva por conta de atos não jurisdicionais praticados pela polícia, na fase de lavratura do auto de prisão em flagrante ou execução do ato, a responsabilidade rege-se pelo artigo 37, parágrafo 6º, da CF/88. A hipótese seria, por exemplo, de lavratura de flagrante e custódia do acusado em situação onde isso evidentemente não poderia ter ocorrido. Por outro lado, considerada a fase judicial de controle do ato, de lege lata, tem-se que a disciplina aplicável é aquela baseada na culpa grave ou dolo, pois ai se tem necessariamente ato jurisdicional, aplicando-se, hoje, o artigo 133 do CPC, ainda que de prisão penal se cuide.

Estes pressupostos, vale dizer, a presença de culpa grave ou dolo, também orientam os casos das prisões preventivas e temporárias no caso de o dano originar-se do ato judicial em si. Já se o equivoco for cartorário ou se originar da polícia, a responsabilidade é aferida objetivamente para o ente público e subjetivamente para o agente. Estas últimas hipóteses teriam azo nas situações exemplificativas de formulação de pedidos pela autoridade policial com dados dolosa ou culposamente erráticos, ou, no caso do cartório, no retardamento indevido das providências de operacionalização da soltura o de submissão do caso à análise judicial.

É importante referir que, nos atuais termos, a absolvição do acusado não enseja per se stante o reconhecimento do direito à indenização, sobretudo quando o fundamento da absolvição é a insuficiência de provas[9]. O mesmo raciocínio é válido para o acolhimento de revisão criminal.

Na verdade, os fatos posteriores, dentre eles as deliberações e conclusões da sentença, não apresentam tanta relevância quando não interferem na conformação dos fatos ao momento da prática do ato jurisdicional de decretação da custódia. É neste momento, ou seja, da tomada da decisão, que a conformação fática é tomada por gabarito para aferição da presença ou não de indenizabilidade atualmente.

Todavia, em que pese preponderar a posição pela necessidade de culpa grave ou dolo no caso de ilegalidade intrínseca de ato jurisdicional, há julgados esparsos (mas cujo número aumenta dia a dia) que sufragam entendimento pela objetivação da responsabilidade, escudados na premissa da equiparação ao erro judiciário quando se revela, ao fim e a cabo, indevida a prisão.

Na esteira desta tendência, encontramos julgados do teor do Resp 427.560/TO, DJ 30.09.2002, Rel. Ministro Luiz Fux, em cuja ementa consta: 

“Assemelha-se à hipótese de indenizabilidade por erro judiciário, a restrição preventiva da liberdade de alguém que posteriormente vem a ser absolvido. A prisão injusta revela ofensa à honra, à imagem, mercê de afrontar o mais comezinho direito fundamental à vida livre e digna. A absolvição futura revela da ilegitimidade da prisão pretérita, cujos efeitos deletérios para a imagem e honra do homem são inequívocos (notoria no egent probationem)”

No mesmo norte, implicando extensão da responsabilidade a hipótese não albergadas na estrita dicção da lei, há hipóteses nas quais, não obstante a ausência de erro judiciário, visto que não comprovado a priori culpa grave ou dolo, houve reconhecimento da ilegalidade da prisão, o que ensejou reconhecimento da presença de dano indenizável. Em tal hipótese, tem o paradigma do julgamento do Resp 872630, ocorrido em 13/11/2007, tendo por relator para o acórdão igualmente o Ministro Luiz Fux,em cuja ementa consta:

“1. A Prisão Preventiva, mercê de sua legalidade, dês que preenchidos os requisitos legais, revela aspectos da Tutela Antecipatória no campo penal, por isso que, na sua gênese deve conjurar a idéia de arbitrariedade. 

2. O cerceamento oficial da liberdade fora dos parâmetros legais, posto o recorrente ter ficado custodiado 741 (setecentos e quarenta e um) dias, lapso temporal amazonicamente superior àquele estabelecido em Lei  - 81 (oitenta e um) dias - revela a ilegalidade da prisão. 

3. A coerção pessoal que não enseja o dano moral pelo sofrimento causado ao cidadão é aquela que lastreia-se nos parâmetros legais (Precedente: REsp 815004, DJ 16.10.2006 - Primeira Turma). 

4. A contrario senso, empreendida a prisão cautelar com excesso expressivo de prazo, ultrapassando o lapso legal em quase um décuplo, restando, após, impronunciado o réu, em manifestação de inexistência de autoria, revela-se inequívoco o direito à  percepção do dano moral.”

Após tecer considerações acerca do direito à liberdade como algo inexoravelmente associado à dignidade da pessoa humana ante uma interpretação axiológica e constitucionalmente condicionada do ordenamento jurídico, o julgado concluiu que:

A ampliação da responsabilidade estatal, com vistas a tutelar a dignidade das pessoas, sua liberdade, integridade física, imagem e honra, não só para casos de erro judiciário, mas também de cárcere ilegal e, igualmente, para hipóteses de prisão provisória injusta, embora formalmente legal, é um fenômeno constatável em nações civilizadas, decorrente do efetivo respeito a esses valores”.

Estes julgados do STJ constituem seguros indicativos de uma nova visão do dever de indenizar do Estado quando em voga prisões indevidas. 

Estes julgados, em consonância ao que acima expusemos, caminham para a objetificação da responsabilidade do Estado nestes casos.

A partir desta premissa, vale dizer, de que haverá responsabilidade independentemente de culpa grave ou dolo na decisão judicial, urge tercemos um quadro de delimitação dos lindes desta responsabilidade. Isto se faz necessário porque tornar a responsabilidade objetiva não é sinônimo de torná-la automática ou absoluta. 

Há uma primeira hipótese onde a prisão não poderá ensejar indenização. Cuida-se da hipótese de o indivíduo estar preso por outro motivo concomitantemente. Há uma concausa que por si só manteria o status que, em tese, poderia ensejar gravame moral. 

Uma segunda hipótese que afastaria a responsabilização seria aquela na qual o preso induz a autoridade policial ou judiciária em erro por conta da sonegação ou falseamento de informações de identificação. A hipótese seria de culpa exclusiva da vítima. 

Nas demais hipóteses, a indenização deverá, posto um novo paradigma, ser sempre devida, considerando-se aplicáveis os princípios atinentes ao artigo 37, parágrafo 6º, da CF/88, ou seja, a culpa pode ser afastada pela comprovação de concausas ou responsabilidade exclusiva da vítima.

Dir-se-á que esta disciplina permitiria que ocorressem situações nas quais marginais inveterados acabassem por lograr indenizações escudados na ilegitimidade de suas prisões cautelares ante a comprovação da falta de lastro probatório. De fato este prospecto é uma conclusão possível decorrente da aplicação desta disciplina. Portem, é forçoso considerar que o Direito Penal moderno é um Direito Penal do fato e não um direito penal do autor. A vida pregressa de um indivíduo ou sua má reputação não podem servir de supedâneo para fundamentar que estes indivíduos tenham de suportar os gravames advindos de prisões ilegais ou indevidas, ainda que possam interferir em certos aspectos da modulação da indenização[10]

Haverá, inclusive, a possibilidade de casos em que culpados efetivos acabem por livrar-se da responsabilização por falta de provas e venham a postular indenização. Ora, declarados inocentes, este status tem ampla abrangência, não se podendo dizer o indivíduo inocente para alguns fins e não para outros. Se um inocente assim declarado esteve preso, ainda que ao tempo da prisão esta se demonstrasse lícita, é impositivo que o conjunto da sociedade, a bem quem a medida foi decretada, arque com as conseqüências. Admitir-se solução diversa, implicaria em violação ao artigo 5º, caput, da CF/88.

Isso trará maiores responsabilidades, sobretudo, à autoridade policial, sobre quem recairá a tarefa de produzir provas, mas também ao agente ministerial e ao julgador no momento de postular e analisar, respectivamente, a prisão cautelar. 

O que não parece admissível é que pessoas tenham dias ou meses tolhidos da sua liberdade, sejam colocadas em condições degradantes, genericamente presentes em todos os presídios do país, e este gravame, quando se revele indevido ulteriormente, fique sem reparação. 

5.4) Prisões Decorrentes de Sentença Penal

No caso das prisões decorrentes de sentença penal as coisas simplificam-se sensivelmente. A hipótese contempla somente prisões decorrentes de sentenças penais transitadas em julgado, visto que enquanto isso não tem advento, a prisão é cautelar, valendo o quanto supra mencionado. 

Assim sendo, será imperativa a propositura de ação revisional para que se questione a prisão, seja no curso de sua execução, seja após ela respeitado o prazo prescricional de cinco anos[11]

Para estes casos, já há previsão, no artigo 630 do CPP, de indenização. Porém se nos parece que a restrição constante do parágrafo segundo, alínea “b” relativa à impossibilidade de imputar-se indenização quando a acusação for privada não tem aplicação no contexto de objetivação da responsabilidade supra delineado. 

É que ainda quando a acusação for privada, houve o concurso da atividade do Estado sob cuja ordem se pratica efetivamente o ato de encarceramento. 

Hoje, porém, a hipótese de condenação privada resultar em condenação passível de gerar encarceramento é remota. 

De qualquer sorte, uma vez verificado, via ação revisional, a impropriedade da pena imposta, a indenização é de rigor. 

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A responsabilidade civil do Estado nas prisões indevidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3876, 10 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26664. Acesso em: 26 abr. 2024.

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