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Tributação municipal: a progressividade e eficácia do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana

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02/08/2014 às 14:18
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Analisa-se a eficácia do IPTU progressivo no tempo como instrumento indutor da efetivação da função social da propriedade.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a eficácia do instrumento IPTU progressivo no tempo, contido na Constituição Federal de 1988, incorporado ao Estatuto das Cidades, devendo ser regulamentado por meio de Planos Diretores Municipais, como instrumento indutor da efetivação da função social da propriedade. Este ensaio utiliza o método indutivo através da técnica de levantamento de dados e análise de obras que tratam do tema, efetuando-se pesquisas em livros, artigos, internet, etc. A ideia central do IPTU progressivo é punir com este tributo de valor crescente, ano a ano, os proprietários de terrenos cuja ociosidade ou mal aproveitamento acarrete prejuízo à população. Aplica-se aos proprietários que não atenderam à notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. O objetivo é estimular a utilização socialmente justa e adequada desses imóveis. A eficácia na aplicação do IPTU progressivo no tempo depende de um corpo técnico capaz de avaliar de forma eficiente os paramentos de utilização, o planejamento por parte dos administradores municipais e informações precisas e atualizadas sobre aspectos físicos e espaciais do município. Entretanto, percebe-se no presente trabalho que não há documentação das experiências práticas quanto à implementação e regulamentação que comprove a eficácia do IPTU progressivo induzindo na função social da propriedade.

Palavras chave: Função social, IPTU, eficácia.

Sumário: Introdução. 1 CAPÍTULO I - A PROPRIEDADE. 1.1 Definição. 1.2 Histórico da Propriedade. 1.3 A Função Social. 2 CAPÍTULO II - O IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE PREDIAL E TERRITORIAL URBANA. 2.1 As Principais Características. 2.2 A Extrafiscalidade e a Progressividade. 2.3 A Eficácia do IPTU Progressivo Induzindo na Função Social da Propriedade. Conclusões. Referências.


INTRODUÇÃO

A Propriedade é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988 - CRFB/88, porém, não é absoluto. A própria Carta Magna relativiza o direito de propriedade submetendo-o ao cumprimento da função social.

A função social da propriedade se apresenta como um instrumento para equilibrar a atividade econômica e também para sancionar o proprietário que a utiliza sem atender ao interesse social.

Desta forma, para fins de efetivação, a própria Constituição elenca meios para induzir o cumprimento da função social da propriedade dentre os quais o IPTU progressivo.

A ideia central do IPTU progressivo é punir com este tributo de valor crescente, ano a ano, os proprietários de terrenos cuja ociosidade ou mal aproveitamento acarrete prejuízo à população. Aplica-se aos proprietários que não atenderam à notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.

Neste contexto, o presente trabalho analisa a eficácia do IPTU progressivo extrafiscal como uma das formas de indução para o cumprimento da função social da propriedade urbana.

Tal tema tem importância na medida em que abrange a efetivação de direitos sociais, uma vez que um direito dogmatizado não terá qualquer valor se não houver uma forma de compelir sua aplicação. No entanto, é oportuno ressaltar que a efetivação das normas deve ser feita de forma proporcional e dentro dos limites constitucionais e legais, sem infringir a sistemática jurídica ou institutos de direito já consolidados.

Destarte, o objetivo deste ensaio é examinar as normas que preveem a função social da propriedade, demonstrando a efetivação de tal direito por intermédio do IPTU dentre as normas focaliza-se a CRFB/88 e o Estatuto das Cidades. Ressaltando que a interferência estatal na propriedade urbana através de alíquotas progressivas se dá pela má utilização da propriedade ou ociosidade, perdurando até que se alcance sua efetiva função social.

Assim, a grande problemática é saber se, nos moldes atuais, o IPTU progressivo no tempo é eficaz.

Na atual pesquisa será utilizado o método indutivo através da técnica de levantamento de dados e análise de obras que tratam do tema, efetuando-se pesquisas em livros, artigos, internet, etc.

Assim, para atingir o desiderato da pesquisa em tela o presente estudo está dividido em dois capítulos.

No capítulo primeiro, é estudada a propriedade, bem como o seu histórico e a sua função social. No histórico, mostra-se a evolução do entendimento de propriedade desde as civilizações antigas até idade moderna. Já no que diz respeito à função social discutiu-se acerca da evolução do instituto no tempo, demonstrando-se que hoje ela se apresenta como um instrumento para equilibrar a atividade econômica e ainda para sancionar aquele que a utiliza a propriedade sem atender ao interesse social.

No capítulo segundo, enfoca-se no estudo do IPTU que é um tributo da espécie imposto de competência dos municípios que recai sobre a propriedade predial e territorial urbana, tendo como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel, e tem como base de cálculo seu valor venal. Ademais, salienta-se que o IPTU para os fins do cumprimento da função social da propriedade é extrafiscal e progressivo. Ainda, no capítulo dois, demonstra-se os pressupostos para o estabelecimento legal da progressividade do IPTU para o cumprimento da função social e se tal instituto possui eficácia.


1 CAPÍTULO I - A PROPRIEDADE

1.1 Definição

No presente capítulo apresenta-se os seguintes pontos: o histórico da propriedade e a função social da propriedade.

Porém, antes de iniciar os pontos do capítulo seria de bom alvitre verificarmos o sentido etimológico do termo "propriedade".

Conforme DINIZ:

“Para uns o vocábulo vem do latim proprieta, derivado de proprius, designando o que pertence a uma pessoa. Assim, a propriedade indicaria, numa acepção ampla, toda relação jurídica de apropriação de um certo bem corpóreo ou incorpóreo. Outros entendem que o termo "propriedade" é oriundo de domare, significando sujeitar ou dominar, correspondendo a ideia de domus, casa em que o senhor da casa se denomina dominius” [1].

Para o Direito Civil no grande universo do Direito das Coisas, propriedade pode ser definida como a situação jurídica consistente em uma relação dinâmica e complexa entre uma pessoa, o dono, e a coletividade, em virtude da qual são assegurados àquele os direitos exclusivos de usar, fruir, dispor e reivindicar um bem, respeitados os direitos da coletividade [2].

Mas aí se manifesta uma visão muito parcial do regime jurídico do regime jurídico da propriedade: uma perspectiva civilista que não alcança a complexidade do tema, que é resultante de um complexo de normas de Direito Público e de Direito Privado [3]. Ademais, a propriedade para o Direito Constitucional é mais abrangente que o conceito do direito civil. “Assim, embora integre o conceito de propriedade a definição constante da legislação civil, é certo que a garantia constitucional da propriedade abrange não só os bens móveis e imóveis, mas também outros valores patrimoniais” [4].

Outrossim, a propriedade a partir da CRFB/88 possui status de direito fundamental, desde que cumprida sua função social. A ordem constitucional jurídica reconheceu o exercício da propriedade no interesse do titular e também no interesse coletivo da sociedade, afastando-se da visão individualista e patrimonialista.

Neste contexto, vale destacar que não apenas a doutrina constitucionalista, mas também autores civilistas enfatizam a relevância da função social da propriedade e contribuem para uma interpretação mais perfeita da nossa Carta Magna, como se observa na explanação de Gustavo Tepedino:

“A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos fins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade” [5].

A par disso, a propriedade como um direito garantido pela Constituição Federal de 1988 não se reveste de caráter absoluto, havendo limites ao seu uso, porque deve cumprir a função social a que lhe é inerente.           

1.2 Histórico da Propriedade

No início das civilizações as formas originárias da propriedade tinham uma feição comunitária, por exemplo, entre indígenas brasileiros, ao tempo da descoberta do Brasil, havia domínio comum das coisas úteis, entre os que habitavam a mesma oca, individualizando-se, tão somente, a propriedade de certos móveis, como redes, armas e utensílios de uso próprio. O solo, por sua vez, era pertencente a toda tribo e isso, temporariamente, porque os índios não se fixavam na terra, mudavam de cinco em cinco anos [6].

Mas é no Direito Romano que se encontra a raiz histórica do direito de propriedade. É difícil precisar o momento em que surge, na sociedade romana, a primeira forma de propriedade territorial. Não é muito clara nas fontes a forma de propriedade comum na primitiva Roma. A noção de propriedade imobiliária individual, segundo algumas fontes, data à Lei das XII Tábuas. Nesse primeiro período do Direito Romano, o indivíduo recebia uma porção de terra que devia cultivar, mas, uma vez terminada a colheita, a terra voltava a ser coletiva. Paulatinamente, fixa-se o costume de conceder sempre a mesma porção de terra às mesmas pessoas ano após ano. Nesse sentido, arraiga-se no espírito romano a propriedade individual e perpétua [7].

No Direito Romano a propriedade era um direito absoluto e exclusivo, pois ao proprietário era permitido utilizar a coisa como bem entendesse, podendo até destruí-la sem que houvesse qualquer impedimento legal. O que acontecia com o imóvel e os danos que sua destruição acarretaria à sociedade como um todo não era objeto de tutela por parte do Estado. A propriedade seria, portanto, o direito ou faculdade que liga o homem a uma coisa, direito que possibilita a seu titular extrair da coisa toda a utilidade que possa lhe proporcionar [8].

Tal modelo de propriedade apresenta diferentes traços estruturais, quais sejam: a) É anterior à ordem jurídica positiva, pois decorre da própria natureza do homem (é um direito natural); b) É um direito absoluto porque não está sujeita a limites externos, assim, seu exercício não depende de qualquer condicionamento ou autorização externa; c) É um direito pleno, que seja, o titular é livre para dar a destinação que desejar ao bem, pode até mesmo optar por não atribui qualquer funcionalidade econômica ou social; d) É um direito tendencialmente perpétuo e essencialmente privado [9].

Em artigo sobre o tema Comparato assevera a importância da propriedade privada sobre a civilização greco-romana que ao lado da família e da religião doméstica teciam a organização institucional daquela sociedade.

“Na organização da cidade antiga, aliás, as instituições que diziam respeito à vida privada eram mais sólidas e estáveis que as formas de governo, e distinguiam, mais do que estas, uma cidade da outra [...] Seja como for, o núcleo essencial da propriedade, em toda a evolução do Direito privado ocidental, sempre foi o de um poder jurídico soberano e exclusivo de um sujeito de direito sobre uma coisa determinada” [10].

Na Idade Média, existiu uma dualidade de sujeitos: o dono e o que explorava economicamente o imóvel, pagando ao primeiro pelo seu uso. Havia todo um sistema hereditário para garantir que o domínio permanecesse numa família de tal forma que esta não perdesse o seu poder no contexto do sistema político [11].

Neste sentido afirma Barreto [12]:

“Na Idade Média, a manifestação do direito de propriedade foi desmembrada em dois prismas: o directum e o utile. Neste sistema social, o proprietário das terras - o suserano, titular do directum - cedia a posse de parte de seu domínio ao vassalo, que exerceria o utile, e tornar-se-ia algo que hoje, sob a lente lapidada por Ihering, chama-se possuidor direto”.

O evoluir social foi formando de uma classe burguesa que começou a desenvolver atividades comerciais e influenciou no nascimento das cidades, o que fragilizou a nobreza feudal, incentivando a modificação de tal regime. Surgindo o Estado Moderno. Em consequência, a propriedade de todas as terras foi repassada ao monarca, que, com o intuito de aumentar o erário, passou a explorá-las na forma de imposição de carregados tributos.

O Estado Moderno sustentou-se na ideia de que a sociedade é o produto de um acordo de vontade entre os homens, pondo de lado a ideia do fundamento natural da sociedade. É na obra o “Leviatã” de Hobbes que o contratualismo ganha a devida sistematização doutrinária, nela o autor inglês afirma que o homem vive inicialmente em “estado de natureza” que se manifesta toda vez em que este não tem suas ações reprimidas, seja pela voz da razão, seja pela presença de instituições políticas eficientes [13].

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Para Hobbes há duas leis fundamentais da natureza, que estão na base da vida social: 1 - cada homem deve esforçar-se pela paz até onde for possível; 2 - cada um deve renunciar ao seu direito sobre as coisas em prol da paz e da defesa de si mesmo, mediante pactos recíprocos de seus membros, com o fim de que a pessoa possa empregar a força e os meios de todos, como julgar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comuns [14].

Posteriormente, o filosofo Rousseau retoma Hobbes, pois explica a existência e a organização da sociedade sob o enfoque de um pacto inicial, para o autor do “Contrato Social” a ordem social é um direito sagrado que não é fruto da natureza, mas sim de meras convenções, afinal, o fundamento da sociedade é a própria vontade humana em associar-se. Assim, a associação de indivíduos passa a atuar no interesse do todo que por sua vez representa o interesse de cada um dos integrantes, é o que ele denomina de “Vontade Geral”, a qual se manifestará por meio de um representante[15]. Para Costaldello o Estado moderno absolutista perdurou até o século XVII quando iniciou o declínio do sistema.

“A nobreza, ao perceber a diminuição de seu poderio com o êxodo dos camponeses para as cidades e pela ascendência ininterrupta da burguesia, tem no seu apoio ao soberano o único meio de permanecer com algum poder de decisão. É a passagem para o chamado “Estado Absoluto”. Sobressaía, nesse período, a adoção de uma política centralizadora e o principal instrumento residia na tributação exacerbada das operações mercantis e no confisco dos bens da Igreja [...] Paulatinamente, a nobreza foi retomando as propriedades e fazendo incidir sobre elas pesados encargos tributários. Este estado de coisas perdurou até o século XVII, quando germina o Iluminismo e o retorno às instituições romanas, como resistência à filosofia do Estado absolutista” [16].

A ascendente classe burguesa, no entanto, não via com bons olhos esse “Estado Absoluto” que detinha o poder sobre tudo - inclusive as propriedades -, pois o soberano podia a qualquer tempo intervir tanto nas ações individuais como nos bens privados do povo. Enquanto instituição centralizada, o estado, em sua primeira versão absolutista, foi fundamental para os propósitos da burguesia no nascedouro do capitalismo, quando esta, por razões econômicas, “abriu mão” do poder político delegando-o ao soberano, concretizando aquilo que Hobbes sustentou no Leviatã. Na virada do século XVIII, entretanto, essa mesma classe não mais se contentava em apenas deter o poder econômico; queria, sim, tomar para si o poder político.

Para a burguesia, o Estado deveria garantir, sem qualquer interferência, a legitimidade da propriedade privada. Esta, por sua vez, deveria ser conquistada por meio do trabalho, legitimando assim a posse do bem privado, afinal, somente por obra daquela é possível acumular riquezas. É o pensador inglês John Locke que sedimenta a base teórica desse momento de transição, para ele a modificação de algo no estado natural dá ao sujeito que a empreendeu a posse sobre o produto transformado, afinal, a garantia ao direito natural à propriedade privada deve ser alcançada pelo esforço do trabalho, e só então protegida pelo Estado [17].

É nesse contexto de crescimento da influência da classe burguesa e declínio do modelo absolutista que surge a Revolução Francesa no final do século XVIII. Ainda que o Bill of Rights outorgado ao fim do processo de independência dos Estados Unidos da América tenha sido o pioneiro na garantia de direitos e liberdades individuais, foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francês, assinada em 1789, que disseminou os ideais liberais pelos quatro cantos do mundo. Vale ressaltar que esta consagrou, em seu art. 17, a propriedade como um direito sagrado e inviolável, somente admitindo que o titular fosse dela despojado em caso de indiscutível interesse público e pagamento de justa indenização. Assim, além de garantir a acumulação da burguesia contra as arremetidas dos demais sujeitos, preocupava-se também em controlar o poder de intervenção do novo Estado, seja como administrador das políticas públicas, seja como legislador.

Nesse sentido, explica Comparato:

“Os documentos políticos do final do século consagraram essa visão de mundo. Tanto o Bill of Rights de Virgínia, de 12 de junho de 1776, em seu primeiro parágrafo, quanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembleia Nacional francesa em 1789, em seu art. 2º, apresentam a propriedade, juntamente com a liberdade e a segurança, como "direitos inerentes" a toda pessoa, ou "direitos naturais e imprescritíveis do homem". Sob esse aspecto de garantia da liberdade individual, a propriedade passou a ser protegida, constitucionalmente, em sua dupla natureza de direito subjetivo e de instituto jurídico. Não se trata, apenas, de reconhecer o direito individual dos proprietários, garantindo-os contra as investidas dos demais sujeitos privados ou do próprio Estado. Cuida-se, também, de evitar que o legislador venha a suprimir o instituto, ou a desfigurá-lo completamente, em seu conteúdo essencial. É o que a elaboração teórica da doutrina alemã denominou uma garantia institucional da pessoa humana” [18].

Todas as transformações sociais trazidas pela Revolução Francesa resultaram no surgimento do Código Civil Francês, em 1804, também conhecido como Código Napoleônico, cujo artigo 544 definiu a propriedade como “o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que não se faça dela uso proibido pelas leis e regulamentos”.

Os principais dogmas da revolução liberal foram a liberdade e a propriedade. Assim o grande limitador ao poder imoderado, ou absoluto, não era apenas a instituição de leis, era preciso garantir sua efetivação. A saída mais apropriada, segundo o projeto liberal, era buscar respostas racionais e previsíveis, vinculando as decisões judiciais às normas preestabelecidas, garantindo a ordem e protegendo sobretudo a propriedade.

Com o declínio do modelo Estatal Liberal houve ascensão de uma nova forma de posicionamento do poder público em face da economia e dos mercados, não havendo mais que se falar em liberalismo puro, mas em diferentes formas e aspectos intervencionistas, cada qual influenciado pelo ideário político da corrente partidária que se encontra no poder.

O sentido de propriedade que emergia na segunda metade do século XIX buscava uma retomada da esfera pública sobre a privada, assim como já havia ocorrido no direito feudal, tendo como fonte de inspiração imediata as novas concepções sociais da época. O conceito de propriedade individualista e absoluta, surgida após a Revolução Francesa, foi objeto de inúmeros questionamentos motivado pelo surgimento dos movimentos sociais, políticos e econômicos ocorridos na Europa.

Segundo Comparato:

“Tornou-se, porém, desde logo evidente que esse modelo de Estado apresentava duas graves limitações. De um lado, a submissão da esfera pública à vida privada, ou seja, a subordinação do Estado às exigências particulares da sociedade civil, notadamente as de ordem econômica. De outro lado, tal modelo provocava, inevitavelmente, a parálise da máquina estatal pelo excesso de freios e contrapesos. Em lugar do abuso de poder, generalizava-se a omissão no exercício do poder público [...] O importante, para efeito do raciocínio aqui desenvolvido, é ter em mente as duas características já assinaladas do Estado liberal clássico, arquitetado no final do século XVIII: as suas feições de engenho institucional a serviço de interesses privados e o seu travamento interno por efeito de uma neutralização recíproca de poderes” [19].

Notadamente a expansão das ideias do filósofo Karl Marx, impôs uma fragilização ao aspecto individualista da propriedade, segundo ele, o caráter absoluto desta última mostra-se pernicioso ao desenvolvimento social e ao bem-estar do homem quando utilizada de modo antiprodutivo, ou ainda, quando utilizada para o benefício de poucos em detrimento da maioria.

Conforme Comparato:

“Seja como for, é dentro dessa perspectiva institucional que se pôs, já no bojo do constitucionalismo liberal, a questão do direito de todo indivíduo à propriedade, ou seja, o direito à aquisição dos bens indispensáveis à sua subsistência, de acordo com os padrões de dignidade de cada momento histórico. A lógica do raciocínio tornou incoercível o movimento político reivindicatório. Se a propriedade privada era reconhecida como garantia última da liberdade individual, tornava-se inevitável sustentar que a ordem jurídica deveria proteger não apenas os atuais, mas também os futuros e potenciais proprietários. O acesso à propriedade adquiria pois, insofismavelmente, o caráter de direito fundamental da pessoa humana” [20].

Vale lembrar que a Igreja Católica também teve importante participação na humanização do direito de propriedade. A encíclica Rerum Novarum afirmava o caráter natural do direito de propriedade, sem negar-lhe a necessidade do cumprimento da função social, retomando, portanto, os pensamentos de Santo Tomás de Aquino.

José Afonso da Silva afirma:

“Os socialistas, primeiros os utopistas (Sain-Simon, Fourier, Louis Blanc, Owen e outros), depois os cientistas (Marx, Engels), submeteram essas concepções abstratas da liberdade, da igualdade e, enfim, do homem a severas criticas, pois, apesar de retoricamente afirmadas e reconhecidas, permitiam medrasse a injustiça e a iniquidade na repartição da riqueza, e prosperasse a miséria das massas proletárias, enquanto o processo acumulativo favorecia, de um lado, o enriquecimento de poucos e, de outro, as crises econômicas ainda mais empobrecedoras e geradoras de desemprego. O manifesto comunista que pela sua influência, é comparado por Harold Lanski com a declaração de independência americana e com a declaração de 1789, foi o documento político mais importante na critica socialista ao regime liberal-burguês. A partir dele essa crítica fundamentou-se em bases teóricas, e numa concepção da sociedade e do Estado, e se tornou por isso mais coerente, provocando, mesmo, o aparecimento de outras correntes e outros documentos, como as encíclicas papais, a começar pela de Leão XIII, Rerum Novarum, de 1891” [21].

Os ideais liberais propostos, sobretudo, na segunda metade do século XVIII, utilizados como base teórica da Revolução Francesa e formatados para ir de encontro ao absolutismo dominante até então, pregava a não intervenção do Estado nas relações privada. Ocorre que o avanço do movimento liberal mudou a estrutura econômica, social e política da Europa e modificou drasticamente a comunidade internacional. Pôs-se fim à escravidão, incapacidades religiosas, inaugurou-se a liberdade de imprensa, constituições escritas foram elaboradas.

Segundo Norberto Bobbio:

“Do ponto de vista institucional, o Estado Liberal (posteriormente) democrático, que se instaurou progressivamente ao longo de todo o arco do século passado, foi caracterizado por um processo de acolhimento e regulamentação das várias exigências provenientes da burguesia em ascensão, no sentido de conter e delimitar o poder tradicional. Dado que tais exigências tinham sido feitas em nome ou sob a espécie do direito à resistência ou à revolução, o processo que deu lugar ao estado liberal e democrático pode ser corretamente chamado de processo de “constitucionalização” do direito de resistência e de revolução.”[22]

Apesar dos avanços citados acima, a adoção do ideário liberal refletiu no adensamento dos centros urbanos e o surgimento do proletariado urbano, fruto do desenvolvimento indústria, causa, portanto, de uma crescente injustiça social, pois só quem detinha capital podia gozar com plenitude da liberdade tão propagada pelos liberais. Evidentemente o quadro social exigiu uma mudança de atitude por parte do poder público que passa a intervir no domínio econômico, bem como passa a garantir melhorias nas condições sociais.

A consequência desse processo aliados aos problemas trazidos pelas duas grandes guerras desembocaram no surgimento do “Welfare State”. Este tem, essencialmente, nas políticas públicas assistencialistas, sua razão de ser, pois passou a assumir responsabilidades sociais crescentes, como a previdência, a habitação. Também se aprimorou o papel do estado como agente empreendedor, sobretudo em setores estratégicos para o desenvolvimento. Contudo o cresci­mento desproporcional do Estado revelou a incapacidade de atuação do Estado, sobretudo por conta das dificuldades naturais de gerenciamento da máquina estatal, e acabou por gerar uma grave crise financeira.

Conforme Dallari:

“Durante a I Guerra Mundial a situação dos operários se agravou no  mundo todo. Em 1937, Franklin Roosevelt é eleito presidente dos Estados Unidos, encontrando o povo em situação desesperadora: Enfrentando a resistência dos empresários e dos tradicionalistas, Roosevelt lan­çou seu programa de governo conhecido como New Deal, que era, na realidade, uma política intervencionista [...] O advento da II Guerra Mundial iria estimular ainda mais a atitude intervencionista do Estado. Assumindo amplamente o encar­go de assegurar a prestação dos serviços fundamentais a todos os indivíduos o Estado vai ampliando sua esfera de ação. E a necessidade de controlar os recursos sociais e obter o máximo proveito com o menor desperdício, para fazer face às emergências da guerra, leva. a ação estatal a todos os campos da vida social, não havendo mais qualquer área interdita à intervenção do Estado” [23].

Considerando esse novo paradigma, surge o denominado Estado Democrático de Direito. De certa maneira é um retorno aos ideais do liberalismo, sem, contudo, abandonar a necessidade de promover o desenvolvimento social, garantindo a dignidade da pessoa humana e os ditames da justiça social, permeados e aliados dessa vez à livre iniciativa e a defesa de mercado.

Assim, caracteriza-se numa nova concepção para a presença do Estado na economia, garantindo-a e regulando-a, tentando sempre que possível desestatizar as atividades econômicas e reduzir os encargos sociais.  Deve também, essa nova forma de conceber o Estado, garantir o equilíbrio das contas públicas, sem, todavia, desviar-se da busca por melhorias sociais, desta feita, enfatizando as atividades coletivas e essenciais.

1.3 A Função Social

As primeiras constituições a relativizarem o então absoluto direito à propriedade privada foram a do México em 1917 e a da Alemanha em 1919. A primeira, em seu art. 27, determina que a Nação terá, a todo tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações impostas pelo interesse público e o adequado aproveitamento dos elementos naturais de modo a realizar uma distribuição equitativa da riqueza e a consequente melhoria das condições de vida rural e urbana. A segunda, em seu art. 153, dispõe que a propriedade obriga e o seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social[24].

No ordenamento pátrio, segundo Tepedino e Schreiber:

“foi somente na Constituição de 1946, produto de uma postura intervencionista e assistencialista adotada pelo Estado brasileiro após os anos 30, que se introduziu em nosso ordenamento a preocupação com a funcionalização da propriedade ao interesse social” [25].

Para os autores, o artigo 147 do referido texto constitucional em muito se assemelhava àquele estampado na Constituição de Weimar: “O uso da propriedade será condicionado ao bem estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos”.

 Pouco depois, na Constituição de 1967, o princípio foi pela primeira vez enquadrado como um princípio econômico, assim dispôs:

“Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:

[...]

III - função social da propriedade.”

A Constituição de 1969, mantendo o instituto no titulo referente à ordem econômica e social, trazia o seguinte texto:

“Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios:

[...]

III - função social da propriedade”.

Atualmente, a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito e possui como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, conforme estabelece a Constituição de 1988, em seu artigo 1º.

A propriedade foi protegida pelo texto constitucional tanto no art. 5º, XXII a XXXI, no capítulo dos direitos e garantias individuais, como no art. 170, II e III, capítulo da ordem econômica.

“Art. 5° - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termo seguintes:

[...]

XXII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;”

É importante mencionar que, não obstante a contemplação do direito de propriedade de forma genérica pelo art. 5º, caput e inciso XXII, também podemos observar, especificamente, nos incisos XXVII a XXXI, a proteção ao direito autoral, à propriedade industrial e de marcas e ao direito de herança, enquanto variações do direito de propriedade.

“A Constituição consagra a tese, que se desenvolveu especialmente na doutrina italiana, segundo a qual a propriedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares, de onde ser cabível falar não em propriedade, mas em propriedades. Agora, ela foi explícita e precisa. Garante o direito de propriedade em geral (art. 5º, XXII; garantia de um conteúdo mínimo essencial), mas distingue claramente a propriedade urbana (art. 182, §2º) e a propriedade rural (art. 5º, XXVI, e, especialmente, arts. 184, 185 e 186), com seus regimes jurídicos próprios, sem falar nas regras especiais para outras manifestações da propriedade”[26].

A Constituição pátria afirma, ainda, que todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, instituindo o princípio democrático, permeado pela soberania do povo. Todavia, essa soberania não pode ser entendida de forma absoluta, deve buscar o bem comum em contraponto aos interesses particulares. Com a propriedade privada não seria diferente. Não é que com isso se negue o conteúdo de liberdade inerente ao direito de propriedade, tampouco que se deixe de vislumbrá-la como direito básico da ordem econômica, mas apenas se opera o fenômeno da mudança de paradigma. Salutar o entendimento encontrado por Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber nesse sentido:

“De fato, o condicionamento da tutela do domínio ao atendimento dos interesses sociais relevantes, e em especial ao atendimento da dignidade da pessoa humana, vem remodelando o direito de propriedade, de modo a conformar os interesses proprietários com os múltiplos interesses não-proprietários, e sobretudo o de conformar os interesses patrimoniais àqueles de natureza existencial. A propriedade vai ganhando, assim, um novo papel no sistema civil-constitucional brasileiro, o de servir de garantia de acesso e conservação daqueles bens necessários ao desenvolvimento de uma vida digna, seja no âmbito dos bens públicos (como os recursos naturais), seja no âmbito dos bens privados (como o imóvel residencial ou bens móveis de uso essencial)”.[27]

 A função social da propriedade apresenta-se, assim, como um instrumento para equilibrar a atividade econômica e também para sancionar o proprietário que a utiliza sem atender ao interesse social. Desta forma, para fins de efetivação, a própria Constituição elenca meios de restringir o direito à propriedade, reduzindo os poderes reconhecidos ao proprietário, a exemplo da desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, e da requisição administrativa, no caso de iminente perigo público (art. 5º, XXIV e XXV). Para ilustrar, segue o seguinte trecho:

“O texto constitucional revela a existência de um direito contraposto a um dever jurídico. Dizendo que a propriedade deve atender à função social, assegura o direito do proprietário, de um lado tornando intocável sua propriedade se consoante com aquela função, e, de outro, impõe ao estado o dever jurídico de respeitá-la nessas condições. Sob outro enfoque, o dispositivo garante ao Estado a intervenção na propriedade se descompassada com a função social, ao mesmo tempo em que faz incidir sobre o proprietário o dever jurídico de mantê-la ajustada à exigência constitucional.” [28]

A função social da propriedade não se confunde com limitações administrativas ou atividades do Poder de Polícia, pois enquanto a primeira é elemento constitutivo do direito de propriedade, estas últimas são consequências da supremacia geral da Administração frente aos cidadãos, não sendo considerados, portanto, constitutivos do direito de propriedade.

São espécies de limitação, segundo José Afonso da Silva, “as restrições, servidões e desapropriações. As restrições limitam o caráter absoluto da propriedade; as servidões (e outras formas de utilização da propriedade alheia) limitam o caráter exclusivo; e a desapropriação, o caráter perpétuo”. Vale aqui trazer o ensinamento do saudoso Hely Lopes Meireles:

“Não se confunde a servidão administrativa com a desapropriação, porque esta retira a propriedade do particular, ao passo que aquela conserva a propriedade com o particular, mas lhe impõe o ônus de suportar um uso público. Na desapropriação despoja-se o proprietário do domínio e, por isso mesmo, indeniza-se a propriedade, enquanto que na servidão administrativa mantém-se a propriedade com particular, mas onera-se essa propriedade com um uso publico e, por esta razão, indeniza-se o prejuízo (não a propriedade) que este uso, pelo poder público, venha a causar ao titular do domínio privado.” [29]

A função social não limita, ela integra o conteúdo do direito de propriedade, como elemento constituidor e qualificador do seu regime jurídico. Portanto, o fundamento da função social é o dever do proprietário de exercer o direito de propriedade em beneficio de um interesse social, enquanto que o fundamento das limitações administrativas consiste em impor condições para o exercício do direito da propriedade.

As Constituições anteriores não traziam expressos os requisitos necessários ao atendimento da função social da propriedade urbana. Essa definição é um poderoso instrumento para que os municípios promovam o desenvolvimento urbano, pois pode ser utilizada para evitar a ocupação de áreas não suficientemente equipadas, evitar a retenção especulativa de imóveis vagos ou subutilizados, preservar o patrimônio cultural ou ambiental, exigir a urbanização ou ocupação compulsórias de imóveis ociosos, captar recursos financeiros destinados ao desenvolvimento urbano e para exigir a reparação de impactos ambientais.

A Constituição de 1988 passou a exigir a racionalização do uso do solo urbano, impondo-a no contexto da função social da propriedade urbana, como podemos verificar no artigo 182:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§ 1.º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2.º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”

Este dispositivo prevê uma política de ordenação urbana a qual deverá ser empreendida pelos Poderes Públicos municipais, por meio de um plano diretor, que será submetido à aprovação das suas respectivas câmaras de vereadores.

No próximo capítulo, será enfocado o estudo no IPTU que é um tributo da espécie imposto de competência dos municípios que recai sobre a propriedade predial e territorial urbana, tendo como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel, e tem como base de cálculo seu valor venal. Ademais, será salientado que o IPTU para os fins do cumprimento da função social da propriedade é extrafiscal e progressivo. Ainda, no capítulo posterior, será demonstrado os pressupostos para o estabelecimento legal da progressividade do IPTU para o cumprimento da função social e se tal instituto possui eficácia.

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Sobre o autor
Roberto Mota

Advogado formado pela Faculdade Estácio do Recife; Pós-graduado em direito Administrativo pela Universidade Estácio de Sá; Pós-graduando em direito Público pela Universidade Braz Cubas e Formado em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de Pernambuco -UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOTA, Roberto. Tributação municipal: a progressividade e eficácia do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4049, 2 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29074. Acesso em: 18 abr. 2024.

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