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Jurisprudência comentada: STJ - 4ª Turma - Seguro de saúde. Carência. Atendimento emergencial. Situação limite

19/02/2014 às 15:35
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Os excertos em comento mostram a atuação dos tribunais superiores em questões envolvendo prazo de carência estipulado em planos e seguros privados de assistência à saúde, analisados à luz da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

EMENTA: Quarta Turma - SEGURO DE SAÚDE. CARÊNCIA. ATENDIMENTO EMERGENCIAL. SITUAÇÃO-LIMITE.

A questão consiste em saber se, em seguro de assistência à saúde, é possível a seguradora invocar prazo de carência contratual para restringir o custeio dos procedimentos de emergência de que depende o beneficiário do seguro ao período concernente às doze primeiras horas de atendimento médico-hospitalar, a contar da internação. No caso, o recorrente ajuizou ação de obrigação de fazer em face da seguradora ora recorrida, sustentando ser beneficiário do seguro de assistência à saúde firmado com a recorrida. Aduz que, ao ser atendido no hospital, foi diagnosticada a existência de tumor cerebral maligno, com quadro médico grave e risco de morte, razão pela qual foi imediatamente internado para posterior intervenção neurocirúrgica. Apesar do caráter emergencial do exame de ressonância magnética nuclear, foi negada, pela recorrida, a sua cobertura ao argumento de que o contrato do recorrente estaria sujeito ao prazo de carência de 180 dias a partir da adesão ao seguro. E que, diante dessa situação, foi sua genitora quem custeou os exames. O juiz a quo julgou procedentes os pedidos formulados na inicial, obrigando a recorrida a custear todos os procedimentos necessários até a cessação e extirpação da moléstia, sob pena de arcar com multa diária de R$ 1 mil, determinando, também, o reembolso dos valores despendidos. Interposta apelação, o tribunal de justiça deu parcial provimento ao recurso da recorrida para limitar o período da cobertura. O recorrente interpôs recurso especial, que foi admitido. A Turma entendeu que, diante do disposto no art. 12 da Lei n. 9.656/1998, é possível a estipulação contratual de prazo de carência, todavia o inciso V, c, do mesmo dispositivo estabelece o prazo máximo de 24 horas para cobertura dos casos de urgência e emergência. Os contratos de seguro e assistência à saúde são pactos de cooperação e solidariedade, cativos e de longa duração, informados pelos princípios consumeristas da boa-fé objetiva e função social, tendo o objetivo precípuo de assegurar ao consumidor, no que tange aos riscos inerentes à saúde, tratamento e segurança para amparo necessário de seu parceiro contratual. Os artigos 18, § 6º, III, e 20, § 2º, do CDC preveem a necessidade da adequação dos produtos e serviços à legítima expectativa do consumidor de, em caso de pactuação de contrato oneroso de seguro de assistência à saúde, não ficar desamparado no que tange a procedimento médico premente e essencial à preservação de sua vida. Como se trata de situação limite em que há nítida possibilidade de violação de direito fundamental à vida, não é possível a seguradora invocar prazo de carência contratual para restringir o custeio dos procedimentos de emergência relativos ao tratamento de tumor cerebral que aflige o beneficiário do seguro. Precedente citado do STF: RE 201819, DJ 27/10/2006; do STJ: REsp 590.336-SC, DJ 21/2/2005, e REsp 466.667-SP, DJ 17/12/2007. REsp 962.980-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 13/3/2012.

PRECEDENTES:

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.

I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.

III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).

IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.STF: RE 201819, Segunda Turma, rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ 27/10/2006

Direito do consumidor. Contrato de seguro de vida inserido em contrato de plano de saúde. Falecimento da segurada. Recebimento da quantia acordada. Operadora do plano de saúde. Legitimidade passiva para a causa. Princípio da boa-fé objetiva. Quebra de confiança. Denunciação da lide. Fundamentos inatacados. Direitos básicos do consumidor de acesso à Justiça e de facilitação da defesa de seus direitos. Valor da indenização a título de danos morais. Ausência de exagero. Litigância de má-fé. Reexame de provas.

- Os princípios da boa-fé e da confiança protegem as expectativas do consumidor a respeito do contrato de consumo.

- A operadora de plano de saúde, não obstante figurar como estipulante no contrato de seguro de vida inserido no contrato de plano de saúde, responde pelo pagamento da quantia acordada para a hipótese de falecimento do segurado se criou, no segurado e nos beneficiários do seguro, a legítima expectativa de ela, operadora, ser responsável por esse pagamento.

- A vedação de denunciação da lide subsiste perante a ausência de impugnação à fundamentação do acórdão recorrido e os direitos básicos do consumidor de acesso à Justiça e de facilitação da defesa de seus direitos.

- Observados, na espécie, os fatos do processo e a finalidade pedagógica da indenização por danos morais (de maneira a impedir a reiteração de prática de ato socialmente reprovável), não se mostra elevado o valor fixado na origem.

- O afastamento da aplicação da pena por litigância de má-fé necessitaria de revolvimento do conteúdo fático-probatório do processo.

Recurso especial não conhecido. STJ:REsp 590.336-SC, Terceira Turma, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJ 21/2/2005.

CIVIL E PROCESSUAL. ACÓRDÃO ESTADUAL. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. PLANO DE SAÚDE. CARÊNCIA. TRATAMENTO DE URGÊNCIA. RECUSA. ABUSIVIDADE. CDC, ART. 51, I.

I. Não há nulidade do acórdão estadual que traz razões essenciais ao deslinde da controvérsia, apenas por conter conclusão adversa ao interesse dos autores.

II. Irrelevante a argumentação do especial acerca da natureza jurídica da instituição-ré, se esta circunstância não constituiu fundamento da decisão.

III. Lídima a cláusula de carência estabelecida em contrato voluntariamente aceito por aquele que ingressa em plano de saúde, merecendo temperamento, todavia, a sua aplicação quando se revela circunstância excepcional, constituída por necessidade de tratamento de urgência decorrente de doença grave que, se não combatida a tempo, tornará inócuo o fim maior do pacto celebrado, qual seja, o de assegurar eficiente amparo à saúde e à vida.

IV. Recurso especial conhecido em parte e provido. STJ:REsp 466.667-SP, Quarta Turma, rel. Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJ 17/12/2007.

SÍNTESE: Os julgados analisados nesta oportunidade tratam da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Os excertos destacados mostram a atuação de nossos tribunais superiores em questões envolvendo a validade de prazo de carência estipulado em planos e seguros privados de assistência à saúde, bem como limites à atuação das associações, especificamente no tocante à exclusão de sócio sem que lhe sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa.

COMENTÁRIOS:

A compreensão dos julgados em comento passa, necessariamente, pelas bases teóricas que levaram ao surgimento do que hoje é conhecido como Direito Civil Constitucional, o qual pode ser brevemente conceituado como uma leitura dos institutos de Direito Privado à luz das normas constitucionais, de onde retiram seu fundamento de validade.

A tradicional divisão do Direito em Público e Privado foi proposta pelo jurista francês Jean Domat, responsável por sistematizar o estudo do Direito, separando as leis civis das leis públicas, exercendo forte influência sobre o Código Napoleônico, e dando início à chamada era da codificação. Deve-se registrar, contudo, que tal divisão possui finalidade meramente didática, tendo sido baseada em categorias de interesses preponderantemente tuteladas por determinadas normas jurídicas, pois o Direito, a bem da verdade, é uno, isto é, um sistema unitário, porém ramificado para conferir harmonia ao conjunto.

Essa dicotomia clássica proposta Domat, entretanto, há muito não atende de forma satisfatória o estudo de determinadas disciplinas, e a tendência é que seja cada vez mais mitigada, mormente a partir do momento em que a Constituição Federal deixou de ser estudada como mero documento contendo “conselhos políticos”, para se impor como fundamento de validade das demais normas do ordenamento jurídico, o que, em última análise, é a “mão” do Estado em praticamente todas as relações sociais.

A crescente dificuldade de sistematização da diversidade de assuntos jurídicos que permeiam o cotidiano do aplicador do direito é analisada por Flávio Tartuce, a partir da terminologia criada por Ricardo Lorenzetti, o qual afirmou que a causa dessa dificuldade em lidar com o pluralismo exacerbado de normas decorre de um verdadeiro Big Bang Legislativo (In Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral. 8ª ed. Revista e atualizada, São Paulo: Método, 2012, p. 92).

A questão ganha contornos mais interessantes quando se está diante de direitos fundamentais, tradicionalmente estudados como garantias do indivíduo em face do poder estatal. A tal fenômeno dá-se o nome de eficácia vertical dos direitos fundamentais, uma vez que esses direitos projetam-se do indivíduo, enquanto sujeito submisso ao poder de império do Estado, em direção a este, de modo a evitar abusos decorrentes de sua situação de superioridade.

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Nada obstante, a hermenêutica mais arrojada do Direito Constitucional sinaliza no sentido de que os direitos fundamentais não só podem ser invocados contra o Estado, mas também pelos indivíduos nas relações entre si, ao que se dá o nome de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, isto é, a aplicação desses direitos entre sujeitos que se encontram em idêntico patamar jurídico. A base dessa teoria decorre do princípio da dignidade humana, erigido como fundamento da República, a teor do disposto no art. 1º, III, da Carta Fundamental. Sobre o tema, Flávio Tartuce cita a lição de Daniel Sarmento, para quem “é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa” (Op. Cit., p. 99).

Sendo a empresa um dos atores privados arrolados pelo insigne constitucionalista, na seara consumerista, seguramente a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais tem aplicação vastíssima. Senão vejamos.

Em primeiro lugar, os direitos do consumidor possuem vocação constitucional, consoante o estatuído no art. 5º, XXXII, da CF/88. Inegavelmente, a defesa do consumidor é um direito fundamental, o que é corroborado por sua localização no Título II da Lei Maior. Diz a regra em referência que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. A lei em questão é o próprio Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), elaborado em conformidade com o disposto no art. 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.

Em segundo lugar, o CDC, em seu art. 4º, reafirma a dignidade humana como referencial para a consecução da Política Nacional das Relações de Consumo, regra cujo teor merece transcrição:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios... (grifei).

O referido dispositivo, por si só, já nos dá uma ideia bastante clara a respeito da atuação de nossos tribunais superiores nas questões envolvendo a colisão de direitos entre indivíduos que se encontram em idêntico plano na ordem jurídico-constitucional, como o são os sujeitos da relação de consumo (consumidor e o fornecedor), ou seja, uma relação regida pelo Direito Privado.

Se é correto afirmar que nas relações privadas os sujeitos que nela figuram como partes possuem ampla liberdade para estabelecer o conteúdos dos pactos que desejam firmar, também é correta a afirmação de que nenhum direito é absoluto, nem mesmo os fundamentais. Já vem sendo espancada há alguns anos na doutrina e na jurisprudência a relativização da autonomia privada, que hoje não mais possui o absolutismo com que foi concebida durante o Estado Liberal. Vige, nos tempos atuais, o Estado Democrático de Direito, marcado pela relativização dos dogmas privatistas outrora absolutos, podendo-se citar, dentre os mais afetados, o direito absoluto à propriedade, a autonomia da vontade e o pacta sunt servanda. Arrematando, vige hoje o dirigismo estatal, que é a intervenção do Estado nas relações privadas, de modo evitar abusos por parte do sujeito que se encontra em situação de superioridade em relação ao outro, de modo a manter ou restabelecer o equilíbrio dessa relação.

No que se refere aos planos e seguros privados de assistência à saúde, não há dúvidas de que o consumidor que adere aos respectivos contratos assim o faz porque busca a melhoria de sua qualidade de vida. Sendo assim, avulta-se o dever de solidariedade por parte do fornecedor nas avenças dessa natureza, pois não se pode distanciar da ideia de que a saúde é o bem jurídico indispensável à manutenção da vida, e esta é o bem supremo de todos. Mais uma vez, socorremo-nos nas normas constitucionais, especificamente no art. 5º da CF/88, cujo caput diz: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes... (grifei).

A leitura atenta do Código de Defesa do Consumidor permite ao estudioso verificar que o sistema normativo consagrado pelo legislador consumerista atende ao postulado constitucional da função social. Um dos fundamentos da relativização dos institutos de direito privado é, exatamente, a necessidade de que estes cumpram uma função social. Daí falar-se em função social da propriedade e do contrato. A esse respeito, com base na teoria do diálogo das fontes, vale a transcrição do art. 2.035 e seu parágrafo único, do Código Civil:

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos (grifei).

Assim sendo, bastante acertadas são as decisões judiciais em que veda-se a invocação do prazo de carência nos contratos de plano de saúde, quando o usuário do serviço encontra-se em situação que reclama atendimento de urgência, pois, nada obstante a legalidade de cláusulas que estabeleçam tais prazos para o exercício dos direitos conferidos por contratos dessa natureza, no confronto entre a autonomia privada e os direitos à vida e à saúde, proponderam estes últimos. Como bem pontuado pelo STJ nos trechos destacados, são casos que demandam solução imediata, e, caso seja prevaleça a cláusula de carência, haverá o completo esvaziamento dos princípios e regras que norteiam a proteção do consumidor, mormente nesses casos em que a vulnerabilidade desse sujeito é ainda mais evidente.

Sintetizando: as empresas que exploram planos e seguros privados de assistência à saúde podem estabelecer períodos de carência para que o consumidor usufrua das benesses desse bem. Contudo, se restar comprovado que a obediência dessas cláusulas resultará em prejuízo para o consumidor, o seu conteúdo poderá ser afastado para que o contrato cumpra sua função social, que é a de prover o acesso do usuário aos tratamentos previstos na avença.

Tudo o que foi exposto até o momento sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais aplica-se ao destaque do RE 201819, de relatoria da Min. Ellen Gracie. Sendo as associações pessoas jurídicas de direito privado, as relações entre estas e seus associados são de livre estipulação, desde que, é claro, suas finalidades sejam lícitas. No caso em comento, tratava-se de exclusão de sócio sem a observância dos postulados do contraditório e da ampla defesa.

Nada obstante o direito de defesa dos associados encontrar-se expressamente previsto no Código Civil como condição para a exclusão de associado, juntamente com a justa causa, mais uma vez as normas constitucionais são o nosso norte interpretativo., uma vez que o direito ao contraditório e à ampla defesa encontram fundamento no art. 5º, LV da CF/88, assim redigido: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

A regra constitucional sob exame serviu de inspiração à Lei 11.127/05, que alterou, dentre outros dispositivos afetos às associações, a redação do art. 57 do Código Civil, que passou a dispor:

Art. 57. A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto.

Novamente sintetizamos: as associações possuem liberdade para definir o conteúdo de seus estatutos, seguindo, obviamente, os requisitos expressamente elencados no art. 54 do CC, que devem ser observados, sob pena de nulidade do estatuto. Contudo, como ressaltado na decisão proferida no RE 201819 - STF, com base na eficácia horizontal dos direitos fundamentais (no caso o direito à defesa e de recurso), deverá o julgador afastar as disposições privadas que contrariarem direitos fundamentais.

Finalmente, no que se refere ao destaque dado ao REsp 590.336-SC, fundamenta-se a vedação de denunciação da lide nas relações de consumo pela necessidade de tutela eficaz dos direitos do consumidor, que, como dissemos, possui vocação constitucional. Acrescente-se que, no rol dos direitos fundamentais, encontra-se expressa a garantia de duração razoável do processo, nos exatos termos do art. 5º, LXXVIII, da CF, assim redigido: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Nada mais lógico vedar-se a denunciação da lide nas demandas submetidas às disposições do CDC, uma vez que esse instituto do direito processual somente provocaria atrasos na prestação jurisdicional, ao admitir mais um sujeito na relação jurídico-processual, demandando a produção de mais atos processuais, aumento do tempo para a solução da demanda, o que, inegavelmente, colocaria o consumidor em situação de vulnerabilidade ainda maior.

Cumpre-nos, antes de finalizar, deixar anotado que o tema ora analisado é vastíssimo, sendo que nosso espaço para comentários, por questões didáticas, é limitado. Sendo assim, para aprofundar no estudo do tema, recomendamos a leitura de pelo menos três autores entusiastas do Direito Civil Constitucional:

- Gustavo Tepedino (Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar);

- Daniel Sarmento - Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris);

- Ingo Wolfgang Sarlet (A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado).

Essas obras, certamente, darão ao estudioso informações mais que suficientes à compreensão e desenvolvimento desse instigante fenômeno de nossos tempos.

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Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. Jurisprudência comentada: STJ - 4ª Turma - Seguro de saúde. Carência. Atendimento emergencial. Situação limite. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3885, 19 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26745. Acesso em: 19 abr. 2024.

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