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A efetividade da jurisdição arbitral

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08/04/2014 às 11:30
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A decolagem plena da arbitragem depende do rompimento da cultura do litígio existente na sociedade brasileira. A jurisdição arbitral se afigura como uma alternativa válida, adequada e, sobretudo, efetiva face ao sistema judiciário formal.

Resumo: O presente trabalho científico foi realizado com o objetivo de apresentar a efetividade da jurisdição arbitral. Para tanto, analisou-se, especialmente, o viés histórico-evolutivo da arbitragem, seu novo amoldamento frente à terceira onda renovatória de acesso à Justiça e sua importância diante da atual crise de efetividade do Poder Judiciário. Nessa seara, foram elencadas as vantagens da arbitragem, as quais certificaram sua efetividade como alternativa à jurisdição estatal para resolução de controvérsias inerentes a direitos patrimoniais disponíveis. Traçou-se, ainda, a constitucionalidade e jurisdicionalidade do instituto, além da detecção do aumento gradual de sua utilização no país. No mais, discorreu-se que a decolagem plena da arbitragem depende do rompimento da cultura do litígio existente na sociedade brasileira, constituindo tal superação dever dos operadores do Direito. Ao final, concluiu-se que a jurisdição arbitral realmente se afigura como uma alternativa válida, adequada e, sobretudo, efetiva face ao sistema judiciário formal.

Palavras-chave: Arbitragem, jurisdição, efetividade, acesso à Justiça, crise do Poder Judiciário.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. ARBITRAGEM. 1.1. Precedentes históricos. 1.2. A arbitragem na legislação brasileira. 1.3. Conceito. 1.4. Natureza jurídica. 2. JURISDIÇÃO. 2.1. Evolução do conceito de jurisdição. 2.2. Ondas renovatórias de acesso à Justiça. 2.3. Redimensionamento do conceito de jurisdição e jurisdicionalidade da arbitragem. 2.4. Constitucionalidade da arbitragem. 3. A CRISE DE EFETIVIDADE DO PODER JUDICIÁRIO. 4. A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO ARBITRAL. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

O Estado moderno passa por uma crise de jurisdição. Não se trata de uma crise que questiona o poder, dever e atividade do Estado de aplicar o direito aos casos concretos, objetivando resolver os conflitos de interesses e garantir a paz social, mas versa sobre uma crise de efetividade na prestação jurisdicional.

Há muito, o formalismo processual tradicional não consegue compatibilizar uma resposta, a tempo e modo, aos anseios dos jurisdicionados. A evolução da sociedade – representada, em especial, pela globalização, tecnologia, velocidade da informação e alto grau de complexidade das relações jurídico-sociais – demanda uma renovação ou redimensionamento do conceito de acesso à Justiça e de jurisdição, sob pena de colapso no modelo vigente de entrega de pacificação social.

Nesse cenário, constatada a necessidade premente de disponibilização de meios alternativos de solução de conflitos aos jurisdicionados, foi promulgada, em 23 de setembro de 1996, a Lei nº 9.307, a qual aperfeiçoou o instituto da arbitragem no arcabouço jurídico nacional.

Assim, diante da importância de uma prestação jurisdicional efetiva, o presente estudo analisará a arbitragem e sua norma regulamentadora com vagar nos seguintes tópicos: (i) precedentes históricos da arbitragem, inclusive na legislação brasileira; (ii) natureza jurídica da arbitragem; (iii) evolução e redimensionamento do conceito de jurisdição; (iv) ondas renovatórias de acesso à Justiça; (v) jurisdicionalidade e constitucionalidade da arbitragem; (vi) crise de efetividade do Poder Judiciário; (vii) efetividade da jurisdição arbitral.

Especificamente, demonstrar-se-á que a jurisdição arbitral não usurpa a jurisdição estatal, desmistificando, assim, o dogma do monopólio do Estado na prestação jurisdicional – pedra angular da tese de inconstitucionalidade do instituto.

Imiscuir-se-á no debate sobre a identificação da natureza jurídica da arbitragem; tema complexo e conflituoso na doutrina. Serão apresentadas três proposições doutrinárias que se digladiam: a primeira, defendente da natureza contratual da arbitragem; a segunda, da natureza jurisdicional; a terceira, da natureza mista, híbrida ou sui generis (amálgama das duas correntes anteriores).

Tratar-se-á também das três ondas renovatórias de acesso à Justiça, enfocando, sobretudo, a terceira, visto que esta forma a base de pensamento da evolução e redimensionamento do conceito de jurisdição.

Com efeito, serão enumeradas as virtudes da arbitragem, as quais certificam sua efetividade, além do que se debaterá sobre a necessidade de superação da cultura do litígio judicial reinante no Brasil.

Noutro giro, examinar-se-á a crise de efetividade do Poder Judiciário como expressão da indispensabilidade de instalação dos meios alternativos de solução de controvérsias.

Destarte, somente após o estudo da problemática acima mencionada será possível delinear a jurisdição arbitral como uma alternativa – célere e eficaz – ao Poder Judiciário, no que toca à resolução de controvérsias inerentes a direitos patrimoniais disponíveis.

No mais, importante ressaltar que o estudo em tela se vale, essencialmente, do método analítico e dedutivo, tendo por campo de análise o Direito brasileiro em seu estágio atual. Dessa sorte, a partir da compilação de normas, doutrinas, trabalhos acadêmicos e artigos/webartigos inerentes ao tema, realizar-se-á uma confrontação entre as ideias esposadas e buscar-se-á um norte interpretativo para a jurisdição arbitral e seu substrato de efetividade, nos lindes da Lei nº 9.307/96.

Finalmente, pontua-se que o debate ora proposto foi escorado nos ensinamentos e ideias de renomados autores especializados no estudo dos meios alternativos de solução de litígios. Dentre esses notáveis, recorreu-se à orientação daqueles que dispensaram uma atenção especial ao instituto da arbitragem, especialmente: Carlos Alberto Carmona, Alexandre Freitas Câmara, José Carlos de Magalhães, Ricardo Ranzolin, Luiz Roberto Ayoub e Marco Aurélio Gumieri Valério.


1. ARBITRAGEM

1.1. Precedentes históricos

Inicialmente, salienta-se não haver consenso entre os estudiosos do Direito Processual a respeito da origem do instituto da arbitragem.

Em resumo, há duas posições mais destacadas. A primeira defende o nascimento do instituto na Grécia, enquanto a outra sustenta seu início em Roma.

Observa-se que ambas correntes apresentam citações e arquivos históricos que realmente remontam à instituição arbitral. Também não poderia ser diferente, pois o método de organização dessas civilizações foi precursor no desenvolvimento de diversas ferramentas modernas, em especial as de cunho jurídico. Nessa seara, de inteira aplicação os ensinamentos de Renan (2002, p. 58):

Para uma mente filosófica, isto é, para alguém que se concentra na origem das coisas, não há nada mais do que três histórias de real interesse no passado da humanidade: a história grega, a história de Israel e a história de Roma. Estas três histórias combinadas constituem o que se pode ser chamado de história da civilização, a civilização significando o resultado da colaboração alternada da Grécia, Judéia e Roma.

Na mitologia grega, existem várias passagens que fazem referência à eleição de cidadãos privados como terceiros pacificadores de contendas. Dentre essas passagens, emerge a Guerra de Tróia, a qual teria como gênese o processamento de uma arbitragem. Valério (2004, p. 33) bem resume esse acontecimento:

A Guerra de Tróia teria como substrato primordial o arbitramento realizado pelo pastor PÁRIS, filho de PRÍAMO e HÉCUBA, no Monte Ida. Coube a este pastor a escolha da deusa mais bela entre ATENA, HERA e AFRODITE, que disputavam, como prêmio, a maçã de ouro. O pleito foi decidido em favor de AFRODITE, que subornou o árbitro, prometendo a este, o amor da mulher que ele escolhesse. HELENA, a escolhida, fora raptada pelo próprio PÁRIS, dando início à jornada bélica vencida pelos atenienses.

Esse método de resolução de lides propagado no panteão grego acabou por reverberar na sociedade. O expediente arbitral grego era dividido em duas fases, sendo a primeira nada mais que uma tentativa de (re)conciliação e, persistindo o conflito, passava-se à etapa de arbitragem propriamente dita, que era certificada através de juramento. No mais, o resultado da demanda era gravado em placa de mármore ou de metal e colocada nos templos das respectivas cidades para conhecimento de todo o povo (NAZO, 1997, p. 25).

A penetração dos princípios da arbitragem na sociedade grega pode ser aferida na obra De legibus, onde Platão dizia que o mais sagrado dos tribunais é aquele que as partes mesmas hajam constituído e escolhido de comum entendimento.

Vale anotar que a Grécia também possuía um modelo estatal de solução de litígios. Assim, conviviam lado a lado a via estatal e a privada/arbitral de composição de contendas, até a dominação romana no século II a.C..

Noutro giro, alguns doutrinadores defendem que a arbitragem precursora do modelo contemporâneo de arbitragem desenvolveu-se em Roma e somente após o século III d.C., ou seja, a partir do período pós-clássico do Direito Romano.

Para a corrente retro, os gregos apenas produziram lampejos filosóficos sobre o sistema arbitral, até mesmo porque seria impossível nutrir um meio alternativo de resolução de lides num ordenamento jurídico que não possuía uma clara delimitação entre público e privado. Na sequência, afirmam que nem mesmo no período clássico do Direito Romano houve verdadeira arbitragem, porquanto o sistema processual vigente obrigava as partes a solucionar suas pretensões resistidas por meio de árbitros privados. Para melhor compreensão, apresenta-se:

A atuação de cidadãos privados através do ordo iudiciarum privatorum por vezes é referida como espécie de arbitragem. Entretanto, ali, o pretor apenas concretizava a litiscontestatio, encaminhando os litigantes ao iudex ou arbiter – cidadão privado romano listado no iudicium privatum, que conferia sua pronúncia (sentença) acerca do litígio. Por conseguinte, tal intervenção de julgador privado, de cunho necessário e obrigatório, não consistia ainda em uma alternativa ao processo normalmente estabelecido aos litigantes. Ao contrário, era a fórmula ordinária de solução de litígios prevista pelo Direito, própria do período da legis actiones e do processo formulário, até sua extinção no ano 294 d.C. […] (RANZOLIN, 2011, p. 20).

No Direito Romano Pós-clássico houve significativa alteração no modelo de pacificação social. Consolidou-se a cognitio extraordinaria: monopolização da função jurisdicional pelo Estado. Assim, a legislação suporte dessa mudança definiu o processo estatizado como meio ordinário de solução de lides. Contudo, em certas situações, o sistema facultou às partes a opção de resolver seus conflitos através da decisão de árbitros particulares por eles livremente contratados em detrimento do juízo estatal ordinário.

Ressalta-se que a via alternativa em exame aperfeiçoava-se através da conventio compromissi (similar à atual convenção de arbitragem) – o qual podia conter a denominada stipulatio poenae (espécie de cláusula penal em caso de descumprimento da conventio compromissi ou do dictum/decisão do árbitro) – e do receptum arbitri (aceitação da função de árbitro pelo particular). Cumpre registrar que a conventio compromissi e o dictum não tinham eficácia direta/vinculativa, porque seu cumprimento podia ser relegado pelas partes. Logo, a stipulatio poenae funcionava como um elemento coativo de adimplemento da contratação.

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Dessa forma, a conventio compromissi pode ser conceituada como precursora da arbitragem tal qual a conhecemos hoje. Isso não só pelos princípios de pacificação social que a amoldou, mas, sobretudo, por consistir numa alternativa privada à regra da jurisdição estatal. Sobre esse instituto do Direito Romano Pós-clássico, transcreve-se:

Aqui, sem dúvida, flagra-se o embrião da arbitragem de direito privado, em que esta não se confunde com o processo estatal de solução de controvérsia e se constitui como via alternativa a ele, por força de escolha das partes – similar à sua configuração atual (RANZOLIN, 2011, p. 21).

1.2. A arbitragem na legislação brasileira

A arbitragem fincou-se em solo brasileiro juntamente com a colonização portuguesa. Dessa maneira, inicialmente, na incipiente sociedade brasileira, vigoraram as regras de arbitragem previstas nas Ordenações Afonsinas. A partir do ano de 1521, estas deram lugar às Ordenações Manuelinas. Finalmente, no ano de 1603, as Ordenações Filipinas reformaram as Manuelinas, produzindo um novo código legal, o qual tratava expressamente da arbitragem no Livro III, Título 16: “Dos Juízes Árbitros”.

No status de nação soberana, a arbitragem surgiu no Brasil, pela primeira vez, na “Constituição do Império, de 22/03/1824, em seu art. 160, ao estabelecer que as partes podiam nomear juízes-árbitros para solucionar litígios cíveis e que suas decisões seriam executadas sem recurso, se as partes, no particular, assim, convencionassem” (DELGADO, 2000).

Salienta-se que a Lei nº 556, de 25 de junho de 1850 – que instituiu o Código Comercial – e o Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850 – considerado o primeiro código de processo brasileiro – continham regras prevendo tanto arbitragem facultativa quanto obrigatória. Ocorre que esse sistema duplo de arbitragem (facultativo e obrigatório) não prosperou. A Lei nº 1.350, de 14 de setembro de 1866, e o Decreto nº 3.900, de 26 de junho de 1867, revogaram, respectivamente, a arbitragem compulsória prevista no Código Comercial e no Regulamento nº 737.

Com efeito, a decisão de eliminar o juízo arbitral obrigatório foi correta, pois tal compulsoriedade chocava-se contra a principal característica do instituto, a saber, a autonomia da vontade (liberdade de contratar). Não obstante o acerto dessa decisão, “certo é que a supressão do juízo arbitral obrigatório provocou a decadência do instituto, que praticamente virou letra morta no direito brasileiro” (VALÉRIO, 2004, p. 51).

A Carta Republicana de 1891 repartiu a competência legislativa sobre o direito processual entre as unidades da federação. Consequentemente, diversos estados editaram códigos de processo, sendo que alguns desses códigos previam a arbitragem como meio alternativo de resolução de conflitos.

Diante do poder constituinte originário legitimador da elaboração da Constituição Federal de 1934, a competência legislativa em matéria processual e sobre arbitragem voltou a ser privativa da União, o que viabilizou a elaboração do Código de Processo Civil de 1939.

Em que pese as cartas políticas que sucederam à de 1934, a competência privativa retromencionada manteve-se inalterada. Vale pontuar que o Código de Processo Civil de 1939 foi revogado pelo Código de Processo Civil de 1973, o qual discorreu sobre o juízo arbitral nos artigos 1.072 a 1.102. Segundo Ayoub (2005, p. 24), o procedimento regulado por tais artigos mostrou-se ineficiente e inútil em razão da necessidade de submeter a decisão arbitral ao Poder Judiciário para conferir-lhe eficácia. Assim, na década de 1980, surgiram três anteprojetos de lei visando à modernização do epigrafado instituto. O primeiro foi publicado no Diário Oficial da União de 27 de junho de 1981, o segundo no de 27 de fevereiro de 1987 e o terceiro no de 14 de julho de 1988, todavia todos acabaram arquivados por motivos diversos. Somente em 23 de setembro de 1996, com a promulgação da Lei nº 9.307, é que a arbitragem ganhou novo corpo no ordenamento jurídico pátrio. Essa trajetória legislativa encontra bom resumo no magistério de Delgado (2000):

A história recente registra que a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, teve origem no Projeto de Lei do Senado de nº 78, de 1992. Antes, três projetos tinham sido apresentados e foram arquivados. A aprovação da lei resultou de um movimento iniciado pela denominada Operação Arbiter, comandada pelo Instituto Liberal de Pernambuco, tudo coordenado pelo Dr. Petrônio Muniz, advogado. O projeto em referência foi apresentado pelo então Senador Marco Maciel. Contribuíram para o aperfeiçoamento do texto da lei, valiosas sugestões, de juristas estudiosos do tema, incluindo-se os Doutores Carlos Alberto Carmona e Pedro Batista Martins, bem como a Doutora Selma Maria Ferreira Lemes. O autor do projeto, na exposição de motivos, esclareceu que a proposta legislativa apresentada levava em conta diretrizes da comunidade internacional, especialmente as fixadas pela ONU na Lei-Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional formulada pela UNCITRAL.

A Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), também conhecida como Lei Marco Maciel, possui sete capítulos e quarenta e quatro artigos. Sua base estrutural é a seguinte: Capítulo I – Disposições Gerais; Capítulo II – Da Convenção de Arbitragem e seus Efeitos; Capítulo III – Dos Árbitros; Capítulo IV – Do Procedimento Arbitral; Capítulo V – Da Sentença Arbitral; Capítulo VI – Do Reconhecimento e Execução das Sentenças Arbitrais Estrangeiras; Capítulo VII – Disposições Finais.

Sobre o assentamento da Lei de Arbitragem em nosso arcabouço jurídico, elucida Carmona (2007, p. 33):

[…] considerando a especificidade do instituto e o fato de que a lei contém normas que não podem ser consideradas apenas processuais, optou o legislador por estabelecer as regras acerca da arbitragem em diploma apartado do Código de Processo Civil, revogando todo o Capítulo XIV, Título I do Livro IV da Lei 5.869/73 e também o Capítulo X, Título II do Livro III do antigo Código Civil (Lei 3.071/16), na esteira, aliás, da tendência dos países que estão renovando sua legislação em matéria de arbitragem.

1.3. Conceito

Trata-se a arbitragem de um mecanismo privado de solução de litígios, que foi readaptado para ampliar o acesso dos jurisdicionados à ordem jurídica justa. A arbitragem contemporânea e outros instrumentos extrajudiciais de resolução de conflitos (v.g.: negociação e mediação) são conhecidos internacionalmente como Alternative Dispute Resolution (ADR). Essa expressão foi recebida pela doutrina e jurisprudência nacional com o significado de “meios alternativos de solução de controvérsias”. O conceito de ADR, cunhado pela comunidade internacional na década de 1960, arraigou-se e atualmente “é reconhecido em todos os países desenvolvidos, importando marcante revisão dos instrumentos jurídicos para a prestação de justiça” (RANZOLIN, 2011, p. 8).

Importante dizer que a arbitragem é um meio heterocompositivo de resolução de lides, enquanto a negociação e a mediação são técnicas autocompositivas. Isso significa que na arbitragem a contenda é solucionada por um terceiro imparcial alheio ao conflito; já na negociação e na mediação são as próprias partes, assistidas ou não por um facilitador, que resolvem a controvérsia.

No tocante ao conceito de arbitragem, seguem abaixo três visões produzidas por experts no assunto:

A arbitragem – meio alternativo de solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nela, sem intervenção estatal, sendo a decisão destinada a assumir a mesma eficácia da sentença judicial – é colocada à disposição de quem quer que seja, para solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais acerca dos quais os litigantes possam dispor (CARMONA, 2007, p. 51).

A arbitragem é o sistema especial de julgamento, com procedimento, técnica e princípios informativos próprios e com força executória reconhecida pelo direito comum, mas a este subtraído, mediante o qual duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou de direito público, em conflito de interesses, escolhem de comum acordo, contratualmente, uma terceira pessoa, o árbitro, a quem confiam o papel para resolver a pendência, anuindo os litigantes em aceitar a decisão proferida (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p.129).

A arbitragem é instância jurisdicional, praticada em função de regime contratualmente estabelecido para dirimir controvérsias entre pessoas de direito privado e/ou público, com procedimentos próprios e força executória perante tribunais estatais (STRENGER, 1987, p. 197).

A conceituação apresentada, a qual está em sintonia com a Lei nº 9.307/96, revela que somente pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Extrai-se também que o instituto está montado sobre um claro tripé, a saber: (i) equivalência de efeitos entre cláusula compromissória e compromisso arbitral (convenção de arbitragem); (ii) eficácia da sentença arbitral independentemente de homologação pelo Poder Judiciário; (iii) fim do critério da dupla homologação das sentenças arbitrais estrangeiras (CARMONA, 2011).

Desse modo, verifica-se que, salvo situações excepcionalíssimas, o Poder Judiciário não intervirá na arbitragem. Nas hipóteses de resistência, que demandarem o uso de força ou coerção para o cumprimento da convenção de arbitragem ou da sentença arbitral, o Judiciário poderá ser invocado para dar suporte ao juízo arbitral, determinando, por exemplo, a condução coercitiva de testemunhas, implementação de tutelas de urgência e execução de sentença arbitral. No mais, o Judiciário poderá ser acionado para realizar o controle de legalidade do processo arbitral.

Ante o exposto, conclui-se que a arbitragem consiste num verdadeiro processo – instrumento de jurisdição – onde as partes, via convenção, escolhem um terceiro de sua confiança (árbitro) e definem as regras de julgamento, sendo que esse juiz privado examinará a controvérsia de maneira independente e imparcial e, ao final da instrução, proferirá sentença vinculativa. Esse decisum, que é um título executivo (art. 475-N, inciso IV, do Código de Processo Civil), não se sujeita a recurso e independe de homologação judicial.

1.4. Natureza jurídica

De acordo com os subcapítulos anteriores, a arbitragem recebeu nova roupagem através da Lei nº 9.307/96. Esse diploma legal revalorou as bases do instituto, fazendo emergir três proposições doutrinárias acerca de sua natureza jurídica. Existem duas correntes antagônicas e uma mista ou híbrida, donde sobressaem acirradas discussões no meio acadêmico, sem, contudo, poder se afirmar que uma vertente se sobrepõe à outra.

A primeira teoria, de cunho privatista, dita que a arbitragem instala-se por meio de uma entabulação – convenção de arbitragem – entre particulares para solucionar um conflito. Logo, o instituto seria um negócio jurídico de natureza privada, onde a lei muniu-o de eficácia suficiente para o julgamento de causas que tenham como objeto direitos patrimoniais disponíveis. Nessa ordem, o decisum do(s) árbitro(s) consistiria no simples cumprimento de formalismo legal, o qual as partes optaram por se submeter ao escolher essa modalidade de negócio jurídico. Nessa esteira, Ranzolin (2011, p. 57) leciona que:

No caso da arbitragem, a lei teria formulado regras tipicamente acessórias e regulatórias dos negócios jurídicos, como haveria outras regulações minuciosas em outras modalidades de negócios jurídicos – no negócio jurídico de locação, por exemplo.

Os defensores da tese privatista ou contratualista também asseveram que – dentre os elementos clássicos da jurisdição: notio, vocatio, coertio, iudicium e executio – falta à arbitragem os elementos coertio e executio e, por isso, impossível atribuir-lhe jurisdição. Em suma, a jurisdição permanece monopólio do Estado (VALÉRIO, 2004).

Grau (2002) e Zavascki (2000) já perfilharam posicionamento aderente à posição contratualista da arbitragem.

Lado outro, a corrente publicista propaga a natureza jurisdicional da arbitragem. Esclarece Câmara (2009, p. 10) que a arbitragem realmente se inicia por ato de direito privado (convenção de arbitragem), porém esse ato não pode ser confundido com a arbitragem em si. E continua o doutrinador, “é a natureza desta, e não daquele, que se busca, e tal natureza é, a meu juízo, a de função pública”.

Os publicistas aduzem que os princípios que informam a Lei nº 9.307/96 traçam de modo indelével a jurisdicionalidade da arbitragem. Esse atributo é explicitado quando a lei diz que: (i) “o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário” (art. 18); (ii) “A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo” (art. 31).

Assim, alegam que o conceito clássico de jurisdição – monopolizado pelo Estado – precisa ser redimensionado para compatibilizar-se com o vigente Estado Democrático de Direitos. A jurisdição é mecanismo de pacificação social, sendo que o Estado (que é o povo) delegou esse poder/função/atividade ao Poder Judiciário. Entretanto, aferido que o Judiciário não mais consegue atender adequadamente às demandas do povo, o Estado deve alargar o acesso à Justiça, criando opções de pacificação social efetiva, que, repisa-se, é o escopo maior da jurisdição.

Nessa ordem de ideias, modernizando o conceito de jurisdição e destacando o caráter jurisdicional da arbitragem ante os elementos clássicos da jurisdição, ressalta-se o seguinte argumento da tese em estudo:

[…] o único elemento necessário da jurisdição seria o iudicium, pois ele englobaria, de certa forma, a notio e a vocatio e poderia existir mesmo sem a coertio e a executio. Já essas duas últimas não poderiam existir sem o iudicium. Assim, o poder de dizer o direito seria o traço marcante da jurisdição e estaria presente na arbitragem (RANZOLIN, 2011, p. 56).

No mais, os adeptos dessa corrente explicitam que a arbitragem é verdadeiro processo, porque seu procedimento é realizado em contraditório substancial, os árbitros são juízes de fato e de direito – detentores de independência e imparcialidade, bem como a decisão arbitral é passível de trânsito em julgado. Por conseguinte, o processo arbitral, assim como o judicial, entrega pacificação social, isto é, reveste-se de jurisdição.

Câmara (2009), Néry Júnior (2004) e Carmona (1997) são exemplos de defensores da tese da natureza jurisdicional da arbitragem.

Por derradeiro, existe a doutrina que afirma a natureza mista, híbrida ou sui generis da arbitragem. O instituto seria, a um só tempo, contrato e jurisdição. A celebração da convenção de arbitragem – de base contratual – institui as diretrizes do juízo arbitral, todavia a sentença privada “não é ato integrativo do compromisso, nele tem seu fundamento e seus limites, mas seus efeitos decorrem da lei e não da vontade das partes” (MAGALHÃES, 1989, p. 100).

Destarte, em primeiro plano, o árbitro é investido por negócio jurídico de natureza privada. No plano seguinte, atua conforme as regras delineadas na convenção de arbitragem e consoante as disposições da Lei nº 9.307/96, que lhe entrega poderes e responsabilidades públicos de proferir uma sentença com revestimento de coisa julgada.

Portanto, a natureza jurídica da arbitragem seria o amálgama desses dois planos e no discurso de Ayoub (2005, p. 28-29):

[…] entende-se que a natureza jurídica da Arbitragem assume contorno dúplice, ou seja, uma natureza jurídica mista, porquanto envolve em sua concepção um pacto de vontades e em seu desenrolar a força da lei, emanada dos poderes conferidos ao árbitro, da força de sua decisão, bem como a capacidade de atender ao interesse de ordem social e coletiva.

Posicionaram-se pela defesa da corrente híbrida Lacerda (2006) e Almeida (2002).

Traçados os principais argumentos de cada posição doutrinária, observa-se que o embate entre elas provém substancialmente das diferentes interpretações dispensadas ao termo “jurisdicionalidade”. Nesse particular, valioso o estudo do conceito de jurisdição no capítulo subsequente.

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Sobre o autor
Alan Monteiro Gaspar

Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2014/2015). Especialista em Direito Processual Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2011/2012). Especialista em Direito Processual: grandes transformações: Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2008/2009). Bacharel em Direito: Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM (1998/2002).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPAR, Alan Monteiro. A efetividade da jurisdição arbitral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3933, 8 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27531. Acesso em: 19 abr. 2024.

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