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A percepção de saliências na argumentação jurídica

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18/03/2014 às 12:22
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O agente deve perceber as saliências específicas de um evento que o tornam um caso típico de algo. Como se adquire a habilidade para discernir os aspectos salientes de um caso jurídico?

Introdução

Como um juiz decide um caso? Esta simples pergunta tem gerado uma infinidade de discussões, e em torno dela têm gravitado teorias muito díspares sobre a natureza e a função do direito. A resposta, afinal, é de suma importância: dela depende, em grande parte, a legitimidade de certas pessoas (os juízes) decidirem casos. Pois caso se conclua que o juiz decide um caso não com base em argumentos racionais, mas determinado por preconceitos e circunstâncias contingentes irrelevantes, não há porque insistir em manter uma estrutura dispendiosa e morosa para decidir casos que poderiam ser decididos por sorteio (com a vantagem de nesse caso a solução ser a mais imparcial possível).

Algumas teorias de fato sustentam essa posição. É famosa a afirmação dos realistas americanos de que a decisão é resultado do que o juiz comeu no café da manhã. Esta afirmação, por mais exagerada e absurda que pareça ser, tem uma tese forte e que seduz a muitos: o juiz é levado, na sua decisão, menos por argumentos especificamente jurídicos e racionais e mais por circunstâncias de todo o tipo que o influenciam determinantemente na hora de decidir. No Brasil, uma corrente bastante em voga há não muito tempo, mas hoje já desacreditada, sustentava uma premissa semelhante: ao decidir, o juiz é influenciado principalmente por questões pessoais e ideológicas, e a roupagem jurídica da sentença é apenas a racionalização de uma motivação não jurídica. E, se isso é assim, defendia a teoria, o Direito é um instrumento político que pode ser tanto usado para manter como para subverter o status quo. Aos juízes progressistas caberia o papel transformador de utilizar o Direito para realizar justiça social.

Contudo, o presente trabalho não tem como objetivo analisar a plausibilidade dessas teorias, e sim o que poderia ser chamado de “a filosofia da tomada de decisão”. Procurarei apresentar alguns argumentos sobre os aspectos que estão, e os que devem estar, envolvidos na apreciação de um caso por um juiz e como ele chega numa decisão. Tendo uma pretensão normativa, a correção da tese, a meu ver, deve levar a uma mudança no modo de ensinar o Direito nas nossas faculdades.

Minha tese, já adianto, é tomada de empréstimo da filosofia moral, mais especificamente de um termo primeiramente utilizado por David Wiggins e depois por John McDowell: a noção de saliências de um caso prático.


As saliências na deliberação moral

A expressão “percepção de saliências” foi introduzida na filosofia por David Wiggins, no seu artigo “Deliberation and practical reason”.[1] O artigo é uma análise precisa e complexa da noção de deliberação prática na filosofia aristotélica. Não cabe aqui uma análise exaustiva dos principais argumentos do artigo. Atendo-se ao que diz respeito mais diretamente ao tema que irei tratar, basta examinar alguns trechos.

Antes, é importante ressaltar que eles são análises de argumentos do livro VI da “Ética Nicomaquéia” de Aristóteles, onde o filósofo trata da deliberação prática. Neles, o Estagirita argumenta que (1) a sabedoria prática é de objetos particulares imediatos e que (2) não são objeto de conhecimento científico, mas de percepção (“não da percepção de qualidades peculiares a um determinado sentido, mas de uma percepção semelhante àquela pela qual sabemos que a figura particular que temos diante dos olhos é um triângulo”).[2]

Quanto ao primeiro ponto, isso se dá porque a sabedoria prática visa à ação, e esta versa sobre os particulares. Por isso que, segundo Aristóteles:

(...)alguns que não sabem, e especialmente os que possuem experiência, são mais práticos do que outros que sabem; porque, se um homem soubesse que as carnes leves são digestíveis e saudáveis, mas ignorasse que espécies de carnes são leves, esse homem não seria capaz de produzir a saúde; poderia, pelo contrário, produzi-la o que sabe ser saudável a carne de galinha.[3]

Sobre o segundo ponto, os comentários de Wiggins sobre o papel da percepção na deliberação moral em Aristóteles são iluminadores:

A man usually asks himself “What shall I do?” not with a view to maximizing anything but only in response to a particular context. This will make particular and contingent demands on his moral or practical perception, but the relevant features of the situation may not all jump to the eye. To see what they are, to prompt the imagination to play upon the question and let it activate in reflection and thought-experiment whatever concerns and passions it should activate, may require a high order of situational appreciation, or, as Aristotle would say, perception.[4]

A percepção das características relevantes de uma determinada situação não é facilmente obtida, e não há outra forma de apreendê-las senão com um alto grau de apreciação contextual, ou seja, examinando aas características do caso concreto. Não é possível, de antemão, através de uma teoria, determinar quais são os aspectos relevantes de toda e qualquer situação, pois estes sempre variam de caso para caso. Não há forma, além do mais, de exercitar essa habilidade que não em contextos práticos.

Mais adiante, Wiggins pontua:

It is the mark of the man of practical wisdom on this account to be able to select from the infinite number of features of a situation those features that bear upon the notion or ideal of existence which it is his standing aim to make real. This conception of human life results in various evaluations of all kinds of things, in various sorts of cares and concerns, and in various projects. It does not reside in a set of maxims or precepts (...). In no case will there be a rule to which a man can simply appeal to tell him what to do.[5]

Ao deliberar sobre qual o curso adequado a tomar em uma determinada situação prática, o homem dotado de sabedoria prática é aquele com a habilidade de discernir quais são os aspectos relevantes da situação e de que forma eles se harmonizam com o tipo de vida que ele quer levar, e não há nenhuma fórmula ou regra que possa dizer-lhe o que deve ser feito. O comentário é uma síntese da tese que permeia todo artigo de Wiggins: não é possível uma teoria científica da deliberação que indique um sistema de regras às quais o agente pode recorrer sempre que enfrenta uma situação prática, bastando adequá-la ao caso concreto. O fundamental para a deliberação prática é essa habilidade adquirida com a experiência e a prática de identificar os aspectos salientes de uma situação e a partir daí verificar até que ponto eles se qualificam como instanciações de um fim desejado, para só então entrar numa típica análise de qual meio é mais eficaz para realizar o fim do qual o aspecto saliente é uma instanciação.

O tema da percepção de saliências foi retomado por John McDowell no seu artigo “Virtue and reason”.[6] McDowell procura contrastar duas formas de entender a ética: uma, que a considera como uma disciplina que procura formular princípios aceitáveis de conduta, e cujo objetivo fundamental é o conceito de conduta correta e a natureza e a justificação de princípios de comportamento; outra, cujo interesse principal reside em responder à pergunta sobre qual a melhor forma de se viver através das noções de virtude e pessoa virtuosa. É esta última que ele irá defender.

Assim como na análise de Wiggins, não irei me deter sobre todos os pontos do artigo. McDowell também adota uma perspectiva aristotélica para defender sua posição, e em grande parte segue Wiggins nas considerações sobre razão prática, mas o artigo também tem forte influência da filosofia de Wittgenstein e Stanley Cavell.

McDowell define virtude como “an ability to recognize requirements which situations impose on one’s behaviour. It is a single complex sensitivity(...).”[7] O agente virtuoso é aquele que, por exemplo, reconhece quais as atitudes corajosas a tomar numa situação de perigo que demanda coragem. E, ressalta McDowell, ele não toma essa atitude pesando razões prós e contras (do tipo: “salvarei a vida do meu amigo, mas corro o risco de morrer também”):

(…) the view of a situation which he arrives at by exercising his sensitivity is one in which some aspect of the situation is seen as constituting a reason for acting in some way; this reason is apprehended, not as outweighing or overriding any reasons for acting in other ways which would otherwise be constituted by other aspects of the situation (the present danger, say), but as silencing them.[8]

Segundo McDowell, a conduta correta impõe-se ao agente, e é uma má descrição do seu comportamento, caráter e motivações dizer que ele faz uma espécie de “balanceamento de razões”, colocando de um lado da balança os aspectos positivos e de outro os negativos da conduta a tomar. O filósofo é explícito ao afirmar que “the relevant notion of salience cannot be understood except in terms of seeing something as a reason for acting which silences all others”.[9]

Numa determinada situação em que diferentes preocupações, que irão refletir diferentes atitudes, estão em jogo, o agente virtuoso é aquele que é capaz de ver qual o fato saliente dentre eles, que então passa a silenciar os demais. Digamos, por exemplo, que um sujeito vê-se numa situação em que fez uma promessa de comparecer ao casamento do seu amigo, e ao mesmo tempo é apanhado de surpresa pela notícia da morte de outro amigo. Ou ele vai ao casamento de um, ou ampara e presta condolências à família de outro. Não há uma fórmula ou regra fixa que determine a conduta correta, tudo dependerá da apreciação do contexto que Wiggins referia, na linha da defesa que Aristóteles faz da flexibilidade da deliberação prática.[10] Conforme McDowell:

If there is more than one concern which might impinge on the situation, there is more than one fact about the situation which the agent might, say, dwell on, in such a way as to summon an appropriate concern into operation. It is by virtue of his seeing this particular fact rather than that one as the salient fact about the situation that he is moved to act by this concern rather than that one. (...) A conception of how to live shows itself, when more than one concern might issue in action, in one’s seeing, or being able to be brought to see, one fact rather than another as salient.[11]

Também Martha Nussbaum, através principalmente do seu artigo “The discernment of perception: an Aristotelian conception of private and public rationality”, analisou o tema da percepção das saliências na deliberação moral. Nussbaum primeiramente enfatiza como na deliberação prática aristotélica os particulares têm prioridade sobre os universais:

“The discernment rests with perception“. This phrase (...) is used by Aristotle in connection with his attack on another feature of pseudo-scientific pictures of rationality: the insistence that rational choice can be captured in a system of general rules or principles which can then simply be applied to each new case. Aristotle’s defense of the priority of ‘perception’, together with his insistence that practical wisdom cannot be a systematic science concerned throughout with universal and general principles, is evidently a defense of the priority of concrete situational judgments of a more informal and intuitive kind to any such system.[12]

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O refinamento da percepção está ligado a uma faculdade de discriminação na apreensão de particulares concretos, e se dá através da experiência, ou seja, do exercício constante de julgamentos práticos. Não por outra razão, defende Aristóteles, em consonância com nossas práticas ordinárias, que é “por isso [que] devemos acatar, não menos que as demonstrações, os aforismos e opiniões não demonstradas de pessoas experientes e mais velhas, assim como das pessoas dotadas de sabedoria prática. Com efeito, essas pessoas enxergam bem por que a experiência lhes deu um terceiro olho”.[13]

Outro ponto defendido por Nussbaum é a importância da imaginação para a boa deliberação prática. A filósofa introduz a importância da imaginação salientando que não havia no vocabulário grego o conceito que correspondesse exatamente ao que nós entendemos por “imaginação”. O termo grego que Aristóteles utilizava era o de phantasia. Segundo a autora:

His phantasia (...) is a more inclusive human and animal capability, that of focusing on some concrete particular, either present or absent, in such a way as to see (or otherwise perceive) it as something, picking out its salient features, discerning its content (...). So it can do much of the work of our imagination, though it should be stressed that Aristotle’s emphasis is upon its selective and discriminatory character rather than upon its capability for free fantasy. Its job is more to focus on reality than to create unreality.[14]

Portanto, para Aristóteles a imaginação (phantasia) é necessária uma vez que é através dela que o agente percebe os objetos do mundo como algo, é dizer, identifica os seus aspectos salientes e os enquadra sob determinado conceito.

Nussbaum igualmente ressalta o papel das emoções na apreensão da realidade e na resposta a certa situação prática. Segundo ela, para Aristóteles, não sentir a emoção correta e não responder emocionalmente de forma adequada com relação ao objeto apropriado é não entender suficientemente a situação: se intelectualmente sei que meu amigo precisa de ajuda ou que um ente querido morreu, mas não respondo a esses fatos com a simpatia e pesar apropriados, pode-se dizer que não apreendi corretamente a situação – eu não vi de fato o que ocorreu. A importância desta tese para o Direito, no entanto, é bastante duvidosa, uma vez que muitas das emoções moralmente relevantes são indiferentes para a decisão, podendo inclusive ser prejudiciais a ela.[15] Muito provavelmente há um papel relevante para as emoções na deliberação jurídica mas, devido à complexidade e importância do assunto, não irei abordá-la no presente momento.

São com estes apontamentos em mente que podemos passar para o capítulo seguinte, onde será analisado de que forma estas considerações podem ser aplicadas à argumentação jurídica e os seus reflexos sobre o ensino do Direito.


As saliências na argumentação jurídica

A filosofia do direito testemunhou nos últimos anos o surgimento de diversas teorias da argumentação. Todas elas procuram exercer sua influência no chamado contexto de justificação de uma decisão, apresentando um estudo das condições pelas quais se pode considerar justificado um argumento e mostrando como de fato se justificam e como deveriam ser justificadas as decisões. Neste último ponto, sua ênfase é no esclarecimento do que conta como uma boa decisão e um bom argumento jurídico. As teorias de Neil MacCormick[16] e Robert Alexy[17] são os casos mais famosos de tais teorias. Embora partindo de influências e sistemas jurídicos diversos, ambos possuem teorias conclusões muito semelhantes. E os dois são explícitos: suas teorias procuram estabelecer métodos e critérios pelos quais se pode concluir que uma argumentação está justificada.[18]

Por outro lado, nas teorias contemporâneas pouca ênfase é dada à forma como o juiz chega à decisão, ao chamado contexto da descoberta. A maneira como ele o faz é tratada ou como um mero ato de vontade, arbitrário e irracional ou como, na célebre expressão de Joseph Hutcheson, através de uma espécie de “hunch”[19]. Mesmo os que tratam o fenômeno de forma racional costumam apenas analisar aspectos psicológicos ou sociais de quais fatores, conscientes e inconscientes, influenciaram o juiz na sua decisão. Minha tese é de que o bom juiz é aquele que tem a habilidade de identificar os aspectos jurídicos salientes de um caso concreto e a partir daí decidir bem.

Os fatos do mundo se tornam fatos jurídicos quando subsumidos por uma norma; isso ocorre quando ele possui certos aspectos juridicamente relevantes. Por exemplo: que eu dirija meu carro é um fato juridicamente irrelevante; que eu dirija sem carteira de habilitação é uma infração. O bom jurista é aquele que, ao deparar-se com um caso, consegue discernir de todo o emaranhado de fatos que ele apresenta aqueles que são juridicamente relevantes e, dentre eles, aqueles que são os salientes e determinantes da decisão.

O procedimento é enganosamente simples. E não é incomum que seja apresentado como simples pela própria comunidade jurídica. É frequente a crítica da argumentação jurídica como “mera subsunção”, como se isso implicasse que ela fosse mecânica, como se os fatos no mundo estivessem prontos para serem subsumidos por normas claras. Mas ela apresenta uma dupla dificuldade, uma em cada lado da moeda – do fato e da norma.

Em primeiro lugar, não é algo fácil dizer o que de fato ocorreu. O agente deve perceber um evento do mundo como algo, perceber suas saliências específicas que o tornam um caso típico de algo, por exemplo: “isto aqui é lesão“, ”isto é erro”, ”isto é dolo” etc. A percepção acurada da realidade é algo extremamente difícil[20], e mais difícil ainda quando plasmada pelo fenômeno jurídico, é dizer, quando é necessário verificar não só o que ocorreu, mas o que é juridicamente relevante do que ocorreu. Somente alguém com grande habilidade jurídica consegue ver num determinado caso todas as saliências jurídicas relevantes.

Em segundo lugar, uma vez qualificado o fato nem sempre haverá uma norma que se ajusta perfeitamente a ele. Aí é necessário não somente conhecimento de leis, mas o conhecimento de como interpretá-las corretamente, qual a extensão dos seus termos, qual o seu propósito e como ela se coaduna com o restante da legislação. Muitas normas, sejam elas regras ou princípios, são ambíguas, e não é possível recorrer à intenção do legislador para eliminá-la, pois este pode não tê-la deixado explícita e sequer ter pensado em todas hipóteses de sua aplicação. Aliás, como já afirmava Aristóteles, “o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza.[21] Em caso de ambiguidade, portanto, o juiz (no que será obviamente auxiliado pelas partes) terá que analisar o uso comum da expressão, a coerência desse uso com o ordenamento jurídico, os valores e objetivos que informam a norma, entre tantas outras coisas. Também pode ocorrer de mais de uma norma ser aplicável, e nesse caso é preciso resolver uma antinomia jurídica. Ao fim de tudo, deve-se avaliar a coerência e consequência jurídicas da decisão – como ela se conforma com precedentes, jurisprudência e doutrina e que tipo de precedente ela mesma gera. Portanto, o processo não é nada simples, e descrevê-lo de forma pejorativa como uma “mera subsunção” é não fazer justiça à sua complexidade. A bem da verdade, simples é o oposto, ou seja, fazer uma análise superficial dos fatos como se o seu rótulo jurídico já estivesse pronto, bastando subsumi-los à norma, e descuidar de um conhecimento legal profundo, desconhecendo o material normativo pertinente ao caso.

É possível, além disso, estabelecer uma convergência entre o conhecimento das leis e dos fatos. Pois eles andam juntos quando está em questão a qualificação jurídica dos fatos: o distintivo da percepção das saliências jurídicas é que essas, diferentemente das saliências de um caso moral, só são identificáveis por aqueles que dominam os conceitos jurídicos. Uma das partes mais importantes do aprendizado jurídico é o domínio da linguagem e dos conceitos especificamente jurídicos, a habilidade de conseguir enquadrar um fato de uma forma mais refinada do que um leigo o faria. Um leigo vê apenas, a não ser nos casos mais óbvios (furto, assassinato etc) que algo moralmente errado aconteceu,[22] mas não possui os conceitos jurídicos para enquadrá-lo como um fato jurídico. Basta uma rápida olhada no direito obrigacional e penal para verificarmos o quanto o Direito é prolífico em distinções sutis de fatos e motivações do agente, e para identificá-las é necessário uma expertise especificamente jurídica.

A questão crucial, no entanto, é: como se adquire esta habilidade para discernir os aspectos salientes de um caso? É aqui que podemos nos valer diretamente do que foi exposto acima com relação à deliberação moral: através da experiência prática e do estudo de casos concretos.

Assim como o aprendizado moral em Aristóteles se dá através de exemplos e da prática (você se torna corajoso e entende o que é ser corajoso, por exemplo, não através de uma definição de coragem ou sendo exposto a uma teoria sobre a coragem, mas vendo atos de coragem e praticando atos corajosos), o mesmo acontece com relação ao Direito. Deveria ser objetivo da educação jurídica ensinar o estudante a perceber as particularidades das diversas situações, a tal ponto que ele, ao defrontar-se com um caso, possa identificar seus traços jurídicos salientes.[23] Este aprendizado se dá por exposição a casos e pela prática.[24] Os traços característicos de cada situação são apreendidos pela exposição constante a ela. Por mais que uma teoria lhe permita discorrer sobre o assunto, identificar aquela situação como uma instanciação da teoria requer uma habilidade específica e distinta. Pois uma coisa é ter o conhecimento teórico dos conceitos jurídicos, outra coisa é a habilidade de verificar que certa situação é um caso de determinado conceito.[25] Uma vez compreendido o conceito através da experiência e da prática o sujeito se torna capaz de projetá-lo em situações novas que guardam semelhanças com as anteriores.[26]

Um trecho do “O conceito de Direito”, de Hart, ilustra meu ponto. Hart[27] comenta como fórmulas do tipo “tratar casos semelhantes de forma semelhante” ou “todos são iguais perante a lei” são vazias até que se estabeleçam quais são os caracteres essenciais para se definir a semelhança ou para marcar o pertencimento ao grupo “todos”. O que torna o caso X semelhante ao caso Y, a tal ponto que possam receber o mesmo tratamento? Toda a argumentação em cima dos precedentes e do stare decisis se dá em cima dessa análise concreta do que aproxima e do que afasta um caso do outro, e quais são os aspectos relevantes de um que podem servir de base para decidir o outro.

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Sobre o autor
Eduardo Augusto Pohlmann

Bacharel em Direito e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Master of Laws (LL.M) pela London School of Economics and Political Science (LSE). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POHLMANN, Eduardo Augusto. A percepção de saliências na argumentação jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3912, 18 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26963. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Publicado anteriormente em: Ana Carolina da Costa e Fonseca; Eduardo Augusto Pohlmann; Gabriel Goldmeier. (Org.). Ética, política e esclarecimento público: ensaios em homenagem a Nelson Boeira. 1ed.Porto Alegre: Bestiário, 2012, p. 113-126.

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