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Aspectos relevantes da "fluid recovery" do artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor

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28/06/2014 às 09:28
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O artigo aborda o instituto da "fluid recovery", disciplinado no artigo 100 do CDC, analisando a sua importância na tutela dos direitos individuais homogêneos e buscando fornecer soluções para os seus aspectos controvertidos.

INTRODUÇÃO

Inicialmente, o presente estudo remete-nos ao surgimento do Estado Democrático de Direito, momento em que emergiram os Direitos de Terceira Geração, chamados direitos de fraternidade ou solidariedade, os quais atribuíram ao Estado a missão de cuidar, além dos direitos individuais, daqueles de cunho coletivo.

A conjuntura acima apontada é resultante da massificação das relações sociais, responsável pelo surgimento de conflitos envolvendo um vasto número de sujeitos, os quais não poderiam ser comportados nas bases do tradicional processo civil brasileiro, individualista, e que impunha um tratamento "atomizado" dos conflitos.

Dessa forma, atendendo aos reclames da nova sociedade, que exigia uma solução processual aos recém surgidos danos de massa, o ordenamento jurídico brasileiro passou a consagrar a Ação Popular - prevista desde a Constituição Federal de 1934, e na Lei n°. 7.417/1965 -, Lei de Ação Civil Pública (Lei n°. 7.347/1985), e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n°. 8.078/1990), diplomas que constituem a chamada jurisdição civil coletiva, ou microssistema de tutela coletiva.

Merece destaque, neste trabalho, o Capítulo II, do Título III, do Código de Defesa do Consumidor, que se destina a regular a Ação Coletiva para a Defesa dos Direitos Individuais Homogêneos, os quais peculiarizam-se por serem direitos essencialmente individuais, tendo, contudo, o ordenamento jurídico brasileiro dispensado-lhes tratamento coletivo, a fim de prestigiar os valores da efetividade do direito material e da economia processual.

Para tanto, são necessárias também técnicas adequadas de execução de tais direitos. Isto porque não é incomum que as vítimas de lesão à direito individual homogêneo se sintam desestimuladas a propor demandas liquidatórias para realizar a quantificação de seus prejuízos individuais, mesmo após obtida uma sentença genérica de procedência na demanda coletiva.

Tal situação se verifica quando a ação coletiva objetiva a tutela de direito individual homogêneo de pouco vulto econômico, se analisado sob o prisma individual de cada titular. Porém, se examinada a situação de vantagem obtida pelo causador do dano com a prática do ilícito, ver-se-á que o proveito econômico assume dimensões acentuadas.

Como exemplos, tem-se vícios de quantidade em produtos destinados ao higiene pessoal, como um sabonete ou creme dental que apresentam quantidade inferior ao indicado na embalagem.

Assim, o instituto da fluid recovery surge para impedir que o desestímulo da vítima para promover a quantificação de seus prejuízos individuais, sobretudo em situações como as descritas acima, acabe por favorecer uma verdadeira indústria do ilícito, ou seja, que os causadores do dano sejam estimulados à prática de condutas que lesam a sociedade, em razão da ineficiência da tutela processual destes direitos.

Este objetivo é concretizado através da liquidação e execução do prejuízo globalmente causado pelo demandado, ou seja, da execução coletiva dos direitos individuais homogêneos, cujo produto será revertido ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos, e destinado a finalidades correlatas com o dano reconhecido na sentença condenatória genérica. E justamente esta execução coletiva que é conhecida no meio jurídico como fluid recovery, ou reparação fluida, consagrada no artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor. 

Daí o enfoque deste trabalho: abordar a relevância da fluid recovery na efetiva prevenção dos danos aos interesses individuais homogêneos, na medida em que o instituto revela o seu caráter punitivo, educativo, impedindo que o ilícito gere situação de vantagem para o causador do dano, em detrimento da coletividade que o suporta.

Demonstra-se, assim, a importância deste estudo, em que se busca, através de pesquisa doutrinária, alcançar soluções para os aspectos controvertidos da reparação fluida, como a natureza do prazo ânuo, previsto no artigo 100, CDC, o risco de bis in idem e, principalmente, quais seriam os critérios para a apuração do quantum devido, questões muitas vezes apontadas como obstáculos para a aplicabilidade da fluid recovery ainda atualmente.


1. O QUE É FLUID RECOVERY                                       

O instituto processual em questão, reconhecido no meio jurídico como fluid recovery, ou reparação fluida, encontra-se previsto no artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor, que assim dispõe:

"Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.

Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei n.° 7.347, de 24 de julho de 1985".

A fluid recovery situa-se entre as formas de execução da sentença condenatória que proclama direitos individuais homogêneos, constituindo o único tipo de execução genuinamente coletiva desta espécie de direitos, em contraposição às formas de execução previstas nos artigos 97 e 98 do CDC, as quais aludem à reparação individual dos prejuízos sofridos pela própria vítima ou seus sucessores.

Com efeito, o referido instrumento consiste numa liquidação / execução verdadeiramente coletiva, pois destina-se a apurar o valor devido à vítimas indeterminadas (aquelas que não promoveram a liquidação de seus prejuízos individuais), o qual será revertido ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos (DIDIER, 2009, p. 377).

A fluid recovery será aplicada, portanto, após frustrado o ressarcimento individual dos danos reconhecidos na sentença condenatória genérica, momento em que o artigo 100 do CDC, autoriza que os entes do artigo 82, do mesmo diploma legal, postulem a reparação coletiva destes danos causados aos consumidores, cujos valores, repisa-se, serão destinados ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. Por esta razão, Araújo Filho (2002, p. 161) prefere nomeá-la de "liquidação e execução gerais, ou genéricas".

Pontue-se que a reparação fluida originou-se na jurisprudência norte-americana, e não possuía o escopo de ressarcir individualmente as vítimas do dano de massa, na medida em que o seu produto era destinado para a tutela geral do meio ambiente ou dos consumidores lesados. Isto se deu com a finalidade de contornar, nas ações de classe, as dificuldades "na identificação das referidas pessoas; de distribuição entre elas da arrecadação; do uso do eventual resíduo não reclamado pelos membros da coletividade" (GRINOVER, 2011, p. 163).

Considerando a possibilidade de os contemplados pela sentença condenatória genérica não buscarem, em número compatível com a gravidade do dano, a quantificação de seus prejuízos individuais, por meio da propositura das demandas de liquidação, o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro (Lei n°. 8.078/1990), inspirado no modelo norte-americano, instituiu a fluid recovery, sobretudo para os casos em que "o dano globalmente causado pode ser considerável, mas de pouca ou nenhuma importância o prejuízo sofrido por cada consumidor lesado" (GRINOVER, 2011, p. 163).

Nessa senda, Benjamin (2010, p. 1459) elucida que "a efetividade dos direitos do consumidor, em matéria de ações coletivas, é de ser atingida tanto pela disposição de instrumentos eficientes para provocação da demanda, quanto pelas possibilidades de execução da sentença a ser prolatada nesta ação".

Dessa forma, pode ocorrer que um dano seja representativo, se analisado em conjunto, mas, individualmente, possua proporções muito pequenas, havendo, por isso, um desestímulo, por parte das vítimas ou seus sucessores, na quantificação dos prejuízos individuais. Tais razões, segundo Benjamin (2010, p. 1459), no mesmo sentido das referidas lições de Ada Pellegrini Grinover, justificam a previsão da reparação fluida em nosso ordenamento jurídico.

Em outras palavras, a fluid recovery foi idealizada para "contornar uma dificuldade típica das ações coletivas em defesa dos consumidores, quando a lesão é de pequeno valor em relação a cada um dos lesados, mas de valor total significativo, quando considerado o número de pessoas atingidas pela lesão" (ZAVASCKI, 2007, p. 205).

Nesse diapasão, se fazem pertinentes as considerações de ANTÔNIO HERMAN V. BENJAMIN, in litteris:

"Esta solução é extremamente representativa do espírito do CDC, e introduz entre nós o que o direito norte-americano se conhece como fluid recovery, ou reparação fluida, pela qual, ao mesmo tempo em que se privilegia a tutela coletiva como instrumento de reparação dos danos causados individualmente para a massa de consumidores, na hipótese destes não a reclamarem na medida do seu prejuízo, permite sua conversão para um Fundo, cujo objetivo final é reverter em favor dos interesses lesados" (Benjamin; Antônio Herman V.. 2010, p. 1459).

Ressalte-se que o desestímulo na promoção das liquidações individuais resulta não somente da pequena motivação emocional ou psicológica da vítima, tendo em vista o baixo valor a ser obtido ao final do processo. Mais que isso: segundo Araújo Filho (2002, p. 159), pode ocorrer que o custo da demanda individual não compense a propositura da ação, sendo, em muitos casos, maior que a reparação pleiteada, tornando-se, assim, proibitiva a habilitação das vítimas contempladas pela sentença condenatória genérica.

Estas situações, nas quais o custo do processo de liquidação / execução não seria compensado pelo montante reparatório obtido, são muito comuns em sede de Direito do Consumidor. Por exemplo, tem-se o vício de quantidade em produtos de baixo valor, como certo creme dental ou sabonete (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 159).

Deste modo, adquire relevo a figura da fluid recovery, a fim de evitar que a tutela dos direitos individuais homogêneos se torne ineficaz, diante da inércia de seus titulares em promover as liquidações individuais. Busca-se, assim, impedir que determinadas condutas permaneçam imunes de punição, o que estimularia a prática do ilícito, uma vez que este compensaria economicamente em relação à conduta lícita. Ou seja, a reparação fluida possui a finalidade precípua de proteger a sociedade de uma verdadeira indústria do ilícito.

Importante asseverar que a demanda que eventualmente dá origem à ação do artigo 100 do CDC, além de veicular pretensão de tutela de direito individual homogêneo, deve culminar em obrigação de pagar quantia, conforme o artigo 95 do aludido diploma legal, que alude à "responsabilidade do réu pelos danos causados". Assim não poderá ensejar uma fluid recovery a demanda individual homogênea que veicula tutela de uma obrigação específica (fazer ou não fazer), ou aquela que visa debelar uma crise de certeza ou de situação, com provimento final declaratório ou constitutivo (RODRIGUES, 2004, p. 326).

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Também não ensejarão a demanda de reparação fluida as liquidações individuais oriundas da coisa julgada in utilibus, prevista no artigo 103, § 3°, segunda parte, do CDC, uma vez que tal figura advém de ação que versa sobre direitos essencialmente coletivos (difusos ou coletivos strcto sensu) (RODRIGUES, 2004, p. 326).

No que concerne às espécies de liquidação, tem-se que a demanda de reparação fluida poderá ser realizada por arbitramento, na hipótese de já estarem estabelecidos, na sentença condenatória genérica, elementos suficientes para a quantificação do valor devido, sendo suficiente a nomeação de um perito para proceder a respectiva avaliação. Ou então, como é mais comum, pode ser que haja a necessidade de comprovação de fato novos, sendo, portanto, necessário que a liquidação se processe por artigos (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 162).

Em sentido contrário ao preconizado por Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, Venturi (2000, p. 156 e seguintes) defende ser incabível a liquidação por arbitramento, posto que, muito embora não se verifique a necessidade de comprovação do nexo causal entre o dano e a conduta praticada pelo demandado, a qual foi objeto da sentença condenatória genérica, "certamente a fixação do quantum debeatur não tem lugar no âmbito da referida sentença, sendo por esta propositadamente abstraído".

Quanto a este ponto, conclui-se no mesmo sentido de Luiz Paulo da Silva Araújo Filho: na hipótese de existirem na sentença condenatória genérica elementos suficientes para a quantificação da fluid recovery, a liquidação deverá ser processada por arbitramento, já que não haverá necessidade de se provar fatos novos, sendo, pois, pela sistemática adotada pelo Código de Processo Civil, incabível a liquidação por artigos, reservada somente para os casos que necessitam da comprovação de fatos novos.

Aliás, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido em diversas ocasiões que, caso possua elementos suficientes, o magistrado poderá quantificar a fluid recovery na própria sentença condenatória genérica, não havendo que se falar, nesta hipótese, em julgamento ultra petita (GRINOVER, 2011, p. 152).

Insta mencionar, por fim, que o procedimento de liquidação da fluid recovery será iniciado por provocação dos legitimados do artigo 82 do CDC, perante o juízo da ação condenatória, nos termos do artigo 98, § 2°, inciso II, do aludido diploma normativo. Ademais, ao juiz "é reservado um papel ativo por ocasião da liquidação, devendo diligenciar para que se apresentem durante o processo todos os elementos indispensáveis à justa fixação do quantum devido" (VENTURI, 2000, p. 157).


2. DO CARÁTER "EVENTUAL" E "RESIDUAL" DA FLUID RECOVERY

Para a compreensão do assunto abordado no presente item, deve-se ter em mente que a sentença condenatória genérica do artigo 95, CDC, pode ser executada tanto individualmente, nos moldes dos artigos 97 e 98 do diploma consumerista, quanto coletivamente, através da fluid recovery, demanda que "apresenta-se como subsidiária e residual às liquidações individuais, já que depende do respeito às exigências do caput do art. 100" (RODRIGUES, 2004, p. 327).

As exigências acima referidas consistem basicamente no decurso do prazo de 01 (um) ano, a contar do trânsito em julgado da sentença condenatória genérica, e, sucessivamente, que, neste momento, o número de liquidações seja incompatível com a gravidade do dano (RODRIGUES, 2004, p. 327 e seguintes).

A reparação fluida será eventual pois a primeira condição para a sua existência é que tenha havido uma demanda versando sobre a responsabilidade civil por danos causados a direito individual homogêneo, e que esta ação tenha gerado uma sentença condenatória genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados (RODRIGUES, 2004, p. 328).

Por sua vez, o caráter residual refere-se à necessidade de que, após um ano do trânsito em julgado da sentença condenatória genérica, o número de liquidações individuais seja incompatível com a gravidade do dano, de forma que o demandado possa obter alguma vantagem patrimonial com a prática da conduta danosa (RODRIGUES, 2004, p. 328 e seguintes).

Deste modo, havendo compatibilidade entre o número de habilitações e a gravidade do dano, não nascerá a possibilidade de propositura da fluid recovery, em atenção ao seu caráter residual.

Importante asseverar que, em razão dos aspectos acima ressaltados, a fluid recovery é uma demanda subsidiária em relação às execuções individuais promovidas pelas vítimas ou seus sucessores (artigos 97 e 98 do CDC), para as quais, afinal, foram idealizadas as ações de classe para a reparação das lesões causadas aos direitos individuais homogêneos.

É o que se infere do seguinte trecho da obra de ELTON VENTURI, verbatim:

"As ações cíveis de condenação à reparação de danos individualmente sofridos por vítimas e sucessores, idealizadas em nosso ordenamento pelo art. 91 do CDC, foram concebidas, precipuamente, para disponibilizar aos lesados por evento comum um instrumento célere e efetivo para a justa recomposição patrimonial individual. Assim, lógica a prevalência das execuções individuais sobre a de cunho coletivo, bem como a previsão do microssistema de tutela dos direitos transindividuais da legitimação individual ou, até mesmo, coletiva para o processamento das execuções a título singular" (VENTURI; Elton. 2000, p. 147).

Consequentemente, por se tratar a fluid recovery de demanda subsidiária, adverte Grinover (2011, p. 164) que é incorreto o requerimento de recolhimento direto da indenização ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, sendo, portanto, censurável o acolhimento deste pleito, uma vez que "o pedido indenizatório, em casos como tais, inscreve-se na tutela de interesses individuais homogêneos, de modo que o recolhimento ao Fundo prejudica o direito às indenizações pessoais dos consumidores que quiserem habilitar-se à reparação individual".

Portanto, em respeito à subsidiariedade da fluid recovery, adequado seria requerer a indenização pelos prejuízos individuais por dano causado aos direitos individuais homogêneos, pleiteando a reversão do resíduo não reclamado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, somente se o número de habilitações for incompatível com a gravidade do dano (GRINOVER, 2011, p. 164).

Por outro lado, não é necessária, nas ações de classe, a formulação de pedido para que a liquidação e execução sejam processadas na forma do artigo 100 do CDC, pois a fluid recovery é instituto que se processa ope legis, como decorrência legal da ineficácia da reparação dos danos individuais (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 161).


3. OS REQUISITOS DA FLUID RECOVERY

3.1. Prazo ânuo

O artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor, proclama que "decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida". Infere-se, daí, o primeiro requisito para o cabimento da fluid recovery: o prazo ânuo.

O prazo em questão não possui natureza decadencial para a propositura da ação de liquidação dos prejuízos individuais, tampouco é prescricional para a perda do 'direito' proclamado na sentença de que trata o artigo 95 do CDC (RODRIGUES, 2004, p. 330).

Isto porque, se lhe atribuída natureza decadencial ou prescricional, deveria reconhecer-se uma incoerência no Código de Defesa do Consumidor, que, de um lado, estimula a demanda coletiva individual homogênea (artigos 94, 95, 103, inciso III, e 104), e, por outro, estabelece prazo prescricional mais exíguo do que aquele reservado à propositura de ação individual, que é de 05 (cinco) anos, segundo o artigo 27, do diploma consumerista (RODRIGUES, 2004, p. 330).

Aliás, segundo Rodrigues (2004, p. 330), é destituída de sentido a interpretação que dá ao prazo do artigo 100 do CDC, natureza decadencial ou prescricional, já que ela admite que a parte processual do Código de Defesa do Consumidor contrarie os seus próprios dispositivos que abordam especificamente a decadência e prescrição (artigos 26 e 27), os quais estabelecem prazos mais amplos que o exíguo interregno de 01 (um) ano.

Com efeito, o prazo em apreço trata-se de condição ou termo para a existência e tutela de um direito difuso, pois ultrapassado este período de 01 (um) ano, e desde que presentes as demais condições - sentença condenatória genérica impondo obrigação de pagar em demanda individual homogênea e número de liquidações incompatível com a gravidade do dano -, qualquer legitimado do artigo 82 do CDC, poderá propor a fluid recovery, cujo produto será destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, conforme determina o parágrafo único do artigo 100 do aludido diploma legal (RODRIGUES, 2004, p. 330).

Assim, superado este prazo, surge uma espécie de legitimação ordinária superveniente dos entes do artigo 82 do CDC para a propositura da demanda de reparação fluida (MANCUSO, 1994, p. 122).

Portanto, não possuindo o prazo ânuo natureza decadencial ou prescricional, após o seu decurso, evidentemente, não ficam as vítimas impedidas de habilitar-se, a fim de promover a liquidação / execução de seus danos individuais (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 161).

Não se olvida, entretanto, que as liquidações concluídas ou em curso devam influir na quantificação da fluid recovery (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 161).

Em suma, o prazo ora analisado constitui um parâmetro, que norteia os legitimados do artigo 82, CDC, na quantificação da reparação fluida, diante da inércia ou do reduzido número de titulares que recorreram à liquidação / execução individual (VENTURI, 2000, p. 137).

Sendo assim, ainda que ultrapassado o prazo ânuo, e mesmo que já em andamento o procedimento da fluid recovery, não se pode obstar a propositura de novas habilitações individuais (VENTURI, 2000, p. 137).

Em sentido diverso ao preconizado pela doutrina majoritária, Zavascki (2007, p. 206) defende que o prazo ao qual alude o artigo 100 do CDC, é decadencial, de modo que, uma vez transcorrido, "o direito de executar se transfere aos legitimados como representantes do Fundo e não seria sustentável considerar como ainda subsistente, nessas circunstâncias, o mesmo direito em favor do titular individual que até então não se habilitou". Conclui o apontado autor que "isso abriria a possibilidade de dupla execução do mesmo crédito".

Contudo, pelas razões acima mencionadas, adota-se no presente estudo a posição majoritária, de que o prazo em apreço não é decadencial, tampouco prescricional, mas, trata-se de condição ou termo para a existência e tutela de um direito difuso, conforme ensina-nos o professor Marcelo Abelha Rodrigues.

Ademais, entende-se que, ao contrário do defendido pelo Ministro Teori Albino Zavascki, não haveria uma dupla execução do mesmo crédito, posto que as indenizações individuais e a fluid recovery possuem naturezas distintas: as primeiras, destinadas a reparar individualmente os danos aos direitos individuais homogêneos, e a segunda, em linhas gerais, possui a finalidade de tutelar os direitos difusos correlatos com a classe lesionada, na medida em que seu produto é destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, conforme se verá a seguir (VENTURI, 2000, p. 155).

Superada a questão atinente à natureza do prazo do artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor, é importante destacar que o referido dispositivo normativo restou vago ao não estabelecer o termo inicial da contagem do aludido prazo (RODRIGUES, 2004, p. 328).

Assim, a fim de evitar a insegurança que surge da indeterminação do termo a quo da reparação fluida, Rodrigues (2004, p. 330) defende que o prazo deverá ser contado a partir do 'trânsito em julgado' da sentença condenatória genérica que reconheceu a lesão ao direito individual homogêneo.

Isto porque a comparação entre a gravidade do dano e o número de habilitações já é tarefa de alta complexidade, e, mais ainda seria se ela fosse realizada levando-se em conta as liquidações provisórias da sentença do artigo 95, CDC. Ou seja, o 'trânsito em julgado'  da sentença condenatória genérica foi convencionado como termo inicial da contagem do prazo ânuo a fim de evitar maiores dificuldades e inseguranças neste árduo processo de verificação da compatibilidade do número de habilitações com a gravidade do dano (RODRIGUES, 2004, p. 328).

Para que seja deflagrada a contagem do prazo ânuo, entretanto, não basta que a sentença condenatória genérica transite em julgado: é necessária, ainda, a publicação de edital divulgando a ocorrência do trânsito em julgado, aplicando-se, por analogia, a regra do artigo 94 do Código de Defesa do Consumidor (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 161).

Dessa feita, "a publicação do edital constitui, por conseguinte, o dies a quo do prazo, que, por ser ânuo é 'contado do dia do inicio ao dia e mês correspondente do ano seguinte' (art. 1° da Lei n. 810/49). Incide aqui o art. 240, parágrafo único, do CPC" (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 162).

Caso a fluid recovery seja proposta logo após o escoamento do prazo de 01 (um) ano, pode ocorrer que esta demanda transite em julgado antes mesmo de as liquidações individuais terem sido propostas ou chegado ao fim, criando, na visão de Rodrigues (2004, p. 330), "uma esdrúxula situação em que as sobras (resíduo) foram apuradas antes mesmo de o principal ter sido liquidado ou satisfeito".

Diante disso, a doutrina alarmou para o risco de haver bis in idem, ou seja, de o demandado estar respondendo duas vezes pelo mesmo dano.

Com efeito, seria melhor que o prazo para o exercício da fluid recovery fosse fixado para após do lapso prescricional do direito reconhecido na sentença condenatória genérica, permitindo, assim, mais segurança ao julgador no momento da fixação do quantum que será destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, pois já se poderia afirmar com exatidão o número de liquidações propostas, em curso ou já pagas (RODRIGUES, 2004, p. 330).

Somente assim, na visão de Rodrigues (2004, p. 331), haveria "um juízo seguro de que todo o montante reclamado seria aquele já conhecido (já pago ou que estivesse sendo reclamado) e mais nenhum, justamente para que a partir daí se permitisse fazer um juízo de valor entre o que foi reclamado e o ano causado".

Todavia, não há que se falar em bis in idem entre as indenizações individuais e a fluid recovery, posto que,  conforme já abordado anteriormente, ambas possuem natureza e finalidades diversas: as primeiras destinadas a reparar os danos aos direitos individuais homogêneos reconhecidos na sentença condenatória genérica, e a segunda, em linhas gerais, possui a finalidade de tutelar direitos difusos correlatos com a classe lesada, sendo o seu produto destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (VENTURI, 2000, p. 155).

Portanto, nos dizeres de Gonçalves (2005, p. 424), "trata-se de hipóteses distintas, com fins distintos, e que, portanto, não se confundem".

3.2. Número de liquidações incompatível com a gravidade do dano

O segundo requisito para o cabimento da fluid recovery também extrai-se da redação do caput do artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor, e consiste no número de liquidações individuais ("habilitações") incompatível com a gravidade do dano.

Trata-se de uma condição para que os legitimados do artigo 82, CDC, possam promover a liquidação e execução coletiva da sentença condenatória genérica, nos moldes do artigo 100 do referido diploma normativo.

Tal condição compreende um conceito vago, indeterminado, que somente poderá ser integrado pelo juiz diante do caso concreto, momento em que deverá aferir quantas liquidações individuais deveriam ter sido promovidas, a fim de que este número possa ser considerado compatível com a gravidade do dano (PIZZOL, 1998, p. 128).

Deve-se reconhecer, contudo, que, ao inserir este conceito vago no artigo 100 do CDC, o legislador criou um problema de difícil superação, que deverá ser solucionado segundo o "prudente arbítrio do juiz" (PIZZOL, 1998, p. 128).

Este problema consiste, basicamente, na dificuldade de se mensurar se o número de liquidações é, ou não, compatível com a gravidade do dano, e, em consequência, de saber o valor a ser pleiteado em sede de reparação fluida. Isto resulta do equívoco do legislador em fixar o prazo de 01 (um) ano como termo inicial para a propositura da fluid recovery, pois, nesse prazo, não é possível se obter elementos que assegurem que o quantum desembolsado pelo demandado corresponde ao dano causado (RODRIGUES, 2004, p. 332 e seguintes).

Nessa senda, é importante lembrar que a intenção do legislador era de que houvesse a maior coincidência possível entre o dano ocasionado pelo demandado e a quantia paga a cada uma das vítimas, criando, para isso, o instituto da fluid recovery, de caráter residual, para as hipóteses em que o montante pago individualmente às vítimas fosse inferior ao dano causado (RODRIGUES, 2004, p. 332).

Assim, surge o problema da apuração do "quantum residualmente devido".

Com efeito, repisa-se que o artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor valeu-se de conceitos indeterminados, de modo que o juiz ostentará amplos poderes na aplicação da norma, o que não deve ser confundido, entretanto, com discricionariedade. Dessa forma, após analisar a compatibilidade do número de habilitações com a gravidade do dano, deve o juiz fundamentar os motivos que o levaram a formar a sua convicção, pelo sim ou pelo não (ARAÚJO FILHO, 2002, p. 162).

Conclui, assim, Araújo Filho (2002, p. 162), que, ao proceder esta verificação, "certo é que o bom senso do juiz (também chamado de arbitrio judicis ou prudente arbítrio do juiz), assume exacerbado valor, e, por isso, mostra-se ainda mais necessária a correta motivação da decisão".

Tendo em vista a ausência de parâmetros legais, Rodrigues (2004, p. 332 e seguintes) sugere que, para se apurar a gravidade do dano causado, poderia ser utilizado como critério o proveito econômico obtido pelo demandado. Isto porque, nos dizeres do apontado autor, "seria impossível imaginar quanto seria o prejuízo de pessoas que nem se sabe quais são", afinal, "sendo individual, os prejuízos de cada pessoa (morais e materiais) só ela mesma pode fornecer elementos para a sua mensuração".

Assim, a fluid recovery não possui como objeto a apuração dos prejuízos sofridos pelas vítimas, mas sim a quantificação dos danos, ou melhor, do prejuízo globalmente causado, momento em que, segundo Grinover (2011, p. 164), avulta a "defining function [do juiz] e seus poderes se tornam mais amplos"

Neste sentido, elucida ELTON VENTURI, in verbis:

"Respeitadas as posições em contrário, entendemos não se resumir a fluid recovery do sistema brasileiro à soma das indenizações individuais não cobradas pelas vítimas ou seus sucessores, possuindo escopo autônomo: há que se mensurar, no âmbito da liquidação coletiva da sentença condenatória genérica, valor estimativo seja do dano metaindividual ocasionado, seja do ganho indevido que obteve o agente responsabilizado pelo decreto condenatório, para ser destinado ao Fundo da LACP" (VENTURI; Elton. 2000, p. 146 e seguinte).

Sobreleva ressaltar, no que tange ao pensamento acima transcrito do professor Elton Venturi, que o quantum apurado na fluid recovery não deve representar a soma dos prejuízos individuais de cada vítima, devendo, pois, tal quantia ser mensurada pelo juiz com base no valor estimativo do dano metaindividual ou do proveito obtido pelo demandado com a prática da conduta danosa.

Apesar disso, havendo concomitância entre a fluid recovery e liquidações pelos danos individualmente sofridos, as indenizações pessoais apuradas, já pagas ou em andamento, deverão ser levadas em conta pelo juiz, para fins de compensação (GRINOVER, 2011, p. 164 e seguintes).

Em resumo, conclui-se, que a quantificação da fluid recovery não se trata propriamente de um problema, mas, sim, de uma tarefa árdua, que exige grande esforço do julgador, na medida em que a norma trabalha com conceitos indeterminados, a serem preenchidos por ele diante do caso concreto.

Vê-se, assim, que a despeito da ausência de critérios apontados pela lei, para a finalidade de quantificação da reparação fluida, a doutrina aponta parâmetros consistentes para tal mister, como o proveito econômico obtido pelo demandado (RODRIGUES, 2004, p. 332 e seguintes) ou mesmo o valor estimativo do dano metaindividual (VENTURI, 2000, p. 146 e seguintes).

Desta forma, tendo em vista que a fluid recovery não deverá representar a soma das indenizações individuais não reclamadas, posto que, com efeito, tal quantificação importaria em um problema de difícil superação, devendo, portanto, serem invocados os critérios acima mencionados, percebe-se que o instituto em questão consistiu em uma verdadeira revolução no conceito de responsabilidade civil (GRINOVER, 2011, p. 165).

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Sobre a autora
Giuliana Spano

Advogada.<br>Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes.<br>Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SPANO, Giuliana. Aspectos relevantes da "fluid recovery" do artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4014, 28 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28465. Acesso em: 20 abr. 2024.

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