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A secularização das regras processuais brasileiras no século XIX.

A perda de influência do direito eclesiástico no Direito brasileiro

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17/04/2014 às 11:45
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Ao longo do século XIX, a organização do Estado e de suas instituições implicou, sempre que possível, a separação entre os negócios espirituais, afetos à ordem eclesiástica, e os seculares, afetos ao Poder Público.

Sumário: 1. Introdução. 2. Sobre o ambiente cultural secularizado. 3. As relações do Estado com a Igreja no modelo da Constituição de 1824 e a criação de um novo ordenamento. 4. A secularização das funções jurisdicionais. 5. Uma conclusão possível. 6. Bibliografia.


1. Introdução

Neste artigo pretendo analisar como a secularização da política e o pensamento laico, difundidos na cultura ocidental a partir do ideário iluminista do século XVIII, influenciaram na criação e na organização das primeiras instituições judiciárias brasileiras ao longo do século XIX, delineando os primeiros traços do direito processual brasileiro sob o modelo criado pela Carta Política outorgada em 1824.

Para além da aparência de contradição entre o modelo de Estado confessional adotado pelo Brasil, onde, respeitadas as demais religiões, a Constituição declarava a Católica como a oficial do Estado, a formatação de instituições secularizadas representou uma coerência com o ambiente cultural de sua época e o desejo de criação de uma Nação que nos planos jurídico e político não representava, considerada a sua idade, um atraso em relação às demais Nações europeias.

Essa é a tônica da narrativa sobre a secularização das instituições judiciais e as relações entre o Estado Brasileiro e a Igreja que pretendo desenvolver utilizando como base a legislação do século XIX, a opinião dos juristas coevos e algumas consultas sobre as relações entre o Estado e a Igreja Católica submetidas ao Conselho de Estado do Império, que como órgão auxiliar do Poder Moderador, assumiu um papel de intérprete e produtor da doutrina jurídica nacional.1


2. Sobre o ambiente cultural secularizado

Preparando o mundo para o constitucionalismo moderno, o Iluminismo trouxe com ele a ideia de autonomia, segundo a qual se deve privilegiar aquilo que é escolhido por si mesmo em detrimento daquilo que é imposto por uma autoridade exterior. Houve uma tomada pela humanidade de seu próprio destino e a valorização do tempo presente (saeculum), consequência dessa escolha, é a restrição ao caráter de toda autoridade, principalmente aquela de ordem religiosa, que busca a sua legitimidade em tempos imemoriais.

Isso não equivale a dizer que a partir do Iluminismo, os homens deixaram de ser religiosos, mas que o poder deixou de buscar o fundamento de sua validade em um tempo distante, que remetia à eternidade, para encontrá-lo nos homens e no seu tempo2.

A sociedade moderna passou a ser vista como um conjunto inter-relacionado de atividades de produção, intercâmbio e consumo, que compõe um sistema com suas próprias leis e sua própria dinâmica na qual a esfera pública passa a ter um papel relevante. Os atos fundadores da sociedade não são mais deslocados para um plano mais elevado, ou em um tempo heróico e a questão da legitimidade postula no tempo profano o seu fundamento.

Essas alterações influenciaram o Constitucionalismo de finais do século XVIII, consolidado ao longo do século XIX, que sem prejuízo da convivência com a religião, firmou no mundo moderno o processo de secularização. Criou-se um repertório de regras para que a própria sociedade se transformasse sem que fosse necessário esperar por um desígnio divino ou uma justificativa transcendente, bastando o conhecimento das regras estabelecidas e a concordância dos demais agentes sociais.

Com a independência política do Brasil com relação a Portugal, foi necessário organizar as primeiras instituições nacionais. Apesar da pressa na criação de uma nova legislação e das instituições do país, a Carta outorgada em 1824 não pôde substituir todas as práticas coloniais de origem portuguesa3. Assim, mantendo-se as relações entre a Igreja e a monarquia existentes desde a colônia, adotou-se o modelo de estado confessional, permanecendo o catolicismo como religião oficial.

No entanto, essa permanência deve ser vista sob a égide do Direito Público do século XIX, com ressalvas às interpretações que valorizam a continuidade da herança patrimonialista ibérica em detrimento da complexidade das instituições nacionais que se firmaram ao longo do século XIX, “ditado pela crise de paradigmas políticos que revolucionou o mundo ocidental desde o século XVIII”4.

Imerso nesse ambiente cultural, sob o modelo constitucional do Império do Brasil do século XIX, o poder eclesiástico cedeu espaço ao poder temporal na remodelação das instituições, entre elas a jurisdição.


3. As relações do Estado com a Igreja no modelo da Constituição de 1824 e a criação de um novo ordenamento

Assegurando a liberdade de outros cultos que não o católico, com a condição de que não possuíssem forma exterior de templo, o artigo 5° da Constituição5 de 1824 declarava que a Igreja Católica continuava a ser a religião oficial do Império.

Desta forma, conservou-se o padroado, sistema de relação entre o Estado e a Igreja com origens em bulas papais do século XVI, segundo o qual a Coroa Portuguesa seria a protetora da Igreja Católica e cumpriria uma missão evangelizadora nas terras descobertas, com a obrigação de construir e manter os prédios das igrejas e remunerar o clero, fornecendo os meios materiais para o desenvolvimento do trabalho evangelizador.

Em contrapartida, o monarca tinha o direito de arrecadar os dízimos, de modo que as contribuições dos fiéis à Igreja passavam a ter natureza de imposto administrado pela Coroa, que depois os redistribuía conforme critérios políticos. Ainda pelo sistema do padroado herdado de Portugal, também era o poder civil, e não o eclesiástico, quem criava dioceses e paróquias, nomeando os clérigos para nelas atuarem.

Nos termos do artigo 102, §2º, da Constituição do Império, cabia ao Imperador o poder de nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos6, razão pela qual os clérigos eram considerados agentes públicos7 e secundavam a Administração Pública na vastidão territorial do país. Por isso, ficavam submetidos a duas hierarquias distintas, a da Igreja e a do Estado, o que na prática gerava conflitos políticos entre o poder civil e o religioso.

Outro dispositivo constitucional gerador de atritos entre o poder temporal e o poder eclesiástico era o § 14, do mesmo artigo 102. Pela competência nele atribuída, cabia ao Imperador conceder ou negar beneplácito aos decretos dos concílios, letras apostólicas e quaisquer outras constituições eclesiásticas não conflitantes com a Carta Política, deixando claro quem mandava mais, com prejuízo à autonomia da Igreja.

Outorgada a Carta Política, foi a vez de ser remodelado o ordenamento do Império. O Poder Legislativo e o Governo Imperial preocuparam-se, inicialmente, com a organização do Estado e com a reformulação das instituições coloniais. No ramo do direito público, foram reestruturadas, primeiro, as funções administrativas e judiciárias. Somente depois, com as alterações da sociedade catapultadas com o fim do tráfico de escravos, foi constituído um aparato legislativo necessário à regulação das relações de direito privado, com a edição da Lei de Terras, a Lei Hipotecária, o Código Comercial etc.

Um passar de olhos no trabalho das primeiras legislaturas8 do Parlamento do Império dá exemplos representativos dessa finalidade organizacional. Primeiro, esvaziou-se o poder das Câmaras de Vila; depois, foi organizado, em 1828, o Supremo Tribunal de Justiça, que havia sido criado pela Constituição para substituir os órgãos judiciais de cúpula da metrópole com jurisdição na colônia; pouco mais tarde, com a votação de uma Lei Orçamentária, foi organizado o Tesouro Público Nacional. Também datam da primeira metade do século o Código Criminal, promulgado em 1830, e o Código de Processo Criminal, de 1832, reformado, posteriormente, em 1841.

Nesse diapasão, no plano institucional, foram perdendo força as Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, elaborada pelo Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide e aprovadas por um Sínodo em 1707.

As Constituições consistiam em uma verdadeira peça prescritiva, emanada do poder eclesiástico, com condutas permitidas e vedadas na ordem civil da colônia que preencheram os espaços não ocupados pelo poder temporal. Com a intenção de disciplinar a vida religiosa no Brasil colonial, seu texto continha regras de direito eclesiástico que regulamentavam a forma como deveriam ser realizados os sacramentos católicos, como o batismo e o casamento, impunham sanções e, ainda, designavam as autoridades competentes para o julgamento dos “pecados públicos” e crimes contra as causas eclesiásticas, dividindo espaço com a jurisdição temporal.

Impressas em 1719, em Lisboa, e em 1720, em Coimbra, as Constituições foram reimpressas novamente somente em 1853, desta vez em São Paulo. No prólogo dessa edição, escrito por Ildefonso Xavier Ferreira, cônego prebendado, são realçadas as alterações trazidas no texto em razão do ordenamento jurídico criado sob o Império, salientando o posicionamento da Igreja frente ao Estado nesta nova ordem:

É inquestionável que as Leis disciplinares da igreja se mudam e se acomodam às circunstâncias do tempo, e que a Igreja, embora seja um Império distinto e separado, pelo que pertence ao espiritual dos fiéis, com tudo esta subordinada ao Império Civil. A forma de Governo, as leis pátrias, os diversos Códigos, adotados por uma Nação Católica, tem colocado a Igreja na indeclinável necessidade de modificar sua disciplina.

(...)

Embora as Constituições do Arcebispado da Bahia fossem adotadas pelos senhores Bispos do Brasil com as alterações necessárias, acomodadas aos usos e costumes das Dioceses, já na época da Independência Brasileira, inumeráveis de suas disposições tinham caído em desuso. Apenas, porém, apareceu a Constituição Política do Império muitas caducaram, não obstante serem fundadas em Direito Canônico: ninguém ignora que as imunidade da Igreja eram fundadas naquele direito; e como poderiam subsistir à vista da Constituição do Império. Todas sabem o privilégio do foro: mas duas linhas do Código do Processo aboliram semelhante privilégio; e por isso cessam todas as regalias que aquele concedia.9

No Brasil do século XIX, paulatinamente, o ordenamento foi estruturado pelo poder secular, em substituição às fontes e entendimentos emanados das autoridades eclesiásticas. Não havia dúvidas a respeito da legitimidade do governo em acertar o ordenamento aos novos tempos.

Além da benção divina constante do preâmbulo da Constituição, o poder temporal, ao editar novas normas ou ao fixar entendimentos consentâneos à realidade contemporânea, tinha a legitimidade do povo que o sufragava segundo os ditames do constitucionalismo moderno. O poder eclesiástico, que buscava sua autoridade em origens remotas ou divinas, assistiu, então, a reestruturação do modelo confessional de Estado a partir da remodelação de alguns institutos jurídicos, entre eles a jurisdição.


4. A secularização das funções jurisdicionais

Na tradição lusitana, da qual o Brasil herdou o sistema do padroado, o direito eclesiástico - assim então denominado porque suas regras emanavam da igreja, correspondendo ao que hoje constitui o direito canônico - era utilizado como fonte subsidiária do direito, possuindo a Igreja Católica influência sobre a cultura jurídica. Desde as Ordenações Afonsinas (1446), as decretais do Papa Gregório IX, ao lado do direito romano, da glosa de Acúrsio e da opinião de Bártolo, colmatava as lacunas, visando a preencher os vazios legislativos do Estado Moderno Português.

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Nas Ordenações Afonsinas, “o problema que até então se colocava não era simplesmente jurídico (...) a questão, na verdade, centrava-se também no conflito de jurisdições”10 Caso o direito comum não previsse a mesma solução ao caso concreto dada pelo direito eclesiástico, adotava-se o denominado critério do pecado, que determinava a incidência do direito eclesiástico para as questões de natureza espiritual ou nas quais a aplicação do direito romano pudesse acarretar pecado.

O mesmo critério foi mantido nas Ordenações Manuelinas (1521) e nas Filipinas (1603), mas nestas a questão recebeu outro enfoque, porque, em vez de tratada como conflito de jurisdição, passou a ser concebida como critério de julgamento, regulado no título destinado a “como se julgarão os casos, que não forem determinados por as ordenações.”11.

Em meio às mudanças introduzidas pelo ideário iluminista, a “Lei da Boa Razão”, de 19 de agosto de 1769, editada por D. José I, tutoreado por seu primeiro Ministro Marquês de Pombal, redesenhava a utilização das tradicionais fontes de direito com o intuito de fortalecer o Estado e orientar a ordem jurídica, fomentando nas instituições as bases da secularização consolidada no século XIX.

O direito de origem doutrinal e jurisprudencial foi desvalorizado em face da lei engendrada por Pombal. O seu § 12, aplicado nas relações do Brasil, afastava a vigência autônoma do direito canônico nos tribunais civis12. A partir de então, o direito canônico somente seria utilizado pelos Tribunais e Consistórios Eclesiásticos.

No entanto, ainda era expressiva a autonomia jurisdicional da Igreja, que no Brasil, segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, continuava a ter competência em razão da pessoa (iurisdictio ratione personae) e em razão da matéria (iurisdictio ratione materiae), para julgar, respectivamente, as questões civis e criminais nas quais estivessem envolvidos clérigos; ou casos relativos às matérias espirituais, à organização e disciplina eclesiásticas ou, ainda, relativas a assuntos religiosos ou bens da Igreja.

Ademais, em razão da vastidão do território e da incipiente organização estatal, pode-se afirmar que no Brasil, assim como ocorreu em Portugal, a igreja preservava ainda funções que interferiam na ordem civil, conforme ensina António Manuel Hespanha:

Outra reserva jurisdicional – agora ao nível do “vivido”, que não do “direito oficial” – diz respeito ao papel das autoridades eclesiásticas (sobretudos os párocos, mas também as confrarias ou irmandades) como ordenadoras da vida coletiva e como mediadoras “informais” de conflitos nas comunidades rurais (...) A Igreja sempre fomentara a intervenção arbitral das suas instituições (bispos, curas de almas, confrarias) na resolução de conflitos entre fiéis (c.f. S. Paulo, Corint., I, 6)13

Todavia, na mesma proporção em que as instituições brasileiras se fortaleciam e o Estado se organizava, perdiam força as instâncias jurisdicionais eclesiásticas e esmorecia a aplicação das referidas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.

De fato, o Código de Processo Criminal do Império, de 3 de dezembro de 1841, em seu artigo 155, § 4º, seguido pelo artigo 200 do regulamento de 31 de janeiro de 1842, limitava a jurisdição eclesiástica em matéria criminal à imposição de penas meramente espirituais. A respeito desse tema, Jerônymo Vilella de Castro Tavares, em seu Compendio de direito eclesiástico para uso das academias jurídicas do Império, ensinava que o fim da jurisdição eclesiástica coincidia com a admissão da tolerância religiosa nas nações. Citando a França como exemplo, onde a tolerância foi admitida em 1780, o autor lecionava que:

A igreja em muitas ocasiões e por muito tempo tem exercido jurisdição temporal; mas isto ou é por abuso, que não pode fazer lei, nem constituir direito ou, então, é por vontade e consentimento dos soberanos civis (...) na Constituição do Arcebispado da Bahia se achavam consignados alguns princípios alheios ao poder da Igreja, v.g. sobre impostos; mas hoje ambos os poderes, eclesiástico e civil tem ocupado a posição que verdadeiramente lhes pertence.14

Essa retomada de competência pelo poder temporal deve ser vista no conjunto das alterações introduzidas pela Lei de 3 de dezembro de 1841, que reformou o Código de Processo Criminal de 1832. Ao lado da lei de interpretação ao Ato Adicional de 1834 e da lei que reestabeleceu o Conselho de Estado, a reforma caracterizou o momento conhecido na História do Brasil como política do regresso, que fortalecia o poder central frente aos poderes regionais que protagonizaram as revoltas regenciais da década de 1830.

Nessa reforma processual de 1841, a instrução criminal passou das mãos dos juízes de paz eleitos no âmbito das províncias para a atribuição dos cargos de chefes de polícia, exercidos por juízes de direito nomeados na Corte. Dentro dessa ideia de centralização de poder, a jurisdição eclesiástica sobre matéria criminal, antes muitas vezes exercida pelo Bispo ou pelo Vigário Geral em razão da identificação de vários crimes com pecado, passou a ser atribuição de um juiz ligado à estrutura do Ministério da Justiça15.

Com relação à jurisdição civil, embora nas relações jurídicas de direito material muitos atos relacionados ao estado da pessoa, e correspondentes de alguma forma aos sacramentos religiosos, mantivessem-se sob a supervisão da Igreja Católica, também foi suprimida a competência dos juízos eclesiásticos para o registro e execução dos testamentos pela Lei de 27 de Agosto de 1830.

Desde 3 de novembro de 1622 as competências estavam repartidas entre os juízos. Ao juízo eclesiástico caberia o registro dos testamentos nos meses de janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro; ao juízo secular caberia sempre a execução e, nos meses em que a tarefa não competisse à Igreja, o registro.

Com o advento da Lei de 27 de agosto de 1830, originada de um projeto de Rocha Franco16 apresentado durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, extinguiu-se o critério da alternatividade e ficou estabelecido que todas as contas de todos os testamentos, bem como a decisão de todas as questões a eles relativas, pertenceriam aos juízos seculares, diminuindo o âmbito de influência da Igreja.

Essas competências foram reafirmadas pelo aviso nº 47 de 28 de julho de 1843. Avisos eram orientações expedidas por Ministros ou seus prepostos após consultas ao Conselho de Estado e assumiam a função de precedente na orientação de soluções jurídicas17. O fato de haver um aviso a respeito de um tema legislado quase treze anos antes é sugestivo das controvérsias ainda existentes sobre o assunto nesse período, resolvidas com a atuação do poder central.

Dentro dessa linha de redução das reservas políticas da Igreja, o Estado, antes mesmo de o Código de Processo Criminal de 1841 disciplinar quem seria julgado pela justiça comum, estabeleceu critérios de investiduras daqueles que deveriam julgar na justiça eclesiástica, ainda ligada à estrutura administrativa do Estado. Pretendendo absorver os egressos de suas Faculdades de Direito do Império, o artigo 2º da Lei de 17 de setembro de 1839 estabelecia preferência dos bacharéis nelas formados para assumir função de desembargadores na Relação Eclesiástica.

A lei permitia uma promoção per saltum uma vez que um bacharel recém-formado poderia ascender ao órgão de segunda instância sem nunca ter passado por um cargo público e os Vigários Gerais e Juízes de primeira instância, que normalmente eram promovidos à Relação, seriam preteridos por não ter o diploma.

Alguns anos após a sua entrada em vigor, enquanto o ultramontanismo ganhava espaço, a lei despertou a reação da Igreja e o Arcebispo da Bahia representou ao governo imperial, com um requerimento escorado em um fundamento de paridade de tratamento para que a nomeação dos desembargadores da relação eclesiástica seguisse “a mesma ordem de acesso ou gradação hierárquica estabelecida para a Magistratura secular, chamando para o cargo de Juízes da segunda e última instância os que na primeira tivessem já dado provas de inteligência, inteireza e probidade”18.

No exercício do Poder Moderador, o Imperador remeteu o caso ao Conselho de Estado, que emitiu sua consulta em 21 de janeiro de 1854. Antes dos conselheiros, o Procurador da Coroa emitiu parecer no sentido de que a Lei deveria ser cumprida embora carecesse de mudança. No entanto, a Seção de Justiça, integrada por Caetano Maria Lopes Gama, Visconde de Abrantes e Paulino José Soares de Souza, entendeu que qualquer mudança importaria em retrocesso.

Certamente pesou para a opinião dos Conselheiros o fato de os bacharéis receberem instrução de Direito Eclesiástico durante curso da Faculdade de Direito, mas os fundamentos de ordem política e a percepção de uma ordem social mais laicizada são os que mais ganharam realce, demonstrando uma diluição do poder da Igreja nas funções assumidas pelo Estado moderno, menos hierarquizado do que as relações da sociedade que o precederam, na qual o poder religioso preponderava.

Na opinião dos Conselheiros:

quando os Teólogos eram os Jurisconsultos, e quase os únicos que sabiam ler e escrever e tinham algumas noções do Direito romano, bastava certamente ter os conhecimentos então necessários a um clérigo, para que lhe fossem confiadas as funções de Juiz, não só nas supraditas questões, como na quase totalidade dos processos civis em concorrência com os Juízes seculares.

Hoje, porém, o clérigo que houver de ser Juiz nas causas, não puramente espirituais, precisa aprender nas Universidades ou em Academias especiais, as ciências jurídicas e sociais que tanto contribuíram para que os Juristas soubessem aconselhar aos seus Soberanos os sucessivos atos com que se foi reduzindo às mais justas proporções o imenso poder judiciário da Igreja, no sentido destas palavras divinas: «Reddite quae sunt Cesaris Cesari, et quce sunt Dei Deo.» 19

Anos mais tarde, chegavam ao Conselho de Estado duas outras consultas resolvidas com fundamento no direito eclesiástico e cujos resultados influenciariam na configuração do Poder Judiciário, uma vez que se tratava do exercício de uma das profissões essenciais ao seu funcionamento, a advocacia. A primeira consulta, resolvida em 1863, dizia respeito à possibilidade dos padres exercerem a advocacia no foro comum; a outra, de 1869, tratava sobre a necessidade de aval da Igreja para exercer a advocacia no Tribunal Eclesiástico.

A consulta realizada em 30 de julho de 1863 foi iniciada a partir de uma representação do Juiz Municipal e de Órfãos do termo de São Paulo de Muriaé, na Província de Minas Gerais, indagando se havia incompatibilidade entre as funções de pároco e a de advogado porque, pela legislação regulamentadora da profissão, não só os párocos formados em uma das faculdades do Império poderiam advogar, mas também todos aqueles provisionados em paróquias não habitadas por bacharéis, que na vasta extensão do território não eram poucas.

Antes da questão ser encaminhada aos Conselheiros, opinaram os órgãos auxiliares da Seção de Justiça, que emitiram pareceres divergentes: o 1º Oficial, Camilo José Pereira de Faro; e o Diretor, Candido Mendes de Almeida.

O 1º Oficial opinou pela inexistência de incompatibilidade, pois entendia que, não tendo a coleção de leis do Império previsto esta hipótese de incompatibilidade entre as inúmeras que regulava, não poderia haver interpretação que restringisse o exercício da advocacia aos Párocos. Sua opinião revelava ainda que a acumulação dessas funções era uma praxe comum nas Províncias, fiando-se nessa rotina para não ver mal nenhum no desempenho concomitante do pasto espiritual e do exercício da advocacia:

as funções destes empregos não repugnam entre si por sua própria natureza, da acumulação deles não resulta a impossibilidade de ser cada um desempenhado satisfatoriamente, penso, portanto, que se deve declarar á Presidência de Minas Gerais que não há incompatibilidade no exercício simultâneo das funções de Pároco e de Advogado; esta decisão parece de acordo com a prática adotada, de que há exemplos em muitas Províncias do Império20.

Rebatendo os argumentos do 1º Oficial, Candido Mendes de Almeida enfrentou a questão com os olhos de quem estava familiarizado com o Direito Canônico. Argumentando com os textos das Ordenações e das Decretais de Gregório IX, concluiu pela impossibilidade de acumulação.

Ora, o Direito Canônico faz parte de nossa Legislação, e não pode ser preterido com um simples rasgo de pena, ou por decisão Ministerial.

O Pároco não pôde ser Juiz de Paz, Municipal, de Órfãos, Vereador, Jurado, Corretor, Delegado de Polícia etc.

As razões que criaram estas incompatibilidades prevalecem no caso de Advogado e Procurador.

Os motivos de ordem pública que impediram que os Juízes e Promotores advogassem e procurassem nos lugares onde exercem funções, pondo de parte o direito canônico, de que aliás não podemos preterir a execução, e tão pouco facilitar a desobediência, parecem militar também em prol do bom desempenho das funções de Pároco (Juiz da consciência dos seus paroquianos) e de outros encargos seculares (Decreto n. 1318. de 30 de Janeiro de 1854, Arts. 97. e seguintes).

« Demais tendo sido o emprego de Pároco declarado civil (Aviso n. 306. de 2 de Agosto de 1831, 4 de Junho de 1832, n. 213. de 24 de Agosto, n. 324. de 28 de Outubro, e n. 415. de 23 de Dezembro de 1859), pode o Governo, que assim entendeu, declarar a incompatibilidade desse emprego com o exercício da profissão de Advogado e Procurador, como já fez á respeito dos Juízes e Promotor; podendo-o com tanto mais segurança, quanto a profissão de Advogado é munus público (Aviso de 7 de Outubro de 1828, e 1 de Agosto de 1831)21.

Instaurada a controvérsia, a questão foi encaminhada aos Conselheiros da Seção de Justiça. O primeiro a se manifestar foi Visconde de Uruguai, Relator do caso, que ratificou as razões externadas por Mendes de Almeida. Em seguida, a controvérsia foi mantida pelo parecer de Euzébio de Queiróz, que endossou os argumentos do 1º Oficial de que na prática os párocos já advogavam e que não seria conveniente despertar reclamações com a declaração de incompatibilidade dessas funções. Argumentava, ainda, que se as Ordenações fossem aplicadas como sugeria Mendes de Almeida, “muitos dos mais distintos Advogados do nosso Foro teriam de fechar seus escritórios porque essa disposição não compreende só os Clérigos, e sim de envolta com eles as pessoas poderosas como os Fidalgos, etc”22.

Retornada a questão ao Visconde de Uruguai, este acresceu ao seu parecer o argumento de que “o Pároco deve estar sempre disponível para administrar o pasto espiritual, para batizar, casar, acudir logo aos moribundos, que não podem esperar, e não ocupado com Partes, Procuradores e papeis forenses; preso em uma longa sessão de Júri a acusar ou defender, réus”23. Em seguida, para desempate da controvérsia, a questão foi encaminhada ao terceiro conselheiro, o Constitucionalista José Antônio Pimenta Bueno, que buscou nas regras de Direito Eclesiástico das Constituições do Arcebispado da Bahia fundamento para reconhecer a incompatibilidade:

A Constituição do nosso Arcebispado da Bahia em seu Tit. 9.° n. 492. diz em relação aos simples Clérigos

— Outrossim não poderão ser Advogados no Foro e Auditório secular de causas seculares, nem Procuradores ou Solicitadores das mesmas causas, salvo se requererem por si próprios ou por causa sua, ou de seus parentes em grau promíscuo, ou de suas Igrejas, ou de seus Prelados; ou de outras pessoas eclesiásticas com quem viverem.

Ora se a nossa Constituição do Arcebispado assim manda quanto aos simples Clérigos que não tem cura d'almas, conquanto maior razão não se deverá considerar essa proibição vigente em relação aos Párocos.

Se aqueles só por serem Sacerdotes não devem distrair-se do serviço de Deus para auferir lucros seculares, como poderão distrair-se os Párocos ?

Como combinar mesmo o dever que estes tem de confessar os seus paroquianos que por ventura serão partes adversas em um pleito que ele sustente na qualidade de Advogado do contrário?24

Resolvida a questão pela incompatibilidade, nos termos dos votos do Visconde de Uruguai e de Pimenta Bueno, foi expedido o Aviso 359 de 4 de agosto de 1863 comunicando que havia incompatibilidade entre a função de pároco e de Advogado ou procurador.

Alguns anos depois, em 31 de dezembro de 1869, o Conselho emitiu parecer sobre duas representações: a da filial pernambucana da Ordem dos Advogados e a do Advogado e professor na Faculdade de Direito do Recife, Antonio Menezes Vasconcellos de Drumond, ambas dirigidas contra ato do Bispo daquela província que tornou dependente de licença da diocese o exercício da advocacia no foro eclesiástico.

A autoridade eclesiástica fundamentava a exigência no artigo 438 do Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia de 1704, mas o Instituto dos advogados argumentava que as exigências não estavam em consonância com as leis do Império, além de ferir direitos adquiridos, pois nunca antes haviam sido feitas e desde as Ordenações (Livro 1º, título 48) se garantia aos bacharéis em direito o exercício da advocacia, independentemente de licença. Também sustentava que somente bacharéis em direito poderiam ocupar o cargo de Desembargador da Relação eclesiástica, como acima visto.

Ao levar a questão ao conhecimento do Governo Imperial, a entidade de classe realçou o conhecimento de direito eclesiástico pelos bacharéis formados nas Faculdades de Direito sustentando que “o ensino do Direito Eclesiástico nas Faculdades do Império por lentes católicos e por compêndios devidamente aprovados e inteiramente conformes ao ensino da Igreja é decerto suficiente para a defesa de qualquer demanda no foro eclesiástico” 25.

Para desmontar esse argumento, o Bispo construiu uma defesa interessante. No entendimento exposto por ele, quando o Legislador do Império reconheceu a religião católica como religião oficial e sancionou o foro eclesiástico dos Bispos, reconhecendo o direito canônico, foram estabelecidas duas ordens distintas: uma civil-criminal, que se dirige ao cidadão “enquanto súdito do Governo especial da Pátria”; e a do Direito Canônico, que se dirigia aos cristãos das várias dioceses “enquanto súditos ao Governo Geral da Igreja”.

Na tese defendida pelo Bispo, poderiam ser escolhidos por ele, para advogar perante “o seu foro”, somente “eclesiásticos versados em Cânones”, excluindo-se os “advogados civis”. Ainda de acordo com sua tese, se pelos costumes foram todos os advogados indistintamente aceitos a advogar no foro eclesiástico, nada havia que lhe tirasse a faculdade de escolher quais dentre os advogados seculares poderiam advogar neste foro especial. Para elidir o argumento da Ordem dos Advogados de que os profissionais seculares possuíam formação em direito eclesiástico garantida pelas Faculdades de Direito do Império, tenta legitimar sua exigência em um fundamento de ordem histórica:

É bem conhecido na história que as Universidades em sua origem foram instituições eclesiásticas e que a faculdade teológica aí ocupava o primeiro lugar, isto é, pertencia à cadeira de Direito Canônico.

Os mais eminentes doutores, chamados mesmo de outros países quaisquer, sendo a ciência cosmopolita, aí tinham cadeiras: e o ensino, bem que vário em razão do diverso engenho dos Professores, era todavia homogêneo no seu essencial; pois era eminentemente cristão; e os Tribunais eclesiásticos eram uma palestra onde praticavam os mais abalizados Canonistas das diversas nações, sendo universal a Legislação eclesiástica.

As circunstâncias particulares dos tempos modernos aboliram de quase todas as Universidades (que por isso ficaram sendo laicas) o ensino teológico, conservando-se, porém, a cadeira de Direito Canônico nos países católicos em serviço de foro eclesiástico; mas como os Professores e os textos, que se explicam, não recebem em algumas Universidades o seu mandato da autoridade eclesiástica, a Igreja em tais casos não pode inteiramente fiar-se na pureza do ensino das Leis que a ela pertencem, nem pode sem suma discrição admitir para patronos nos seus Tribunais doutores que não receberam do seu mesmo seio a ciência que professam.26

Na Seção de Justiça do Conselho de Estado a questão foi encaminhada pelo parecer do Diretor Ferreira Valle no sentido de que o Bispo não poderia conceder licença para a advocacia no foro eclesiástico nem negar que advogados legalmente habilitados lá oficiassem.

No entanto, diversa foi a solução dada pelos Conselheiros Nabuco de Araújo e Domiciano Leite Ribeiro, que entenderam ter o Bispo razão em selecionar os advogados que poderiam atuar no foro eclesiástico. Com razões diversas das apresentadas pelo Bispo, os Conselheiros levaram em consideração o fato de o foro eclesiástico julgar apenas causas eclesiásticas, sem possuir a força que possuíam no passado. Para justificar a utilização da regra inserta no Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia em detrimento da regra das Ordenações defendida pela Ordem dos Advogados, os Conselheiros, citando expressamente o Digesto e Pothier, fiaram-se na regra segundo a qual a lei especial derroga a lei geral.

Contra o argumento de que os advogados civis desde longa data já advogavam no foro eclesiástico, os Conselheiros sustentaram que a derrogação pelo desuso só era possível nos países em que prevalecia o sistema de direito consuetudinário, razão pela qual entenderam não haver direito adquirido pelos Advogados que já atuavam no foro eclesiástico em razão de o Bispo nunca antes ter exigido prévia licença.

Em um primeiro olhar, a solução dada pelos Conselheiros parece ir na contramão de decisões tomadas anteriormente, sobretudo porque havia uma lei de 1839 determinando que os desembargadores das relações eclesiásticas fossem escolhidos dentre bacharéis formados pelas Faculdades de Direito do Império.

No entanto, o conjunto dos pareceres prolatados em assuntos eclesiásticos indica uma tentativa dos Conselheiros e, por conseguinte do Poder Público, de separar as instâncias secular e eclesiástica.

Longe de ser uma compensação ao aviso que declarava incompatível a função de pároco com o exercício da advocacia, privando os homens da Igreja de postular na justiça temporal, a solução encontrada pelos conselheiros, no sentido de que os seculares poderiam advogar em causas espirituais apenas mediante licença do Bispo, estremava ainda mais as características dos foros temporal e eclesiástico, relevando a natureza espiritual das causas submetidas a esta Justiça e deixando preservada de qualquer influência da Igreja a Justiça comum, totalmente controlada pelo Estado.

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Sobre o autor
Rafael Issa Obeid

Procurador do Estado de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel em História e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OBEID, Rafael Issa. A secularização das regras processuais brasileiras no século XIX.: A perda de influência do direito eclesiástico no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3942, 17 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27774. Acesso em: 25 abr. 2024.

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