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A Constituição de 1988: admirável Brasil novo

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Para os neoliberais, quaisquer regras estatais impedem a plena realização da economia: o salário-mínimo, por exemplo, é a causa do desemprego, pois impede a contratação da mão-de-obra menos qualificada e distorce o contrato entre patrão e empregado.

1. O neoconstitucionalismo num mundo esfacelado

O século XXI e o “terceiro milênio” já se iniciam conturbadamente. Inaugurada com um mega-ataque terrorista ao centro econômico mundial, nessa época estouram guerras, revoltas, chacinas em massa, crises econômicas e políticas por todo o planeta. A ideologia neoliberal, que viria para se sobrepor ao Welfare State, sofreu forte bombardeio com a crise econômica mundial de 2008, na qual o mundo ainda se encontra[1]. Os interesses econômicos destruíram miríades de países sob o disfarce de ajuda humanitária e ataques “preventivos”.

O mundo encontra-se esfacelado. Sem um paradigma certo a seguir desde o pós-Guerra. Portanto, pergunta-se: o que o constitucionalismo – doutrina jurídico-política que chega vencedora ao começo do milênio – tem a oferecer nesse caos? O neoconstitucionalismo, com sua fraternidade e solidariedade, pode ser o começo de um novo paradigma, mais humano, para a comunidade internacional ou seria apenas topos? A essas perguntas, tentar-se-á oferecer respostas – se é que elas existem.


2. Admirável Mundo Novo

A foto de Clóvis Ferreira é estonteante: vários moradores de Lagoa do Barro, no Piauí, em 1993, com os olhos voltados para uma caixa donde vinham imagens. No centro da foto, um senhor parece embasbacado contemplando as cenas que se desenrolavam. É 1993, e essas pessoas assistem à televisão pela primeira vez. Pouco antes, em 1982, o Folha de São Paulo publica uma foto estapafúrdia: debaixo de uma árvore, duas indigentes, sentadas num velho sofá, olham para um televisor que não funciona em cima de uma mesa. Uma esperança equilibrista?[2]

Esse é o reflexo deste admirável mundo novo. And all that jazz. O show não pode parar. Não chegamos ainda na sociedade imaginada por Aldous Huxley – indivíduos despersonalizados e excessiva e insuportavelmente perfeitos, onde não há espaço para dúvidas e contestações –, porém estamos cada vez mais próximos. Também estamos próximos da sociedade de Ray Bradbury, hedonista e inculta. Stanley Kubrick, em seu filme 2001: uma odisseia no espaço fala sobre a opressão que a tecnologia pode fazer sobre o homem. A literatura e o cinema cristalizaram seu ceticismo sobre o mundo pós-moderno. Um mundo onde tudo está em câmbio, onde algumas estruturas estão em suposta construção e outras em  deterioração, inclusive o Direito e os ordenamentos jurídicos.

2.1. Sociedade, política e economia na Pós-Modernidade

 Há um tom profético nas divagações dos diretores e escritores. De certo modo, o futuro sombrio aludido por eles impregnou-se no nosso cotidiano, principalmente no pós-Guerra; parece que o avançar da civilização escapou do controle dos homens. A sociedade, a política e a economia cambiaram de modo estonteante no descortinar da pós-modernidade – tudo fora do controle da ética e do controle da sociedade; tudo movido principalmente pelos interesses egoístas das grandes corporações e Elites. A dignidade humana (falaremos sobre ela mais na frente) foi escamoteada e negligenciada em lugar da “dignidade” econômica.

Na sociedade, a alienação está presente na rotina agitada e massacrante dos trabalhadores de diferentes setores; a homogeneização da crítica e a superficialidade são intensamente divulgadas pelas emissoras de televisão; os padrões estéticos impõem uma busca frenética pelo ideal propagado de beleza e perfeição, calcado em exercícios físicos pesados e regimes alimentares sandeus, insuportáveis e inalcançáveis pela maioria das pessoas. Quem não entra na louca roda da ditadura do belo e do fútil é discriminado, tratado desigualmente. Por isso, talvez aquelas indigentes vendo um televisor quebrado no meio de uma praça tenham apenas uma esperança de haver um equilíbrio nessa cruel sociedade[3].

Porém, o cume da concretização das profecias realiza-se no último quartel do século passado – a pós-modernidade estava em plena ascensão –, com o advento dos campos da informática e da biotecnologia. As informações digitais e genéticas, em vez de servirem prioritariamente aos interesses da sociedade e para aumentar o bem-estar dos homens, foram utilizadas como mercadoria; entraram na economia mundial como matéria-prima geradora de fortunas; o que é de todo mundo gera riqueza para poucos. 

No campo da informática, a rede mundial de computadores, ou internet, tornou-se a protagonista da globalização. Lideradas pelos Estados Unidos, as grandes empresas de computadores traçam a arquitetura da rende e detém, por meio de patentes, o monopólio dos melhores meios de acesso, criando dependências entre os países. Na internet circulam miríades de dados sobre os indivíduos de todos os mundos, e esses bancos de dados custam milhões. Os dados pessoais estão sendo comercializados pelas empresas. A privacidade é violada em nome dos interesses econômicos de “elites tecnológicas”. Além de as peripécias informáticas e a intensa dependência tecnológica da humanidade podem criar um cenário análogo ao imaginado pelos irmãos Wachowski: uma Matrix.

Além de informações digitais, informações genéticas podem ser comercializadas. A biotecnologia desenvolveu-se a partir da década de 1980 e, de lá a cá, atingiu níveis assustadores. Os cientistas já clonaram dezenas de espécies de animais, sendo a mais conhecida a ovelha Dolly, além das técnicas de inseminação artificial. O avançar da biotecnologia assustou ainda mais a humanidade: em 2010, o cientista Craig Venter anuncia ao mundo a feitura da primeira célula com DNA artificial[4]. Em 2013, um grupo de cientistas americanos divulgaram a clonagem de embriões humanos[5]. Conseguimos fazer vidas artificiais e clonar humanos, mas essas descobertas, em vez de beneficiar a humanidade, estarão subordinadas aos interesses das grandes corporações. A sacralidade abandonou a vida; está prestes a tornar-se mera mercadoria.

Aliado a esse cenário social horripilante, emerge um meio político-social controverso. Na verdade, o século XX conviveu com quatro tipos de sistemas econômicos: o Liberalismo decadente,  o Welfare State, o Neoliberalismo e, em alguns países, o Comunismo. O neoliberalismo surge no pós-guerra, junto com a incipiente decadência do comunismo e como substituto do Estado Social. Na verdade, o Estado do bem-estar surge após a crise do liberalismo de 1929 para contrapor-se ao comunismo – era o capitalismo respondendo ao Estado socialista[6] conservando seu plano econômico. Porém, com o começo da descredibilização do comunismo, as grandes corporações orquestraram grandes pressões a fim de que o Estado reduzisse a carga tributária e, portanto, sua assistência aos cidadãos.

Devido às pressões sobre os países, a tributação sobre os lucros das grandes empresas caiu 18% de 1989 a 1993. A assistência social começou a ser minguada na Inglaterra e EUA, pioneiros, entre os países ricos, na aplicação dos princípios neoliberais. Margareth Tatcher, premiê britânica, tornou-se ícone do neoliberalismo, junto ao presidente americano Ronald Reagan, ao abalar os poderes dos sindicatos e implantar o menu neoliberal no Reino Unido. Para ela, “não há sociedade, senão indivíduos”[7]. No Brasil, a aplicação da doutrina teve seu início com o governo Collor e sua abertura econômica e seu cume no governo de Fernando Henrique Cardoso e as intensas privatizações de empresas públicas que estavam no vermelho ou com pouco lucro.

A cartilha neoliberal tem como ponto precípuo o livre mercado e a repulsa por qualquer tipo de regulamentação. Para os neoliberais, quaisquer regras estatais impedem a plena realização da economia: o salário-mínimo, por exemplo, é a causa do desemprego, pois impede a contratação da mão-de-obra menos qualificada e distorce o contrato entre patrão e empregado. Portanto, o Estado deveria retirar-se totalmente da economia – privatizando suas empresas –, que deveria ser aberta e desregulada[8]. O neoliberalismo arrepia quem crê no Estado Social pois ele defende a total abstenção do (antigo) Leviatã em garantir os direitos sociais.

Numa sociedade onde tudo é incerto, duvidoso e horripilante, como estará o Direito?

2.2. Admirável Direito novo?

Em 1992, o professor de políticas públicas Francis Fukuyama, afirmou que as mudanças metaforizadas na queda do Muro de Berlin seriam alusões ao “fim da história”. À semelhança de Hegel, que acreditando na escatologia histórica, disse que o fim da história seria o advento de um Estado liberal, Fukuyama escreveu ser a democracia liberal capitalista o último estágio da história, por ser vencedor da disputa ideológica com o socialismo real, e seria seguido por todas as nações do planeta; desse modo, as disputas dariam lugar às negociações no plano internacional[9].

Seja ou não o fim da história, Fukuyama acerta ao dizer que a democracia liberal constitucional capitalista ocidental venceu no plano ideológico o socialismo real. A grande alcunha de Estado constitucional democrático liberal é o cume jurídico de um processo que se iniciou na Antiguidade. Todavia, democracia e constitucionalismo não se encaixam perfeitamente, como muitos pensam. Enquanto o primeiro conceito diz respeito ao calcamento do governo na soberania popular, ao respeito à vontade da maioria. O constitucionalismo é a limitação dos poderes e a garantia do respeito aos direitos individuais do cidadão[10]. Surgida na assinatura da Carta Magna por João Sem-Terra em 1215 e enaltecida pela Revolução Francesa, é o modo de ordenar o direito que chega vencedor ao milênio.

O direito nessas nações está sob intensa pressão. Como dito, a cartilha neoliberal espalha-se pelo mundo como modelo de produção que impede gasto demasiado do Estado com o social e exige grandes desregulamentações, tanto na economia quanto nos ditos direitos sociais. A Constituição, em vez de ter conteúdo material denso e orientador para os demais ramos do ordenamento jurídico nativo, deveria ser instrumental, somente orientando o funcionamento do Estado e de seu processo.

Ao Leviatã caberia somente a garantia das liberdades individuais e a manutenção da ordem[11], sendo que sua constituição seria procedimentalista, somente regrando os processos administrativos. Os demais direitos sociais deixariam de sê-lo e deveriam ser entregues à iniciativa privada. A saúde, educação e previdência deixariam de ser direitos. A mão invisível do mercado cuidaria deles.

Outrossim, o direito pós-moderno, à semelhança do moderno, é dogmaticamente organizado. Porém, os graus de autorreferência e monopólio estatal são questionados por certas correntes jurídicas. O direito pode ser novo, mas ainda leva consigo alcunhas e caracteres do passado.


3. Anatomia e fisiologia do Direito: a dogmática jurídica – e sua crítica

 A Era Moderna delegou ao direito a dogmaticidade. Aplicado ao fenômeno jurídico, quer dizer aquilo que é um saber calcado em dogmas, que são pressupostos inegáveis. O dogma prefixado da dogmática jurídica é a norma jurídica, a qual não se deve negar nem questionar, a não ser através de métodos aludidos na própria norma (como a inconstitucionalidade de uma lei)[12]. Há características que tanto possibilitam a aplicação da dogmática no direito de certa sociedade quanto e aquelas que são inerentes à própria dogmática[13].

3.1. A dogmática jurídica: pressuposto e caracteres

Os pressupostos sociais para a modernização do direito são dois: o monopólio estatal na aplicação da força e a separação do direito das demais ordens normativas, ou autopoiese. O primeiro significa que somente ao Estado cabe a produção do direito. Na modernidade somente o Leviatã  pode comandar a sociedade. Pela ideia hobbesiana, somente ao soberano – que se confundia com o Estado –, ao ser levado ao cargo pelo contrato social, é delegada a função de legislar sobre a vida social. Ao ceder parcela de sua liberdade ao soberano, a sociedade forma o Estado, o qual deverá garantir a paz e a justiça, usando, para isso, o direito[14].  (Porém, talvez o de Jonh Locke se aproxime mais dos ares democráticos que o mundo político contemporâneo adotou: para ele,  o poder dado ao Estado não é absoluto nem a uma pessoa só, mas a uma instituição dividida em três poderes, onde o Parlamento seria mais importante. O Estado, porém, ainda detém o monopólio da lei.) O ponto da alopoiese será abordado mais a frente.

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Dos muitos caracteres, dois se destacam no direito dogmático moderno: a inegabilidade dos pontos de partida e a impossibilidade do non liquet, ou obrigatoriedade de decisão. Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, o primeiro princípio é a explicação por excelência do direito dogmático; é seu espírito. Como dito, dogmático vem de dogma, no sentido de opinião estabelecida que é inquestionável – nesse caso, o dogma é decisão do legislador. Ou seja: a investigação e solução dos casos devem partir das normas já postas, não podendo questioná-las ou negá-las por meios extrajurídicos[15].

A outra característica é a proibição do non liquet. A expressão “non liquet” vem do latim e quer dizer “não claro”; ela legitimava o arbítrio do juiz em abdicar-se da resolução do caso. O direito dogmático, porém, não dá essa possibilidade ao juiz; o magistrado deve decidir quaisquer lides que se apresentem. Por essa razão João Maurício Adeodato afirma – com certa jocosidade – que o juiz sofre do “complexo de Atlas”, o titã que carrega nas costas a abóbada celeste[16]: há contendas judiciais em que é quase impossível uma solução plausível, mas ela deve ser equacionada.

Esses são os caracteres e pressupostos do direito. Porém, não abordamos um: a alopoiese. Na modernidade jurídica, o direito é relativamente independente das demais ordens normativas. Enquanto nas eras passadas havia diferenciação entre o direito, a moral e a religião, na atual o direito deve distanciar-se ao máximo dessas ordenações, que fazem parte da base de vários subsistemas sociais. O direito deve estar acima deles e abarcá-los. Quanto mais imune às interferências desses subsistemas, mais complexo será o direito[17].

O Direito, portanto, é fechado, apartado de outros sistemas normativos, monopólio do Estado, feito numa linguagem científica e artificial, e seria a ferramenta pela qual o Estado garantiria a ordem, a segurança e a justiça. Será mesmo? É justamente nesse ponto em que se concentram as considerações dos críticos da dogmática jurídica.

3.2. Crítica da dogmática jurídica: ideologia e dominação

Sob a denominação de teorias críticas do direito, abrigam-se várias correntes que questionam os pressupostos da dogmática jurídica, como a objetividade, a cientificidade, a neutralidade e a completude. Atacando essas premissas, os críticos buscam revelar o real caráter do direito, sua atuação na sociedade e a quem ele serve.

Um dos principais pontos do direito é a questão de sua linguagem. Calcados no positivismo filosófico, recém-inaugurado por Comte, os juristas passaram a crer que as linguagens do direito e da lei eram formais. Crê-se que as normas jurídicas constituem um sistema fechado – ou seja, toda e qualquer ação encontra-se deonticamente determinada – e completo, não necessitando de ajuda alienígena, de outros (sub)sistemas sociais. Essa defesa do caráter fechado do sistema, principalmente das normas penais, é obrigada até mesmo pelo sistema, que se enclausura e determina as fontes quando a linguagem da lei for insuficiente[18].

Contudo, essa pretensão de completude e hermetismo são representações ideológicas apresentadas com cunho lógico. Apesar de ser vista pelos seus produtores como uma linguagem técnica e forma – a semelhança da matemática –, a linguagem da lei é, na verdade, uma variedade da linguagem natural, a qual opera com grande importância sócio-política e prescreve comportamentos. A linguagem matemática trabalha com elucidações e têm bem definidos termos essenciais para sua aplicação. A linguagem jurídica, porém, não – exemplo é o código civil: o que seria “boa-fé”? Não há um conceito claro do que isso seja, estando à mercê do operador do direito[19].

Na verdade, a ideia de um sistema hermeticamente fechado e uma linguagem formal é um componente de uma das funções da dogmática jurídica: a difusão de uma ideologia. Obviamente, o ordenamento jurídico em dada sociedade estabelece o certo e o errado, e esse certo ou errado não são absolutos: enquanto para uns é certo invadir terras improdutivas, a outros é o cúmulo do absurdo . Porém, domina no direito a ideologia do grupo comandante da política. Para estabelecer o certo e o errado ao seu critério, é mister separar o direito da moral e da religião: axiologicamente, o que conta é a ideologia do grupo vencedor da luta política[20].  A crença na linguagem formal da lei é ideológica, pois cumpre a função de suporte ao funcionamento da lei nas sociedades capitalistas liberais. Ou seja: a dogmática não é objetiva, tampouco neutra: é mero instrumento para a aplicação das ideias das classes dominantes.

O problema das teorias críticas reside no fato que, uma vez descobertas essas incongruências no Direito, ele deixa de ser palco para ativismos que buscam câmbios sociais. Uma vez “descoberta” a incapacidade de o juiz ser um autônomo, mero aplicador da lei, não se aproveitou a força hermenêutica sobre as normas em vigor. Por isso, o Direito tornou-se um feudo do pensamento conservador e até reacionário, até que os críticos pudessem usá-lo ao favor do progresso social. A grande foi a descoberta da anatomia – como é estruturado – e fisiologia – como funciona – do Direito.


4. A marcha para o constitucionalismo

Antes de chegar vencedor ao milênio, o constitucionalismo teve grande marcha desde a Antiguidade. Na verdade, crendo que o constitucionalismo seja a ideia de ceder o centro do ordenamento jurídico a uma constituição, a saga dele coincide com a saga do direito, com suas origens, sua legitimidade e seu modos operandi. É necessário, para tanto, verificar as origens e decadência do jusnaturalismo e do juspositivismo para, enfim, explicar o constitucionalismo hodierno. 

4.1. Jusnaturalismo: da indiferenciação à positivação[21]

Grosso modo, a crença jusnaturalista resume-se na seguinte: existe um direito justo, o qual está acima e atrás do direito em vigor, o positivo. Esse direito existe independentemente da vontade do legislador, e é o melhor a ser aplicado à humanidade. Nesse ponto, todos os jusnaturalistas concordam. O problema reside em que está calcado esse direito superior, natural; quem o legitima. Acerca desse tema é que discorrem as diferentes correntes e a evolução histórica do direito natural.

Começou-se a estudar a fundo essa história de direito superior com a fase irracionalista, na qual o direito natural seria os direitos divinos, irreconhecíveis aos homens (“Por que os meus pensamentos não são os teus pensamentos.” – Isaías 55:8-9). Na fase posterior, teológica, já se aceita a ideia que alguns desígnios divinos podem ser repassados aos homens por meio da Igreja, à qual caberia interpretá-los e positivá-los. Em ambos os casos a legitimidade do direito justo estaria atrelada a Deus.

Isso começa a mudar na modernidade, quando Hugo Grotius afirma a independência do direito natural com o direito divino. Ele e seus discípulos fundaram a fase antropológica do jusnaturalismo. Nela, não se nega a origem divina do direito natural, mas afirma-se que o próprio Deus é a ele submetido e veicula-o ao coração do homem sem a necessidade de porta-vozes oficiais. A legitimação desse direito estaria na razão humana, a qual é a fonte de todo direito. Com mais avançar do tempo, Kant funda a ideia do jusnaturalismo democrático, o qual estaria calcado não mais na razão, tampouco em Deus, mas na vontade da maioria. Esse conceito é essencial para entender a ideia kantiana. O que a maioria deseja, esse sim é direito natural.

Depois, desenvolve-se a ideia de um jusnaturalismo com conteúdo variado, o qual nega a unicidade do direito natural e afirma que ele é o produto da vontade geral de certa comunidade. Como seja, nessas duas últimas fases a legitimidade do direito natural volta-se para o homem. O jusnaturalismo democrático e o de conteúdo variável foram absorvidos pelas revoluções liberais do fim do século XVIII. Tanto a Revolução Americana quanto a Francesa estão impregnadas de pensamentos sobre direitos naturais. Adotando o pensamento de Jonh Locke, que os direitos naturais seriam a vida, a liberdade e os bens[22], os novos ordenamentos jurídicos francês e americano – calcados na novidade do constitucionalismo – positivaram-no.

Aí reside o começo do enfraquecimento: o direito natural se positiva. Quando as constituições passaram a reconhecer os direitos fundamentos, o direito natural começou a perder força[23]. Outro sintoma foi o advento do jusnaturalismo democrático. É o primeiro a esvaziar-se de conteúdo ético, sendo que o direito natural seria o que a maioria decidir o que fosse. A vontade da maioria é auferível e manuseável – ela decide o que é legítimo[24]. Abre-se espaço para o advento do positivismo jurídico, onde direito é aquilo que é posto, sem considerações éticas.   

4.2. Juspositivismo: tudo o que é posto deve ser obedecido?

No abrir de cortinas do século XIX, o Direito deixou-se seduzir por uma teoria filosófica francesa: o Positivismo. Essa corrente cria ser o conhecimento científico o cume do processo humano em que haveria três estágios: conhecimento teológico, metafísico e o científico. Segundo seu fundador, Augusto Comte, a ciência seria triunfante, a única religião da humanidade[25].

A crença positivista de que a linguagem técnica e formal e o método científico deveriam ser aplicados tanto nas ciências exatas quanto nas sociais chegou à ciência jurídica. Buscou-se a objetividade científica do Direito e sua pureza metódica, separando-a de todos os questionamentos de seus dogmas já instituídos. A ciência jurídica começa a tomar os contornos legalistas: a norma aproxima-se do Direito e da lei; o juiz e demais operadores do direito não o criam, apenas o reconhecem; cada e todo caso deve ser submetido a uma norma legal e o ordenamento jurídico seria hermeticamente fechado e autorreferente[26]. Tempos depois, Hans Kelsen apresenta sua Teoria da Moldura, na qual, em vez de aquiescer à solução única, afirma que cabe ao juiz escolher uma dentre as várias possíveis e corretas[27].

Outra característica é o reducionismo do conceito de direito. Para os positivistas direito seria aquilo que o poder político implantasse; o direito, na verdade, é reduzido a seus meios, é “instrumentalizado”. Seus próprios meios, inclusive, são reduzidos[28]. Assim, diz-se que o direito é “conjunto de normas jurídicas em vigor”. O Direito resume-se a seus meios, os quais são reduzidos a normas. Nesse ponto é que o Positivismo Jurídico mostrou-se perigoso, e acabou por decair com a ascensão do fascismo. Mussolini e Hitler chegaram ao poder dentro da legalidade[29], com poucos desvios, e uma vez lá, instauraram um direito que deveria ser obedecido por todos, pois realmente era direito: oriundo de um grupo político vencedor e seguindo certo rito de feitura.

O fato de legitimar o fascismo foi o “tiro no pé” do positivismo. Não que tenha sido calculado o apoio a ditaduras totalitárias e sangrentas, mas o seu uso a desmoralizou. O positivismo entrou em decadência. Nenhuma das duas posições, na verdade, acabou – ainda há adeptos do jusnaturalismo e juspositivismo, com predominância desse último. Porém, o paradigma do direito – assim como o da razão humana – foi abalado a partir da segunda metade do século XX. Como falado lá atrás, a história do constitucionalismo coincide com a do direito, por ser um dos núcleos possíveis para o fenômeno jurídico. Portanto, o paradigma constitucional adentrou na Pós-Modernidade com fortes abalos.

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Sobre o autor
Higor Alexandre Alves de Araújo

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Higor Alexandre Alves. A Constituição de 1988: admirável Brasil novo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3923, 29 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27221. Acesso em: 16 abr. 2024.

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