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Juizados especiais: o tema da competência pós Lei n. 11.313/06

31/03/2014 às 13:31
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Averigua-se a influência da conexão entre uma infração de menor potencial ofensivo e outra da competência da vara comum para determinação da competência jurisdicional.

Resumo: O presente artigo se dedicará a averiguar, dentre outros temas menores, a influência da conexão entre uma infração de menor potencial ofensivo e outra da competência da vara comum para determinação da competência jurisdicional e se para o efeito da transação penal o juiz deve somar as penas máximas dos delitos ou considerá-las isoladamente.


Introdução

A modificação legislativa que foi aplicada à sistemática dos Juizados Especiais Criminais, qual seja, Lei n.º 11.313/06, que alterou os arts. 60 e 61, Lei n.º 9099/95 e art. 2.º, Lei n.º 10259/01, sugere ao intérprete do Direito que, havendo conexão entre infração de menor potencial ofensivo e delito que deva ser processado em juízo comum, o qual, com a novel sistemática, será o foro de atração (art. 78, CPP), não deverão as penas máximas dos delitos ser somadas. Deverão, sim, ser isoladamente consideradas, como forma de aplicar-se os institutos despenalizadores da Lei de Juizados, conforme sua mens legis.

Inegável que o legislador pátrio, atribuindo caráter patentemente conciliatório às infrações delimitadas sob teor do Art. 98, CF/88, buscou inovar acerca da aplicação da lei penal no Brasil, retirando da esfera criminal comum infrações que, por critérios objetivos, são expressamente denominadas de menor potencial ofensivo. É justo, portanto, sugerir que desde o ano de 1995, com a publicação do referido diploma, o ordenamento jurídico brasileiro impôs ao Poder Judiciário a observância das regras e benefícios que, então, passaram a caracterizá-las. Por revelar diminuta ofensividade, de acordo com os critérios legais, um menor desvalor social é imputado ao seu autor, o qual se submeterá a procedimento que visa, basicamente, a composição dos danos cíveis, primando pelo ressarcimento da vítima, e à aplicação de pena não privativa de liberdade. Inaugurou-se, pois, mediante a publicação da Lei n.º 9099/95, o modelo de justiça não conflitivo, cujos princípios convergem em favor da conciliação do autor do fato com o titular do direito de ação penal.

A inovação, contudo, como logo se verificará, não foi imediatamente absorvida pelos aplicadores do Direito, o que gerou posições conflitantes na doutrina e jurisprudência.

Atribuição da Competência Processual Penal em face da conexão entre crimes de menor potencial ofensivo e jungidos à competência do juízo singular

Vivo era o debate, em tempo anterior ao da publicação da Lei n.º 11.313/06, sendo que era possível definir posição de doutrina significativa no sentido de verificar-se isoladamente as penas das infrações penais em concurso para apurar-se a possibilidade de aplicação dos institutos despenalizadores pátrios. De outro lado, contudo, a não menos respeitável posição esposada pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, segundo os quais as penas deveriam ser verificadas de acordo com a sua soma. Desta corrente, inclusive, desenvolveu-se o entendimento sumulado STJ, 243.

Reiteradas vezes, O STF julgou casos que envolviam matéria de concurso formal (art. 70, CP), concurso material (art. 69, CP) e crime continuado (art. 71, CP), em sede de habeas corpus, sendo que restou o entendimento acima esboçado, segundo o qual há se observar a soma das penas para a verificação da possibilidade de aplicar-se os benefícios da Lei n.º 9099/95. Particularmente interessante revela-se o HC 78.876/MG, cuja ementa abaixo declinamos:

EMENTA: HABEAS-CORPUS. CRIMES DE HOMICÍDIO E DE LESÃO CORPORAL CULPOSOS EM CONCURSO FORMAL (ACIDENTE DE TRÂNSITO). ALEGAÇÃO DE CABIMENTO DE APLICAÇÃO DA LEI Nº 9.099/95 NO CASO DE CONCURSO FORMAL: TRANSAÇÃO PENAL (ART. 76), PARA OS CRIMES DE LESÕES CORPORAIS, E SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO (ART. 89), PARA OS CRIMES DE HOMICÍDIO. 1. No julgamento do HC nº 77.242-SP, no Plenário, ficou decidido que os benefícios previstos na Lei nº 9.099, de 25.09.95, como a transação penal (artigo 76) e a suspensão condicional do processo (artigo 89), também são aplicáveis no caso de concurso formal de crimes, suprindo-se a lacuna da lei mediante aplicação analógica das disposições pertinentes à fiança, por ser o instituto que mais se aproxima destes casos, ficando afastada a incidência, para o mesmo fim, das normas que dispõem sobre a prescrição. Em conseqüência, ficou superado o entendimento da Turma no HC nº 76.717-RS. 2. A competência para processar e julgar os dois crimes de lesões corporais culposas, em concurso formal heterogêneo com três homicídios culposos, é determinada pela continência, fato que importa na unidade de processo e julgamento (artigos 77, II, e 79 do CPP). Impossibilidade de cisão do processo, que implica inviabilidade de transação penal (artigo 76 da Lei nº 9.099/95), para os crimes de lesões corporais, porque escapa do alcance do artigo 61 da mesma Lei, que estabelece como crime de menor potencial ofensivo aquele com pena máxima cominada de um ano. 3. Não cabe a suspensão condicional do processo, ou sursis processual (artigo 89 da Lei nº 9.099), no caso de concurso formal de crimes, quando a pena mínima cominada ao crime mais grave, acrescida do aumento mínimo, exceder a um ano. 4. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido, cassando-se a liminar concedida. (Grifos Nossos).

Interessante notar-se, ademais, o processo de integração da norma jurídica, analogia, efetuada pelo STF, revelado pela ementa acima transcrita. Concorde lição da doutrina pátria, que já antes da Lei n.º 11.313/06 defendia a tese segundo a qual não há se falar na soma de penas, mas a verificação isolada para a verdadeira realização dos preceitos da Lei n.º 9099/95, em face da lacuna sobre como proceder quando da conexão entre infrações de menor potencial ofensivo e delitos sob a competência do juízo comum, sugeria a aplicação do Art. 119, CP, verbis: no caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente. Assim, para a doutrina, o mais adequado espelho para se suprir a lacuna no caso concreto verifica-se como sendo regra referente à extinção da punibilidade, tendo em vista a mens legis emanada da Lei de Juizados Especiais Criminais e que indica a singularidade das medidas despenalizadoras às infrações de menor potencial ofensivo, bem como a adoção das mesmas como forma de, compondo os danos ou aplicando penalidade não privativa de liberdade, promovendo a extinção da punibilidade do autor do fato. Indica-se, portanto, relevante tese, a qual, inclusive, lastreia-se na natureza material, p. ex., do instituto da transação penal.

Por outro lado, a adoção jurisprudencial do processo de analogia relativamente às normas da fiança, que impõe a soma das penalidades para se apurar da pertinência ou não de se aplicar os benefícios da Lei de Juizados àquelas infrações de menor potencial ofensivo conexas com crimes de competência da justiça comum, data maxima venia, não se verificam adequadas ao caso em estudo, tendo em vista, além de outros motivos, o caráter processual do instituto espelhado pelo intérprete.


O Problema da Transação Penal

O entendimento acima colacionado, contudo, não mais deverá ser adotado na prática, tendo em vista os modificados arts. 60 e 61, Lei n.º 9099/95, ao menos nos casos de conexão entre infração da competência dos Juizados e crime comum (via de regra, hipótese de concurso material – art. 69, CP), sendo que o autor da infração de menor potencial ofensivo merecerá, ausente as limitações do art 76, LJE, perceber os benefícios da transação penal e composição dos danos cíveis, verifica-se o quantum de pena isoladamente, nos termos do que há disposto no art. 119, CP.

Outro não é, certamente, o espírito da lei dos Juizados Especiais. Desde quando começou a vigorar em 1995, é de se observar que o regramento especial sobre processo de infrações de menor potencial ofensivo almejava tomar para si a conciliação e o julgamento das causas que lhes fossem correlatas, em detrimento de aplicar-lhes a legislação comum. Exatamente para lhes aplicar medidas despenalizadoras é que a Lei n.º 9099/95 definiu seus benefícios, seu procedimento e quais as infrações penais estariam abrangidas por suas regras. A soma das penas, no concurso material, bem como a majoração da pena mais elevada, no caso de concurso formal e crime continuado, desvirtuaram a incidência da legislação dos juizados, ofendendo, diga-se, frontalmente sua natureza, algo que, agora, com a Lei n.º 11.313/06, cessa-se, voltando olhos para o verdadeiro campo de incidência da norma.

Questão final e interessante, revela-se na possibilidade ou não de se aplicar, retroativamente os institutos despenalizadores da Lei dos juizados. Haja vista o questionário versar sobre transação penal, apenas sobre tal benefício discorreremos.

O problema essencial a ser resolvido reside na verificação da natureza jurídica dos institutos despenalizadores da Lei n.º 9099/95.  Em havendo caracterização material penal, há de se aplicar o que dispõe o art. 5.º, XL, CF/88 c/c art. 2.º, parágrafo único, CP, devendo-se promover a aplicação retroativa dos referidos institutos, vez que caracterizam novatio legis in mellius, inovação penal menos gravosa aos autores de infrações de menor potencial ofensivo. Por outro lado, em caracterizando-se como instituto de processo penal, não existiria a possibilidade de aplicar-se a retroação. Novatio Legis processual rege-se pela regra de tempus regit actum, art. 2.º, CPP.

Partindo de um conceito de direito penal material, afirma o douto Magalhães Noronha: Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica. (Noronha, E. Magalhães: Direito Penal. Vol. 1. 8.ed. São Paulo – Saraiva – 1972. p. 4). Jus Puniendi, por sua vez, significa direito de o Estado punir aquele que pratica fato definido como crime e imbuído de antijuridicidade. Retrata o direito penal em seu aspecto subjetivo. Como modo de disciplinar a atuação do Estado no exercício do jus puniendi in concreto, como forma de legitimar sua ação e socorrer ao acusado, regras de natureza instrumental são erigidas, as quais compõem o direito processual penal. Como nos lembra Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal 1. São Paulo – Saraiva – 1999. p. 29), citando Câmara Leal, o processo penal divide-se em: a) Organização Judiciária Penal e b) Processo Penal, a sistematização dos órgãos de jurisdição e respectivos auxiliares, bem como da persecução penal. Para o referido autor, ainda, a diversidade jurídica entre as normas de direito material e de direito processual encontra significativa inspiração nos princípios constitucionais da legalidade penal, dignidade da pessoa e liberdade, os quais impõem limitações da atuação do Estado na esfera penal, em caráter material (nullum crimem nulla poena sine lege), e acerca dos meios pelos quais irá aplicar a sanção ao caso concreto (nulla poena sine judice nulla poena sine judicio) (Tourinho Filho: op. cit. 15). Não se observando a carga principiológica acima indicada, não haverá crime, pena ou sanção concreta a ser aplicada a qualquer indivíduo, vez que o Estado não terá a necessária legitimidade para contra ele agir.

À parte da relevância axiológica de ambos os ramos do Direito, as normas de caráter material penal, por tutelarem as feições do direito de punir do Estado, diretamente relacionadas com a dignidade da pessoa humana e com a liberdade individual, possuem, por expressa disposição constitucional, o excepcional efeito retroativo, naturalmente, quando de algum modo beneficiar a situação do réu. As normas processuais, como visto, embora de crucial relevância para o Direito pátrio, regula-se pela regra de tempus regit actum, aproveitando-se os atos realizados durante a vigência da lei revogada e aplicando-se, desde logo, o novo diploma legal.

O jus puniendi, regulado pelo direito penal material, sofre diversas limitações, como forma de salvaguardar direito individuais e, por conseguinte, prestigiar a paz social. Não obstante, sua existência é primordial para a estabilidade das relações sociais. Como um dos meios de limitá-lo, observamos as causas extintivas da punibilidade (art. 107/120, CP).

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Por regular alguns dos atributos do jus puniendi, temos que a transação penal, prevista no art. 76, LJE, revela proeminente caráter penal material. Contudo, não há se afastar determinados elementos processuais em sua natureza, como, ademais, indicam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, quando afirmam que o reconhecimento da natureza híbrida das quatro medidas despenalizadoras acima enfocadas é extraordinariamente relevante para a boa aplicação da lex nova. Três delas são de natureza processual e penal ao mesmo tempo. (...) São institutos que, em primeiro lugar, produzem efeitos imediatos dentro da fase preliminar ou do processo (nisso reside o aspecto processual). De outro lado, todos contam com reflexos diretos na pretensão punitiva estatal (aqui está a face penal). (Juizados Especiais Criminais. 5.ed. São Paulo – RT – 2005. p. 51). E, para além da caracterização da natureza material penal, os autores ainda discorrem sobre os efeitos da transação homologada pelo magistrado: Feita a transação em torno da aplicação imediata de pena alternativa (art. 76), resulta afastada a pretensão punitiva estatal original (pena de prisão ou multa integral). (op. cit. p. 51). Logo, a medida ora estudada revela caráter híbrido entre o direito penal e o direito processual pena, sendo, pelos motivos acima indicados, que aquele prevalecerá sobre este.

Reconhecida a predominância do caráter material penal, é de se considerar, portanto, possível a aplicação retroativa da norma penal favorável ao réu.

Com a publicação do novel diploma, a Lei n.º 11.313/06, ressurge o interesse sobre o estudo da aplicação retroativa dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados, tendo em vista que aquela inova no ordenamento jurídico brasileiro, preenchendo antigas lacunas e estabelecendo-se contrariamente a posicionamento do STF e do STJ, para os quais deveriam as penas ser somadas para se apurar da possibilidade ou não da aplicação dos referidos benefícios.

Seguindo o entendimento dos autores acima indicados, a aplicação da Lei n.º 11.313/06, quanto ao dever de verificar as penas isoladamente e aplicar-se os institutos da transação penal e composição dos danos civis, deverá alcançar os processos em curso, que conheceram termo a quo anterior à entrada em vigor da Lei e para fatos ocorridos antes de sua vigência.

Por seu caráter híbrido, a transação penal deve ser aplicada a processos em curso, ou seja, ainda não definitivamente julgados. O trânsito em julgado da decisão penal é um limite lógico à adoção de medida retroativa (op. cit. p. 53).


Conclusões

  1. A Lei n.º 11.313/06, que modificou os arts. 60 e 61, Lei n.º 9099/95 e art. 2.º, Lei n.º 10259/01, indica que, em havendo conexão entre infração de menor potencial ofensivo e delito que deva ser processado em juízo comum, será este o foro de atração (art. 78, CPP);
  2. Não deverão as penas máximas dos delitos ser somadas. Deverão, sim, ser isoladamente consideradas, como forma de aplicar-se os institutos despenalizadores da Lei de Juizados, conforme sua mens legis;
  3. Vivo era o debate, em tempo anterior ao da publicação da Lei n.º 11.313/06, sendo que era possível definir posição de doutrina significativa no sentido de verificar-se isoladamente as penas das infrações penais em concurso para apurar-se a possibilidade de aplicação dos institutos despenalizadores pátrios;
  4. De outro lado, contudo, a não menos respeitável posição esposada pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, segundo os quais as penas deveriam ser verificadas de acordo com a sua soma. Desta corrente, inclusive, desenvolveu-se o entendimento sumulado STJ, 243;
  5. Com a edição da Lei n.º 11.313/06, não obstante, não mais se sustenta, ao menos no caso de crimes conexos, sendo possível, por analogia, estender-se a inovação aos casos de continência. Do mesmo modo, interpretação extensiva para permitir-se a aplicação do instituto da suspensão condicional do processo em face da inovação legislativa;
  6. Com a publicação do referido diploma, ressurge o interesse sobre o estudo da aplicação retroativa dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados, tendo em vista que aquela inova no ordenamento jurídico brasileiro, preenchendo antigas lacunas e estabelecendo-se contrariamente a posicionamento do STF e do STJ, para os quais deveriam as penas ser somadas para se apurar da possibilidade ou não da aplicação dos referidos benefícios;
  7. Reconhecida a predominância do caráter material penal, é de se considerar, portanto, possível a aplicação retroativa da norma penal favorável ao réu.

    Bibliografia

GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antônio Magalhães, FERNANDES, Antônio Scarance e GOMES, Luiz Flávio Juizados Especiais Criminais. 5.ed. São Paulo – RT – 2005;

NORONHA, E. Magalhães: Direito Penal. Vol. 1. 8.ed. São Paulo – Saraiva – 1972;

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa (Processo Penal 1. São Paulo – Saraiva – 1999.

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Sobre o autor
Ricardo Cesar Franco

Defensor Público do Estado de São Paulo, nível IV, que atua perante o E. Tribunal de Justiça Militar de São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Coletivo. Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Professor de Filosofia do Direito Penal e de Direito Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Ricardo Cesar. Juizados especiais: o tema da competência pós Lei n. 11.313/06. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3925, 31 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27161. Acesso em: 19 mar. 2024.

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