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A proibição do retrocesso: conceituação e análise de um julgado do Tribunal Constitucional de Portugal

12/04/2014 às 08:43
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É necessário garantir a existência humana digna, a qual deve ser protegida contra retrocesso no que tange ao mínimo existencial, que é o núcleo básico de prestações a que qualquer cidadão tem direito.

Em que pesem os limites que restringem a prestação das parcelas mínimas para a concretização de uma existência humana digna, é necessário referir uma ideia de restrição a um retrocesso nos graus de satisfação já implementados. Para tanto, necessário se faz breve explicação sobre a “proibição do retrocesso”.

Ana Paula de Barcellos1 explica a vedação do retrocesso a partir de um conceito de eficácia negativa dos princípios relacionados aos direitos fundamentais, ressaltando que os direitos fundamentais sociais somente têm concretude depois de regulados por normas infraconstitucionais.

Ingo Sarlet2, ao tratar do tema, cita o constitucionalista carioca Luis Roberto Barroso, que com simplicidade e precisão afirma

por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.

Em suma, as considerações da doutrina pátria apontam para a proibição do retrocesso como limite à supressão de prestações sociais já alcançadas aos cidadãos, porquanto teoricamente incorporadas a seus patrimônios jurídicos. Essa ideia linear do instituto em questão veda qualquer tipo de retrocesso do grau de realização atingido, ou seja, o regresso é tido como verdadeira restrição aos direitos fundamentais.

Entretanto, o Tribunal Constitucional de Portugal ao decidir sobre a constitucionalidade de uma norma, analisou o princípio da proibição do retrocesso, revelando alguns parâmetros indispensáveis à correta aplicação da vedação3.

A questão foi assim posta:

[...]Partindo do princípio de que a legislação atinente ao rendimento mínimo garantido, que concretizou o direito à segurança social dos cidadãos mais carenciados – incluindo os jovens entre os 18 e os 25 anos em situação «de falta ou diminuição de meios de subsistência» - constitui «uma manifestação juridicamente sustentada de chamados direitos derivados a prestações», duvida o requerente que fosse possível «retroceder no grau de realização entretanto atingido», sem que tal retrocesso «se sustente numa comprovada incapacidade material, designadamente financeira» ou seja imposto «por força da necessária realização de outros valores de natureza constitucional». É que, tratando-se de «verdadeiras restrições a direitos fundamentais», não bastariam «para fundamentar a afectação ou restrição do conteúdo dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados» a invocação de «razões ou preconceitos de natureza ideológica não constitucionalmente sustentados» ou a apresentação de «justificações meramente apoiadas em diferenças de opinião política próprias da variação conjuntural das maiorias de governo».

Especificamente sobre o tema da proibição do retrocesso, o Tribunal Constitucional Lusitano, citando doutrinadores daquele país, assim se pronunciou:

[...]Também José Carlos Vieira de Andrade (ob. cit., págs. 391-392) analisa detidamente a questão, que trata de forma mais sintética noutro lugar (La protection des droits sociaux fondamentaux au Portugal, in La protection des droits sociaux fondamentaux dans les Etats membres de l’Union européenne, cit., pág. 690):

Em nossa opinião, é difícil aceitar um princípio geral do «acquis social» ou da «proibição do retrocesso», sob pena de se sacrificar a «liberdade constitutiva» do legislador, sobretudo numa época em que ficou demonstrado que não existe uma via única e progressiva para atingir a sociedade justa.

Todavia, pode-se admitir que existe uma certa garantia de estabilidade :

- uma garantia mínima, no que se refere à proibição feita ao legislador de pura e simplesmente destruir o nível mínimo adquirido;

- uma garantia média, quando se exige às leis «retrocedentes» o respeito pelo princípio da igualdade (como proibição do arbítrio) e do princípio da protecção da confiança ;

- uma garantia máxima, apenas nos casos em que se deve concluir que o nível de concretização legislativa beneficia de uma tal «sedimentação» na consciência da comunidade que deve ser tido como «materialmente constitucional».

Mas o mesmo autor não deixa expressivamente de advertir (Os Direitos Fundamentais ..., loc. cit.):

Contudo, isso não implica a aceitação de um princípio geral de proibição do retrocesso, nem uma «eficácia irradiante» dos preceitos relativos aos direitos sociais, encarados como um «bloco constitucional dirigente». A proibição do retrocesso não pode constituir um princípio jurídico geral nesta matéria, sob pena de se destruir a autonomia da função legislativa, degradando-a a mera função executiva da Constituição. A liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade, ainda que limitadas, constituem características típicas da função legislativa e elas seriam praticamente eliminadas se, em matérias tão vastas como as abrangidas pelos direitos sociais, o legislador fosse obrigado a manter integralmente o nível de realização e a respeitar os direitos por ele criados.

9. Embora com importantes e significativos matizes, pode-se afirmar que a generalidade da doutrina converge na necessidade de harmonizar a estabilidade da concretização legislativa já alcançada no domínio dos direitos sociais com a liberdade de conformação do legislador. E essa harmonização implica que se distingam as situações.

Mais adiante esclarece a necessária diferenciação a ser feita para que se alcance a harmonia referida:

[...]Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível «determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade» (cfr. Acórdão nº 474/02, ainda inédito), a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão – e terá sido essa a situação que se entendeu verdadeiramente ocorrer no caso tratado no já referido Acórdão nº 39/84.

Noutras circunstâncias, porém, a proibição do retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções legislativas fundamentais.

E mais, a Corte Portuguesa traçou, de maneira didática e precisa, as linhas mestras que autorizam a aplicação do princípio da proibição do retrocesso:

[...]Todavia, ainda que se não adopte posição tão restritiva, a proibição do retrocesso social operará tão-só quando, como refere J. J. Gomes Canotilho, se pretenda atingir «o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana», ou seja, quando «sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios», se pretenda proceder a uma «anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial». Ou, ainda, tal como sustenta José Carlos Vieira de Andrade, quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação do princípio da igualdade ou do princípio da protecção da confiança; ou, então, quando se atinja o conteúdo de um direito social cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade.

Por fim, entendendo não existir instrumentos alternativos ao rendimento social de inserção que pudesse garantir aos jovens, de idade entre 18 e 25 anos, o direito a um mínimo de existência condigna, decidiu o Tribunal Constitucional de Portugal pela inconstitucionalidade da norma guerreada.

[...]Nestes termos, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4º, nº 1, do Decreto da Assembleia da República nº 18/IX, por violação do direito a um mínimo de existência condigna inerente ao princípio do respeito da dignidade humana, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 1º, 2º e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

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Consolidadas essas assertivas não resta dúvida acerca da necessária garantia à existência humana digna, protegida, inclusive, de um retrocesso no que tange a um mínimo existencial, que é o núcleo básico vital de prestações que devem ser alcançadas a qualquer cidadão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, ed. Renovar e Fundação Getúlio Vargas, n. 215, p.151-179, jan./mar.1999.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BASTOS, Celso Ribeiro. Direitos e garantias individuais. In: A Constituição Brasileira de 1988: Interpretações. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

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Notas

1 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 68-69. Explica a autora que “A vedação do retrocesso é também uma criação doutrinária que diz respeito aos princípios, particularmente, aos princípios relacionados aos direitos fundamentais, podendo ser considerada uma derivação ou um aprofundamento do mesmo conceito que define a eficácia negativa (e, portanto, seu ofício desenvolve-se igualmente no plano da validade)”. E adiante arremata “A modalidade de eficácia jurídica denominada de vedativa do retrocesso pressupõe logicamente que os princípios constitucionais ue cuidam de direitos fundamentais são concretizados através de normas infraconstitucionais, isto é: os efeitos que pretendem produzir são especificados por meio da legislação ordinária. Além disso, pressupõe também, com base no direito constitucional em vigor, que um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a progressiva ampliação dos direitos em questão”.

2 Sarlet, A eficácia,... p. 417.O autor traz à lume a lição dos constitucionalistas portugueses Gomes Canotilho e Vital Moreira, segundo os quais a proibição do retrocesso se traduz na seguinte idéia, “uma vez dada satisfação ao direito, este transforma-se, nessa medida, em direito negativo, ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele”.

3 Acórdão n. 509/02, Proc. n. 768/02, Rel. Cons. Luís Nunes de Almeida, j. 19/12/2002. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt>. Acesso em: 08 de nov. de 2004.

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Sobre o autor
Alexandre Brentano

Procurador Federal da Advocacia-Geral da União - AGU / Especialista em Direito do Estado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRENTANO, Alexandre. A proibição do retrocesso: conceituação e análise de um julgado do Tribunal Constitucional de Portugal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3937, 12 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27581. Acesso em: 19 abr. 2024.

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