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A construção civil e a construção da paz na sociedade civil

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O texto cuida do papel dos municípios na proteção do meio ambiente do trabalho, dando especial destaque à iniciativa legiferante que tramita perante a Câmara Municipal de Campinas (SP), que combate os acidentes laborais ocorridos na construção civil.

“Três palavras retificadoras do legislador e bibliotecas inteiras se tornam papéis velhos.” As palavras do jurista alemão von Kirchmann, hoje, fazem menos sentido do que à época em que elas foram proferidas. A Ciência do Direito evoluiu para muito além da simples aplicação da vontade do legislador. 

 Não será raro que a lei mude e, todavia, a interpretação do texto aproxime a sua inteligência da compreensão originária, porque mais conforme aos ditames da Constituição; ou, ao revés, que a sua compreensão mude sensivelmente, embora o texto legal siga sendo rigorosamente o mesmo. É que, na tarefa de interpretar, importa ao intérprete - que são, por excelência, os juízes - ter em primeira consideração que a Constituição sempre estará acima das leis. A isso os norte-americanos denominam de "supremacy clause", derivando-a de precedentes da U.S. Supreme Court, como p.ex. Marbury vs. Madison.

Mas deixemos alemães e norte-americanos, ao menos por agora, para um olhar bem mais próximo. Logo, o leitor entenderá por que os evocamos.

Tramita na Câmara de Vereadores da cidade de Campinas/SP o Projeto de Lei Complementar n. 34/2013, que é resultado direto dos trabalhos da Comissão Especial de Estudos para a Segurança na Construção Civil daquela mesma casa legislativa. Ali foram ouvidos, com efeito,  os principais atores sociais envolvidos na questão da segurança dos trabalhadores no meio ambiente do trabalho da indústria da construção civil: a academia, os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho e diversos representantes da sociedade civil organizada.

A notícia é por tudo alvissareira, porque essas balizas não podiam mais tardar. Com o incremento das grandes obras de construção civil nos últimos anos — sobretudo a reboque do superaquecimento estimulado no segmento pelo Governo Federal (no Brasil todo, em função do PAC; e na região de Campinas, particularmente, com a construção de moradias populares e a reforma do aeroporto de Viracopos) —, crescera também o número de acidentes fatais, nacional e localmente. 

Em Campinas, somente no ano passado, foram mais de 10 (dez) óbitos de trabalhadores em decorrência de acidentes ocorridos nos canteiros de obras. Em todos esses casos, é a sociedade como um todo a pagar, com a perda de vidas humanas e todas as suas inevitáveis repercussões econômicas (p.ex., indenizações e pensões previdenciárias), o custo do desenvolvimento econômico e habitacional. Já para as famílias dos trabalhadores mortos, a perda é obviamente incalculável. 

Essa tensão contraproducente não tem razão de existir, ao menos teoricamente. A expansão do bem-estar social não precisa se arrimar no sacrifício irreparável de indivíduos. O que significa dizer — ao contrário do que o senso comum indicaria — que os acidentes de trabalho e as doenças ocupacionais não são fruto necessário do desenvolvimento. O que decorre, aliás, da própria essência do Direito do Trabalho (ou, se quisermos, do Direito Tutelar do Trabalho): incorpora-se paulatinamente aos padrões normativos em vigor a evolução do estado da técnica e, desde modo, garantem-se níveis maiores de integridade pessoal, ao mesmo tempo em que avançam os próprios níveis de produtividade. Desse modo, quanto mais o conhecimento humano avança, mais eficazes tornam-se os mecanismos destinados a evitar os acidentes do trabalho (mormente os fatais); e, porque cientificamente possíveis e economicamente viáveis, tornam-se obrigatórios para os empresários.

Por óbvio, como se trata de evento sociocultural multifacetário, passam-se décadas para que os avanços cheguem ao front dessa guerra trágica, em que todos perdemos: empresas, cidadãos (vítimas e familiares), o Sistema Único de Saúde, a Previdência Social... Afinal, a sociedade como um todo.

Justamente por isso, ganha especial importância a iniciativa legislativa de inserir, no Código de Obras do Município, a necessidade de cumprimento da NR-18 pelas empresas de construção civil em atividade em Campinas (v. art. 3º, § 2º, do PL). Esta, aliás, foi uma das propostas que ventilamos, há pouco mais de um ano, quando, a convite da Câmara de Vereadores de Campinas, realizamos três exposições sobre os cuidados devidos com o meio ambiente do trabalho (especialmente na construção civil), nas dependências daquela Casa Legislativa. Com esta alteração legislativa, tão simples quanto profunda, o município passa a avocar para si a competência de fiscalizar o integral cumprimento da NR-18, podendo até caçar o alvará de obra que notoriamente esteja colocando em risco a saúde dos trabalhadores. Noutras palavras, sob a nova legislação, pode o fiscal municipal constatar o descumprimento da norma federal e agir em conformidade com essa aferição; até então, ao menos do ponto de vista estritamente legal, o fiscal poderia inclusive tomar conhecimento do risco para a saúde do trabalhador, mas pouco poderia fazer a respeito, para além da competente denúncia aos órgãos federais correlatos (notadamente a SIT/MTE e o próprio MPT).

Com a novidade legislativa, o município passa a reconhecer para si um papel mais ativo na prevenção dos acidentes de trabalho; e passa igualmente a implementá-lo. A prevenção e a precaução, com efeito, são as pedras angulares em matéria de tutela do trabalhador contra os sinistros laborais; afinal, pouco pode ser feito após o evento trágico, a não ser administrar as perdas e sequelas.

Anda bem o Município de Campinas, ademais, à luz da Constituição Federal. Com efeito, é a própria Constituição a atribuir esses poderes ao Legislativo municipal quando (a) insere o meio ambiente do trabalho no conceito de meio ambiente em geral (art. 200, VII); (b) atribui competência comum a todos os entes federados para legislarem sobre meio ambiente e o combate à sua poluição, em qualquer de suas formas (art. 23, VI), o que inclui a poluição labor-ambiental (cf. artigo 3º, III, “b”, da Lei n. 6.938/1981); (c) determina que o município legisle sobre assuntos de interesse local (art. 30, I); e, finalmente, (d) assevera que a saúde é direito do cidadão e dever do Estado — em todas as suas esferas federativas, portanto —, o que engendra, para o Poder Público, dever público indelegável quanto a todos os esforços administrativos tendentes a prevenir danos e agravos à saúde dos trabalhadores (com caráter eminentemente preventivo, a teor do art. 196, caput).

Precisamente em atenção a esses valores constitucionais é que a legislação federal criou o Sistema Único de Saúde, no qual o município está necessariamente inserido, com papel político fundamental e franca autonomia para a atuação em sede de vigilância sanitária. E, nesse contexto, pode também zelar pelas condições de higidez física, química e biológica dos inúmeros locais de trabalho sob sua fiscalização. Bastará apenas que, para tanto, subministre instrução adequada a fiscais especializados e os esclareça quanto à necessidade de atuar coordenadamente com os auditores fiscais do trabalho (MTE), quando necessário. Nas atuações conjuntas com o MTE, a primazia da decisão caberá sempre ao auditor-fiscal, ante a sua maior especialização. Com isso, prevenir-se-ão conflitos de atribuição que a ninguém interessaria.

Não é demais lembrar, enfim, que, em Direito Administrativo, quando se usa o vocábulo “poder”, compreende-se haver um correspondente “dever” do Estado. Desmistificar a sinistralidade na indústria da construção civil, erradicando a equivocada concepção de que “o acidente faz parte deste tipo de trabalho”, mercê dos materiais pesados e dos recorrentes espaços insalubres, será já um grande avanço.

Daí, e por tudo, a comunidade deve receber com júbilo o novel dispositivo legal, que passará a atribuir ao fiscal municipal a incumbência de identificar potenciais agravos à saúde dos trabalhadores, destacando-lhe poderes para evitar acidentes e, afinal, salvar vidas e preservar pessoas. Há mais, porém, que a mera previsão legal.  A letra fria da lei só ganha dimensão nomológica no momento em que o homem, que é seu destinatário, confere-lhe concretude no mundo dos fatos. Assim, a novidade legislativa precisa tornar-se efetiva o quanto antes, dimanando reflexos sociais positivos.

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Não se olvida que o número de fiscais é sempre insuficiente para as necessidades das grandes cidades; nem se ignora que poucos estejam realmente capacitados tecnicamente para entender e fazer que se cumpra a regra técnica. É bem verdade, ademais, que outros problemas precisarão ser enfrentados, notadamente os de ordem socioeconômica, a contrapor o pleno emprego à capacidade econômica do pequeno e médio empresário local; afinal, melhoria ambiental pressupõe investimento. Mas, afinal, queremos qualquer emprego?

Tudo, enfim, a dificultar o alcance do nobre objetivo de proporcionar melhores condições de integridade e saúde psicossomática para os trabalhadores da construção civil. E, a despeito dessas imensas dificuldades, segue por tudo imperioso o nosso aplauso para essa alvissareira movimentação no âmbito municipal. É, de fato, a evidência maior de que, em tema de meio ambiente do trabalho, há vida pulsando na esfera pública. Recorde-se, aliás, em paralelo, que recentemente o Estado de Minas Gerais publicou a Lei n. 21.114, de 30 de dezembro de 2013, proibindo o uso do amianto nos limites do seu território. E o Supremo Tribunal Federal, nada obstante, segue protelando, no bojo da ADI n. 3.937, a dicção evidente daquilo que se impõe, para o bem geral da população, a teor do princípio geral da precaução (artigo 15 da Declaração do Rio de Janeiro). Que valha, à posteridade, o irrebatível voto de Ayres Britto (e não o de Marco Aurélio). Mas essa é outra história...

No que agora interessa, resta propor, para além do inexorável debate em torno da efetividade do novo dispositivo, é a sua reprodução como paradigma deontológico para a proteção labor-ambiental. Impende que essa mesma pulsão protetiva, inspiradora da tramitação do PLC n. 34/2013 na Câmara de Vereadores de Campinas, ganhe força e ocasião, irrompendo em outros Estados e municípios, com vista à modificação da uma triste realidade estatística, presente entre nós anos a fio, sempre a sinalizar o óbvio: o setor da construção civil tem sido palco insistente, no Brasil da Copa do Mundo, para absurdas e inaceitáveis perdas humanas.

Bem sabemos que leis não mudam o mundo. Mas se acaso residir, nesse pequeno passo, um filete de esperança, por que não o enaltecer e reproduzir? Que os senhores edis de Campinas, em breve tempo, possam votar e aprovar o citado PLC n. 34/2013, ofertando novo e elogioso exemplo para todos os seus pares, em todos os rincões do país. E que oxalá outros autores enalteçam, em muitos outros (con)textos, as bondades desse pequeno gesto simbólico.

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Sobre os autores
Ney Maranhão

Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-graduação). Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo - Largo São Francisco, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma/La Sapienza (Itália). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista CAPES. Professor convidado do IPOG, do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA) (Pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª (SP), 4ª (RS), 7ª (CE), 8ª (PA/AP), 10ª (DF/TO), 11ª (AM/RR), 12ª (SC), 14ª (RO/AC), 15ª (Campinas/SP), 18ª (GO), 19ª (AL), 21ª (RN), 22ª (PI), 23ª (MT) e 24 ª (MS) Regiões. Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA). Membro fundador do Conselho de Jovens Juristas/Instituto Silvio Meira (Titular da Cadeira de nº 11). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Trabalho – RDT (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais). Ex-Membro da Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista (TST/CSJT). Membro do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro (TST/CSJT). Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Macapá/AP (TRT da 8ª Região/PA-AP). Autor de diversos artigos em periódicos especializados. Autor, coautor e coordenador de diversas obras jurídicas. Subscritor de capítulos de livros publicados no Brasil, Espanha e Itália. Palestrante em eventos jurídicos. Tem experiência nas seguintes áreas: Teoria Geral do Direito do Trabalho, Direito Individual do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Internacional do Trabalho. Facebook: Ney Maranhão / Ney Maranhão II. Email: [email protected]

Flávio Leme Gonçalves

Advogado do escritório AeG Advogados Associados. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Constitucional Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Universitário.

Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARANHÃO, Ney ; GONÇALVES, Flávio Leme et al. A construção civil e a construção da paz na sociedade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3899, 5 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26834. Acesso em: 21 nov. 2024.

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