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Efeitos justrabalhistas da atividade ilícita desempenhada por crianças e adolescentes no Brasil

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17/06/2014 às 18:19
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Milhares de crianças e adolescentes trabalham no Brasil. O Poder Judiciário, que deveria zelar pela garantia dos direitos dessas crianças e adolescentes não o faz, quando se trata de atividade laboral ilícita.

RESUMO: Milhares de crianças e adolescentes, entre cinco e 17 anos, trabalham no Brasil. A maioria delas motivada pela ausência de políticas públicas que lhes garantam o exercício de seus direitos de cidadãos. Assim, tentando obter melhores condições de sobrevivência, muitas dessas crianças e adolescentes acabam atuando também na chamada “economia clandestina”, ou seja, exercendo atividades laborais ilícitas. Nesse contexto, o poder judiciário que deveria zelar pela garantia dos direitos dessas crianças e adolescentes, não o faz, quando deixa de atribuir efeitos justrabalhistas ao exercício de atividade ilícita desempenhada pelas mesmas. É o que se observa da OJ 199 da SDI1, do colendo TST: “É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico.”. Da mesma forma, asseveram diversos doutrinadores, a exemplo de Delgado (2009, p. 472): a ordem jurídica brasileira somente confere validade ao contrato que tenha por objeto lícito. Certo é que, partindo de uma interpretação teleológica e sistematizada da Constituição Federal, Consolidação das Leis Trabalhistas, Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente, e demais legislações correlatas; usando como pano de fundo os princípios da proteção integral à criança e ao adolescente, da dignidade da pessoa humana e do direito à igualdade material, percebe-se o manifesto equívoco dos aludidos entendimentos, quando o executor de tais atividades ilícitas forem crianças e adolescentes do nosso país.

PALAVRAS-CHAVES: trabalho; ilícito; criança.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Da definição legal de “criança” e “adolescente” 3. Do critério legal para o trabalho de criança e adolescente 4. Da atividade ilícita 5. Da proteção integral à criança e ao adolescente 6. Da dignidade da pessoa humana, 7. Do princípio da igualdade,  8. Dos efeitos justrabalhistas da atividade ilícita desempenhada por criança e adolescente 9. Conclusão


1 INTRODUÇÃO

De acordo com o PNAD (Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio), existiam, em 2001, cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos, trabalhando no Brasil. Desse total, em torno de 300 mil tinham entre cinco e nove anos; 2,8 entre milhões entre 10 e 15 anos; e 2,4 milhões entre 16 e 17 anos. [1] O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revela ainda em pesquisa feita em 2003, que quanto mais pobres os adolescentes, menos estudam, mais cedo começam a trabalhar e menos qualificados são os postos de trabalho que ocupam.[2] Em todas as regiões do país verifica-se trabalho desenvolvido por crianças e adolescentes carentes, motivado, sobretudo, pela ausência de políticas públicas que lhes garantam o exercício de seus direitos de cidadão, sendo certo que, tentando obter melhores condições de sobrevivência, muitas dessas crianças acabam atuando também, na chamada “economia clandestina”, tal como: prostituição, venda de produtos piratas, jogos do bicho, dentre outros.

Não obstante tal realidade, que revela a ineficiência e inoperância do poder público quanto à garantia de direitos fundamentais aos seus mais sensíveis e necessitados cidadãos; o poder judiciário, que deveria zelar pela garantia de tais direitos, não o faz, quando deixa de atribuir efeitos justrabalhistas ao exercício de atividade ilícita desempenhada por suas crianças e adolescentes. Explicando melhor: ao obreiro que realiza atividade laboral ilícita, ainda que seja criança ou adolescente, não lhes são conferidos os direitos previstos na Constituição Federal, Consolidação das Leis do Trabalho, Normas Coletivas, dentre outras vigentes no país. Exemplo disso está no entendimento consagrado na OJ 199 da SDI1, do Tribunal Superior do Trabalho, que assim diz: “É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico.”; e nas diversas vozes doutrinárias do nosso país, tal como na do doutrinador Delgado (2009, p. 472): a ordem jurídica brasileira somente confere validade ao contrato que tenha por objeto lícito (art. 145, II, CCB/1916; art. 166, II, CCB/2002).

Tal entendimento parte da idéia de necessidade de adequação do contrato de trabalho aos elementos jurídico-formais enunciados no direito civilista, que são: capacidade das partes, licitude do objeto, forma prescrita ou não vedada por lei; bem como da idéia de que o exercício de atividade ilícita conspira contra o interesse público, afronta bem social relevante, portanto, indigno de receber a valoração do trabalho e, por conseguinte a tutela justrabalhista. (DELGADO, 2009). Cumpre destacar que a atividade laboral ora referida, assim como o termo “trabalho” que será vastamente utilizado, trata-se daquele com observância dos requisitos insculpidos no art. 3º da Consolidação das Leis Trabalhistas, portanto, não eventual, com recebimento de salário e subordinação; logo, aquele trabalho que atrai a aplicação do diploma consolidado, assegurando-se todos os direitos de um contrato de trabalho.

Como dito, referido entendimento tem sido aplicado indistintamente, inclusive quando o executor da atividade ilícita trata-se de criança ou adolescente. Nesse sentido, o presente estudo busca demonstrar o manifesto equívoco da aplicação do aludido entendimento quando o executor da atividade ilícita é criança ou adolescente, face o ordenamento jurídico vigente, partindo de uma interpretação sistematizada da Constituição Federal, Consolidação das Leis Trabalhistas, Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente, e demais legislações correlatas, tendo como pano de fundo os princípios da proteção integral à criança e ao adolescente, da dignidade da pessoa humana e do direito à igualdade material.

Para tanto, convém esclarecer, inicialmente, o que vem a ser “criança” e “adolescente”, bem como apresentar os critérios legais para o desempenho de atividade laboral por aqueles. Em seguida, dada a definição de “atividade ilícita”, expor os princípios e questionamentos que revelarão o porquê de a atividade ilícita desempenhada por crianças e adolescentes merecer a produção dos efeitos justrabalhistas mencionados.


2 DA DEFINIÇÃO LEGAL DE “CRIANÇA” E “ADOLESCENTE”

O Estatuto da Criança e do Adolescente define que crianças e adolescentes são pessoas em processo de desenvolvimento, considerando, para efeitos da lei, um critério objetivo, para defini-los no qual criança é pessoa que tenha até doze anos incompletos de idade e adolescente a pessoa que tenha entre doze e dezoito anos de idade, conforme artigo 2º da Lei 8.069/90.

Assim, a legislação classificou infância e adolescência como estágios do desenvolvimento humano que precedem à idade adulta, nos quais a pessoa passa por transformações psíquicas, biológicas e socioculturais, razão pela qual seria ela, nesses aspectos, mais vulneráveis, portanto, merecedora de tutela especial do estado. (GOULART, 2005)

No mesmo sentido, entende-se por adolescência a fase de transição entre a infância e a idade adulta que envolve grandes mudanças físicas, cognitivas e psicossociais inter-relacionadas, com o começo e fim não claramente marcados, sobretudo nas sociedades ocidentais, podendo durar por aproximadamente uma década. Em geral, considera-se iniciar a adolescência com a puberdade, quando se conduz a maturidade sexual ou fertilidade e terminar em torno dos vinte anos de idade (FELDMAN, 2006)

De modo, o Estatuto dispôs, no artigo 69, que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, observado o respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Portanto, o reconhecimento da condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento humano, passou a ser um princípio jurídico norteador da interpretação e da aplicação da lei, previsto no artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, portanto, objeto de conhecimento do jurista. (Goulart, 2005)

Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento. (grifo meu)

Plácido e Silva (1987, p. 145) define adolescência como “o período que sucede à infância. Inicia-se com a puberdade e acaba com a maioridade. Deriva do latim adolescere, que significa cresce”.


3 DO CRITÉRIO LEGAL PARA O TRABALHO DE CRIANÇA E ADOLESCENTE 

A Constituição Federal estabeleceu no art. 7º, inciso XXXIII os limites acerca do trabalho realizado por crianças e adolescentes, quando definiu a proibição do trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e vedou o exercício de qualquer trabalho aos menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos. A idade mínima de 14 anos para o trabalho seguiu igualmente garantida no art. 227 § 3º, assim como a proteção aos direitos previdenciários e trabalhistas.

Assim sendo, vê-se que a Constituição Federal acabou por estabelecer limites ao trabalho realizados por crianças e adolescentes; ou melhor, às crianças (pessoa que tenha até doze anos incompletos de idade) o vedou totalmente; e aos adolescentes, o permitiu com ressalvas, como consta acima.

A Consolidação das Leis Trabalhistas, por sua vez, seguindo as mesmas diretrizes, reproduziu nos artigos 402 e seguintes tais critérios, de modo que resguardou a proteção ali imposta e ampliou a normativa constitucional no parágrafo único do art. 403, quando assim dispôs: O trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social, e em locais que não permitam a frequencia à escola.

O Estatuto da Criança e do Adolescente também dispôs, no artigo 69, que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, observado o respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.


4 DA ATIVIDADE ILÍCITA

Entende-se por atividade ilícita, para efeitos justrabalhista, o trabalho que compõe um tipo legal penal ou concorre diretamente para ele. (DELGADO, 2009).

Ainda de acordo com o doutrinador, não se deve confundir atividade ilícita com atividade irregular. Para ele, irregular “é o trabalho que se realiza em desrespeito a norma imperativa vedatória do labor em certas circunstâncias ou envolvente de certos tipos de empregado”. (DELGADO, 2009, p. 472)

Extrai-se da conceituação acima, que trabalho irregular seria aquele em que há o desrespeito às normas trabalhistas, a exemplo de manter criança ou adolescente realizando trabalho noturno ou em condições insalubres; enquanto que o trabalho ilícito seria aquele que incide num tipo penal criminal, a exemplo de desmatar área sob proteção ambiental para extração ilegal de madeira, vender produtos piratas, dentre outros.

Esclarecido mais esse ponto, passa-se à análise dos princípios abaixo, que conduzem a uma interpretação mais apurada da norma jurídica, sobretudo através de uma interpretação sistematizada que obedecerá ao seu caráter teleológico e social.

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5 DA PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE

Primeiramente, convém demonstrar que sendo a criança e adolescente pessoa em desenvolvimento, a Constituição Federal adotou a Doutrina de Proteção Integral, consagrada na Convenção das Nações Unidas dos Direitos da Criança, colocando-as como sujeitos de direitos, conforme se vê no artigo 227, in verbis:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

No mesmo dispositivo constitucional, art. 227, § 3º, inciso II, o poder legislativo constituinte, assim determinou:

§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(...)

II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; (grifo meu)

Com isso, o legislador constitucional concedeu proteção especial à criança e ao adolescente, sobretudo, no que tange à garantia dos direitos previdenciários e trabalhistas, sendo certo que quando se fala em proteção especial, está-se a falar em diferenciação de tratamento com relação aos demais trabalhadores, que já gozam da proteção originada do princípio protetivo do direito trabalhista, ou seja, concede a constituição, nesse dispositivo, um plus com relação à criança e ao adolescente trabalhador.

Tal diferenciação de tratamento é também observada no art. 228 da Constituição Federal, quando a mesma eleva a inimputabilidade do menor de 18 anos à condição de princípio constitucional, que assim se lê: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”.

Neste diapasão, o Estatuto da Criança e do Adolescente reproduziu a proposta constitucional de proteção à população infanto-juvenil, quando dispôs no primeiro artigo: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Passando a discorrer, nos artigos subseqüentes, acerca dos direitos fundamentais a que crianças e adolescentes gozam, na qualidade de pessoa humana, tais como: à vida, saúde, liberdade, respeito, dignidade, convivência familiar e comunitária, educação, cultura, esporte, lazer, profissionalização e proteção no trabalho, sem prejuízo da proteção integral a que as mesmas têm direito.

O artigo 18 do mesmo Estatuto previu ainda, a responsabilidade de todos em zelar pela dignidade das crianças e adolescentes, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Além de incumbir à sociedade, à família e ao Estado, no artigo 5º, o dever de protegê-los de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade, exploração e opressão.

O Estatuto também dispõe, no artigo 69, que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, observado o respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Também estabeleceu no artigo 70 que “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.”

Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente materializou a Doutrina da Proteção Integral, trazendo profundas alterações políticas, culturais e jurídicas quanto à questão da criança e do adolescente. No entanto, a principal mudança cultural girou em torno da concepção de criança e adolescente como sujeitos de direitos fundamentais, abrangendo os direitos inerentes a toda e qualquer criança e adolescente e não apenas aquelas em situação de risco social ou em conflito com a lei. [SOARES, 200_]

Diante disso, restou evidente o reconhecimento da condição peculiar da criança e adolescente, de modo que o ordenamento jurídico buscou prover, aos mesmos, total proteção, sobretudo no que tange ao exercício da atividade laboral, colocando-os na condição de detentor de maior proteção e relevância, em relação a um trabalhador comum.


6 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 

Na visão de GOULART, (2005, p. 106) as sociedades democráticas têm como fundamento a dignidade da pessoa humana e objetivam a promoção do bem comum. Segundo o autor, a dignidade da pessoa humana “implica reconhecimento da pessoa na sua tríplice dimensão – ser individual, ser social e ser humano – como sujeitos de direitos fundamentais.”, e o bem comum, (João XXIII apud GOULART, 2005, p. 06) “é o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”

Com isso, o autor demonstrou que os direitos fundamentais devem ser respeitados pela sociedade e pelos poderes públicos, sobretudo os direitos fundamentais sociais, econômicos, coletivos e difusos, que são capazes de garantir ao indivíduo o desenvolvimento integral de sua personalidade e sadia qualidade de vida. (GOULART, 2005)

Tal entendimento também segue identificado nos ensinamentos de DELGADO (2009, p. 77), quando o mesmo assim leciona:

A conquista e afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural -, o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego, normatizado pelo Direito do Trabalho. (grifo meu)

Ou seja, da lição acima fica claro que a dignidade humana materializa-se também através de conquistas do indivíduo que o coloca em situação social capaz de lhe oportunizar condições digna de vida. Faz-se necessário que o indivíduo tenha capacidade econômica e financeira, a fim de se reafirmar como ser social.

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Sobre a autora
Eliude Santana

Advogada desde 02.06.2008.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Eliude. Efeitos justrabalhistas da atividade ilícita desempenhada por crianças e adolescentes no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4003, 17 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28326. Acesso em: 19 abr. 2024.

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