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A crescente banalização dos livros jurídicos: uma (crítica) observação

25/02/2014 às 16:22
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A cadeia produtiva da expectativa de ingressar em cargo público por meio de concurso faz com que aumente o número de obras jurídicas que nada trazem de pensamento crítico e analítico,

Pode até soar desarrazoado ou desmerecedor o título do presente escrito na medida em que se abordará, criticamente, o exímio trabalho dos autores de obras jurídicas num momento tão perturbador para a leitura, dado às novas formas de aquisição de conhecimento – vídeos pela internet, livros on-line, artigos e congressos on-line, aulas televirtuais, etc.

Indubitavelmente, não é a intenção aqui desmerecer a leitura de importantes livros, mais especificamente quanto às obras jurídicas. Porém, já há algum tempo que se vivencia a eclosão de trabalhos os quais pouco despertam – ou nada despertam – o senso crítico daqueles que procuram estudar o Direito.

A maior preocupação se volta para a meta primária que tem escolhido aqueles que logo egressam das Faculdades de Direito: a escolha por ser “concurseiro”.

O que se tem verificado, ultimamente, é a abertura de Faculdades totalmente sem crédito e sem profissionais qualificados para leciona. Podem até tais profissionais ocupar relevantes cargos públicos, como Juiz de Direito ou membro do Ministério Público. Contudo, muitos não possuem um mínimo de senso crítico quanto ao vasto campo do Direito, não possuindo, ainda, a experiência necessária para lidar com estudantes e suas expectativas.

Ora, não se pode conceber Faculdades de Direito sem um quadro de docentes realmente empenhados em ensinar Direito. Isso mesmo, ensinar. Essa é a palavra que muitos se esquecem quando do momento de entrar em sala de aula e se deparar com uma sala cheia de alunos. Sim, é difícil ensinar, porque deve existir um professor dentro de sala, e não um Juiz de Direito ou membro do Ministério Público, que dizem “eu fiz aquilo”, “eu combati o tráfico de drogas”, “eu dei a sentença tal”, essas coisas.

Aliás, hoje em dia, infelizmente, a grandeza de uma pessoa está sendo medida pelos cargos e títulos que a mesma possui e ostenta perante a sociedade, e não pelo que ela efetivamente é. Roberto Shinyashiki, consultor organizacional e conferencista de renome, disse certa vez que a nossa sociedade ensina que, para ser uma pessoa de sucesso na vida, você precisa ser diretor de uma grande empresa, ter carro importado, viajar de primeira classe e ter uma casa maravilhosa. Os outros, que representam os funcionários que não se tornaram gerentes ou diretores, são tratados como uma multidão de fracassados.

Já em relação ao Direito basta, por exemplo, assistir a alguma palestra de um profissional e ouvir atentamente, antes da conferência, o mediador dizer quem é o palestrante: “Doutor em não sei o quê, Pós-Doutor em não sei o que lá, Mestre nisso, Professor da Faculdade tal, ex-Juiz de Direito, Procurador-Geral da República aposentado, consultor editorial da Revista de Direito tal...” Daí, todo mundo é só ouvido e atenção. Todavia, se falasse que o palestrante era apenas “Professor da Faculdade de Direito da Universidade x”, pouca atenção, obviamente, lhe seria dada (pelo menos inicialmente).

Enfim, é fato que a prática deve ser repassada aos alunos, mas sempre aliada ao estímulo de saber pensar sobre os casos concretos de forma crítica. E é isto que está faltando nesse momento de procura maciça pelos “cursinhos” que preparam o aluno para prestar Concursos Públicos (e, logicamente, ser aprovado neles).

Novamente sobre a meta precípua que muitos dos estudantes de Direito colocam em sua vida após a formação em Direito, evidencia-se que isto (ser “concurseiro”) se trata do principal motivo pelo aqui se denomina “banalização da doutrina”.

Basta entrar em uma biblioteca especializada em livros jurídicos, ou mesmo, mais cômodo inclusive, entrar em um site de alguma livraria ou editora virtual para logo observar o que mais se vende: resumos e apostilas para concursos.

A intensa busca pelo emprego estável fez germinar essa nova meta dos estudantes. Hoje, praticamente não se cursa mais a Faculdade de Direito para buscar entender o seu nebuloso e complexo mundo, de um ponto de vista totalmente crítico, com ênfase na leitura de manuais e artigos científicos que ensejam o raciocínio analítico e crítico dos estudantes, ponderando teses antagônicas e escolhendo aquela que julgar mais adequada (justa) à solução de um caso.

O que se tem visto, muitas vezes, é a escolha por cursar Direito concomitantemente com uma preparação para ingresso a qualquer custo em um cargo público por meio de concurso, o que já desmonta todo o preparo ideal que deveria ter para num futuro saber realmente o que está fazendo, se é aquilo que deseja e qual tese defenderá em seu trabalho, de forma ética, escorreita, crítica.

Isto se ressalva porque, geralmente, quando se pergunta a um estudante que se prepara para concursos qual o emprego que deseja, ele responde: “estou me preparando para a Magistratura ou Ministério Público”. Logicamente, essa mesma preparação se mostra apta a tentar outros concursos, como para a Defensoria Pública, analista judiciário, técnico judiciário, oficial de justiça, enfim. Ou seja, não há de fato um foco específico nesses estudantes. O que acontece é a escolha por estudar uma carreira, como a carreira fiscal ou a carreira jurídica, e quase nunca estudar o Direito.

Assim, logo se chega a outro grande problema: imagine o estudante que se prepara para ingressar no Ministério Público (que exige vários requisitos a serem preenchidos, como ser bacharel em Direito e possuir no mínimo 03 anos de exercício de atividade jurídica). Agora, imagine que antes disso esse mesmo estudante, passando por um cursinho que o ensina a “decorar” as leis dispostas no edital do concurso, acaba ingressando antes em um outro cargo público, como, por exemplo, técnico judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região (que exige, basicamente, possuir o ensino médio completo). Ora, como seria esse estudante como profissional dentro desse TRT? Estaria ele satisfeito com seu trabalho, sendo que não era isso especificamente que desejava, pois irá se deparar basicamente só com matéria trabalhista, diferente do que havia se preparado? Continuaria a “estudar” para o Ministério Público? Mas como, já que necessita de tempo hábil para o “estudo” (“decoreba de leis”) e não pode deixar de lado seu trabalho?

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É justamente essa a realidade que muito se presencia. O estudante tem sérios riscos de se tornar um profissional mesquinho, que não dá a devida atenção e valor ao trabalho, não se preocupando com o honroso cargo que ocupa no Tribunal Regional do Trabalho, como mencionado no exemplo. Não terá ele foco principal em seu labor, e provavelmente não criará laços seguros e confiáveis dentro do Tribunal. Além disso, todo aquele pensamento crítico que deveria ter, com cuidado especial à interpretação correta e justa das leis, acaba sendo posto em xeque em virtude da preparação apenas para o ingresso em concurso público. A leitura e estudo de importantes obras, que às vezes são esquecidas nas Faculdades – normalmente pela falta de tempo para cumprir o cronograma das disciplinas e pelo despreparo para este tipo de pensamento pelos atuais Professores –, não estariam presentes no espírito do profissional.

A preparação somente para ingresso em cargo público por meio de concurso acaba tornando os estudantes meros “decoradores de leis”. Houve uma vez que o político Roberto Jefferson, que ajudou a desmascarar o escândalo do chamado “mensalão” – embora estivesse envolvido no ardiloso esquema – questionou aqueles que o acusavam: “quem são essas pessoas, que decoram as leis e se dizem dignas a sair por aí acusando seus semelhantes?”, em clara referência aos membros do Ministério Público que o acusavam. Mesmo assim, foi condenado com fartas provas.

Poucos são aqueles concursos públicos que buscam averiguar realmente a capacidade crítica e intelectual dos candidatos. A grande maioria exige dos estudantes que saibam a letra da lei, e só (isso quando não são concursos fraudulentos).

Torna-se, portanto, um círculo vicioso: freqüentar um curso de Direito → estudar para conseguir um emprego estável no futuro → freqüentar um cursinho preparatório (mesmo que seja para passar no exame da OAB) ainda quando se está na faculdade ou logo após o término desta → comprar apostilas e resumos para concurso público → conseguir um cargo público, mesmo que não seja o esperado, mas que tenha um ótimo salário + estabilidade + vantagens inerentes ao cargo.

É este, pois, o profissional que a sociedade espera? A resposta há de ser, por certo, negativa.

E com isso pode-se chegar novamente ao tema central deste ensaio. A cadeia produtiva da expectativa de ingressar em cargo público por meio de concurso tende a ser a seguinte: com o aumento do número de vagas abertas para cargos públicos, estáveis e bem remunerados, aumenta-se também o número de candidatos que se inscrevem nos concursos públicos, aumentando, por via de conseqüência, o número de obras as quais nada trazem de pensamento crítico e analítico, com ênfase em temas sérios e delicados do Direito (por exemplo, ética e justiça), aos estudantes, mas tão somente “500 perguntas e respostas dos principais concursos da Magistratura”, ou “Resumão de Direito Previdenciário”, ou “O que você deve saber para passar em Concurso Público”.

Desculpas devo, neste final, aos ilustres mestres e doutores do Direito, que também escrevem obras com o fito de ajudar os candidatos para almejar o tão sonhado cargo. Mas não poderia deixar de fazer essa observação, a bem da Ciência Jurídica.

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Sobre o autor
Vitor Gonçalves Machado

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/LFG. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera/LFG. Bacharel em Direito pela UFES. Advogado do Banco do Estado do Espírito Santo. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4463439U4.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Vitor Gonçalves. A crescente banalização dos livros jurídicos: uma (crítica) observação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3891, 25 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26788. Acesso em: 23 abr. 2024.

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