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Gênero, cárcere e família: estudo etnográfico sobre a experiência das mulheres no tráfico de drogas

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11/08/2014 às 12:13
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Aborda-se a criminalidade feminina com ênfase no tráfico de drogas. A pesquisa sobre as relações de poder que envolvem as mulheres que chegam ao tráfico de drogas e, após a condenação, são colocadas em estabelecimentos penais masculinos.

Resumo: Neste texto, aborda-se a criminalidade feminina com ênfase no tráfico de drogas. A pesquisa sobre as relações de poder que envolvem as mulheres que chegam ao tráfico de drogas e, após a condenação, são colocadas em estabelecimentos penais masculinos torna-se relevante, pela escassez de trabalhos nesse sentido. Através dos dados, observa-se um aumento da criminalidade feminina e que a participação das mulheres em crimes de tráfico drogas é consideravelmente maior que a dos homens. A perspectiva de gênero precisa ser encarada como um dos eixos que constituem as relações sociais como um todo. A importância das relações sociais, juntamente com as estruturas familiares, surge quando para sua manutenção é necessário a organização através do exercício de atividades, exercício que necessita de representantes, ou seja, a determinação e a tomada de papéis. Estudo Etnográfico. Como marco teórico refere-se a Bourdieu (1999, 2006 e 2007), Foucault (1997, 2002, 2007 e 2011), Butler (2003, 2005 e 2007) e Lemgruber (1993 e 2001)  

Palavras-chave: Gênero. Família. Cárcere. Mulher.


INTRODUÇÃO

A análise da criminalidade feminina no tráfico de drogas, com recorte na vida de mulheres que se encontravam em situação de vulnerabilidade social deve considerar suas motivações para a entrada no mundo do ilícito, que tantos reflexos geram em suas relações familiares, nesse processo de fora/dentro do cárcere.

O tema foi desenvolvido de forma interdisciplinar. O Direito Penal funciona como alicerce para uma abordagem contextualizada com outras áreas como: Antropologia, Sociologia, Criminologia, dentre outras.

A abordagem antropológica permite refletir sobre a experiência de vida dessas mulheres que não se resume a experiência do cárcere. Nesse sentido atenta-se para o “ponto de vista do nativo”, buscando a observação direta dos comportamentos sociais a partir das relações humanas. 

Por meio do trabalho de campo, foi possível observar os fatos e fenômenos vividos, coletar dados referentes a eles para proceder à  análise e à interpretação dos mesmos, numa articulação entre a teoria e o fato etnográfico, objetivando  compreender o problema pesquisado, mas, principalmente, conhecer a cultura do Outro. Tudo isso implica uma vivência profunda e relativizadora do olhar de uma professora de direito penal com outros modos de vida, com outros valores e com outros sistemas de relações sociais.

Realizar uma pesquisa dentro de um estabelecimento prisional total significa sair de um lugar confortável, buscando compreender as mulheres que ali cumprem suas penas, procurando, assim, aprender com o Outro nesse contexto tão cheio de particularidades, por meio de uma relação de empatia entre a pesquisadora e o objeto de estudo.

As pesquisas empíricas com tema prisional foram as que mais detectaram, nas últimas décadas, uma modificação da participação feminina nos mais variados tipos de crimes. Iniciou-se, então, um processo de segmentação dos estudos em torno das mulheres e seu envolvimento com a criminalidade, pois, até então, o estudo de uma criminalidade “tipicamente” feminina se baseava em estereótipos, pré-conceitos e representações sociais muito específicas (OLIVEIRA, 2000).

A retomada do potencial feminino, que ocorreu, em parte, com a liberação feminina e com a entrada da mulher no mercado de trabalho, promovendo a desconstrução das famílias de núcleo patriarcal, demonstram um novo interesse pelo que a mulher pode oferecer e a responsabilização pelo próprio destino.

Para estudar as instituições, costumes e códigos, ou o comportamento de mulheres e homens, é imprescindível atingir os seus sentimentos subjetivos e desejos pelos quais eles vivem. Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm suas ambições, seguem seus impulsos, desejam diferentes formas de felicidade.

Dentro do presídio, em contato com as mulheres, vendo, escutando e observando o que lá acontece, foi possível colher não só os dados estatísticos, mas também os sentimentos, desejos e vontades de mulheres que, num processo de encarceramento, encontram-se com suas relações afetivas e familiares transformadas.

Vale reafirmar que a confiabilidade e a legitimidade de uma pesquisa empírica dependem, fundamentalmente, da capacidade de o pesquisador articular teoria e empiria em torno de um objeto, questão ou problema de pesquisa. Isso não só demanda esforço, leitura e experiência, mas também implica incorporar referências teórico-metodológicas de tal maneira que se tornem lentes a dirigir o olhar, ferramentas invisíveis a captar sinais, recolher indícios, descrever práticas, atribuir sentido a gestos e palavras.

O trabalho foi desenvolvido de forma que o objeto de estudo investigado e analisado transponha fronteiras de tal forma que a análise, ancorada em referencial teórico e metodológico da antropologia, transcenda o conhecimento empírico. Em sua maioria, as mulheres estão encarceradas em razão do tráfico de drogas. Tal fato me levou a indagações, instigou-me a querer entender o significativo crescimento desse segmento, dentro de um presídio. 


A MULHER E A CRIMINOLOGIA

Na virada do século XX, os teóricos atribuíam a violência feminina às influências dos estados fisiológicos pelos quais a mulher passaria na vida: a puberdade, a menstruação, a menopausa e o parto, ou seja, às influências relacionadas à sexualidade e à maternidade (SOARES e ILGENFRITZ, 2002).

Importante lembrar que o Código Penal Brasileiro vigente (datado de 1940) encontra-se ainda marcado por alguns elementos dessa perspectiva, apontando que, pela sua constituição hormonal, a mulher possui uma natureza psicológica por vezes sujeita a transtornos mentais significativos, em determinados períodos específicos da sua vida, os quais influenciam o psiquismo como ocorre, por exemplo, no delito de infanticídio, crime pelo qual a mulher mata o próprio filho influenciada pelo estado puerperal.

Na lição de Encarna Bodelón, devemos recordar o papel histórico do direito penal:

Longe de proteger seus interesses, o direito penal do século XIX e boa parte do século XX contribuiu para reproduzir uma determinada significação do ser social mulher, isto é, da estrutura de gênero. Por um lado, a mulher aparece sujeita a tutela e sem plena responsabilidade, por outro, estabelece um conjunto de controles sociais sobre a sexualidade feminina e um conjunto de estereótipos sobre sua sexualidade  (BODELÓN, 2000).

No artigo Mulher e Cárcere: uma perspectiva criminológica, Sposato (2007) refere que a literatura, a partir dos anos setenta, permite aferir o tratamento dispensado às mulheres pelo sistema penal, mostrando sua posição desigual no direito penal.  Mais que isso, permite identificar que, historicamente, a mulher aparece considerada pelo sistema penal como uma pessoa sujeita a tutela, a um conjunto de mecanismos de controle sobre sua sexualidade (como a criminalização do aborto) e um conjunto de estereótipos sobre o feminino.

A autora diz que a história da criminalização de mulheres é a história do exercício do poder fundado em um direito cujas bases são inegavelmente sexistas (SPOSATO, 2007).

É sabido que o direito penal, com seus instrumentos repressivos de controle social, recai sempre sobre os mais vulneráveis, porque a prática do sistema penal está orientada a castigar os pobres e deixar impunes outros setores, mesmo que causem danos mais graves (op. cit. 2007). No mundo do tráfico de drogas, observa-se exatamente isso, ou seja, pune-se o pequeno traficante, a “mula”, o “fogueteiro”, enquanto as grandes organizações criminosas ficam impunes.

Carol Smart (1994) se manifesta dizendo que o direito tem gênero, pois atua como uma tecnologia de gênero, ou seja, um processo de produção de identidades fixas. A mulher é o diferente e, quando não exerce o papel de mãe ou esposa, é desviada.Da mesma forma, a Teoria Legal Feminista dos anos oitenta favorece a compreensão acerca das relações entre gênero e direito e identifica um direito sexista (AZAOLA, 1997).

No estudo realizado por Vera Andrade (apud SILVA, 2011), verificou-se que a entrada do movimento feminista na Criminologia Crítica ampliou o objeto de estudo desta, constatando-se que a seletividade do sistema penal, em um primeiro momento, não abrangia a desigualdade de gêneros, mas tão somente a desigualdade de grupos e classes.

A introdução da questão de gênero na Criminologia Crítica, segundo a autora, trouxe uma dupla contribuição: não só propiciou maior compreensão sobre o funcionamento do sistema penal e social, como também mostrou que, sob o aparente mito da neutralidade e tecnicismo, mediante os quais são aplicadas as normas e são formulados os conceitos jurídicos, há uma visão dominantemente masculina.

A adoção de um paradigma masculino, absoluto e uno quando da elaboração das políticas penitenciárias viola e violenta a cidadania das mulheres encarceradas, diz Talita Rampín (2011), contribuindo para o incremento de um processo cada vez mais intensivo de sua invisibilização, ao ponto de negar-lhes o bem mais caro à pessoa humana: a dignidade.

Com a entrada da categoria “gênero” nas ciências sociais, analisar a criminalidade feminina associando/comparando com a criminalidade masculina já não se justifica mais, pois ficou evidente a existência de diferentes temporalidades e mulheres atuando em cada lugar, em cada contexto, tornando-se, portanto, uma história múltipla (SCOTT apud SALMASSO, 2004).

Segundo Joan Scott, gênero é um conceito que repousa na articulação entre duas proposições:

(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder [...] o gênero é uma primeira maneira de dar significado às relações de poder. Seria melhor dizer o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado (SCOTT,1995:14).

Sendo o gênero, no entendimento de Scott, uma forma de significar relações de poder, é necessário que se compreenda que não há uma natureza do gênero feminino ou uma natureza do gênero masculino. A natureza que justifica a existência de corpos com determinadas características não pode ser pensada senão como uma existência dentro da linguagem ou a partir da linguagem.

O gênero feminino e o masculino vão se constituir e se definir dentro de relações e nas práticas que se estabelecem e que assumem um significado cultural. Não há uma natureza dos gêneros que seja efetivamente neutra. Então, masculinidade e feminilidade são significados estabelecidos culturalmente que fazem com que uma determinada pessoa apreenda comportamentos tidos como masculinos e comportamentos relacionados com o feminino (SILVA, 2009).

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Gênero, conforme Butler (2003 e 2005), é modelo de dominação social de dimensão simbólica, baseado nas oposições sexuais em que os componentes biológicos não são diferenciados dos componentes culturais estabelecidos.

A categoria gênero analisa a construção sociocultural das diferenças em razão do sexo ou das noções de masculino e feminino, ou das identidades masculino/feminino, em um determinado momento histórico, em uma determinada sociedade. “Os significados dessas identidades, que são criadas culturalmente, variam no tempo e em cada sociedade, sendo, portanto, conceitos que variam e se transformam” (SILVA, 2009:31).

Assim, gênero é construção cultural que normaliza os comportamentos esperados e definidos como sendo femininos e masculinos. Para além da construção das identidades, o gênero está presente em toda a estrutura social, refletindo na própria constituição do corpo. Segundo Judith Butler:o efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero (BUTLER, 2003:200).

A autora traz a ideia de que os atributos do gênero são performativos:

O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas significa que as próprias noções do sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade, verdadeiras ou permanentes, também são constituídas como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculina e da heterossexualidade compulsória (op.cit., 2003: 201).

De acordo com Heilborn (1994), isso implica afirmar que a palavra sexo ficou vinculada à dimensão anátomo-fisiológica, enquanto o conceito de gênero passou a referir-se às características e papéis culturais atribuídos por aqueles que, na condição de homens ou mulheres, inserem-se numa dada sociedade e numa dada cultura.

Segundo Margareth Rago e Heleieth Saffioti (2004:32), no século XIX, a mulher foi projetada para o âmbito privado (lar/casa), ao contrário dos homens que tinham seus lugares na esfera pública (trabalho/rua). Ao homem cabia a tarefa de ser pai e chefe provedor dos bens materiais necessários à sobrevivência de sua família; à mulher cabia a tarefa da maternidade e da criação dos filhos, sempre retraída à tranquilidade aparente do lar.

A menor incidência de mulheres no mundo do crime é entendida como especificamente relacionada com um contexto social que reflete toda uma cultura social de que a mulher pertence a uma esfera doméstica. Assim, a ideologia da domesticidade e incapacidade vai se configurando para as mulheres, devendo elas “submeter-se à autoridade masculina em casa e fora dela, sob pena de serem olhadas como anormalidades ou monstruosidades” (RAGO, 2004:34).

Fonseca (2004) observa que devemos usar com cautela a oposição entre casa (como espaço feminino) e rua (espaço masculino). Essa dicotomia, particularmente bem adaptada à progressiva separação de espaços na família burguesa do século XIX, não se aplica, necessariamente, em outros contextos. Nos grupos populares, o público e o privado se confundem: tanto as mulheres quanto os homens contribuem para o orçamento familiar realizando atividades irregulares (setor informal); os horários de trabalhos flexíveis possibilitam que ambos estejam presentes e ativos nas suas casas e na vida cotidiana do bairro.

O crime, enquanto ação realizada na esfera pública, continua sendo um espaço essencialmente masculino, permanecendo a criminalidade praticada pelas mulheres relacionada ao mundo feminino, relacionando-se com a casa, com os filhos, com a família e com a manutenção desta (PERROT, 2010).

No decorrer de décadas, as mulheres lutaram e conseguiram conquistar um espaço muito importante dentro da sociedade. Para Perrot (2010), pelo menos no mundo ocidental, o lugar das mulheres, no espaço público, foi revestido de elementos em cuja representação fica evidenciado o imaginário masculino da mulher; vista como selvagem, mais instintiva do que racional, ela incomoda e ameaça.

A partir dessa ideia, as mulheres, que por muito tempo foram representantes da figura dócil, dedicadas aos companheiros, mostraram-se, escondida ou abertamente, como delituosas, capazes de cometer crimes.

Almeida assim se manifesta:

Muitas, o tempo todo controladas até por elas mesmas, rebelam-se contra um status feminino que lhes fora imposto no decorrer dos séculos, bem como contra maus-tratos, contra a submissão e também contra a subestimação de sua capacidade de delinquir (ALMEIDA, 2001:100).

No trabalho de campo, encontrei mulheres excepcionalmente fortes, decididas, capazes de fazer o que fosse preciso em prol de seus filhos, que escapam ao modelo estigmatizado da passividade, submissão, recato, delicadeza, fragilidade creditada à mulher do espaço doméstico, fugindo, em grande escala, aos estereótipos atribuídos às vítimas e ao sexo frágil.

Homens e mulheres desempenham um papel preestabelecido de acordo com funções de gênero convencionadas socialmente. Como contraponto ao modelo passivo de mulher, ousa-se falar sobre a violência feminina, que era ou ainda é vista como patologia, pelo fato de o comportamento das mulheres violentas ser rotulado como inapropriado e não feminino. Consequentemente, a tradicional socialização feminina atuaria como um fator que protege as mulheres de entrarem no mundo da infração (ASSIS & CONSTANTINO, 2001).

Para Almeida (2001), a mulher nega esse mito do feminino deificado, torna-se a sua antítese, a sombra da mulher santa e mãe, e o ato de violência torna-se uma forma de quebrar limites.

A inserção da mulher no espaço público, antes proibido, a busca de autonomia, o mexer com a ordem masculina, enfim, o empoderamento feminino, ocorreu por várias vias, como o trabalho assalariado e as lutas pela cidadania, a partir de movimentos feministas, nos anos de 1960 e 1970. A noção de gênero surge pautada nesses movimentos, constituindo-se como um conceito das ciências sociais, referente à construção social do sexo.

Para compreendermos toda a estrutura atual, em face da criminalização feminina, é indispensável atentarmos que a “mulher reclusa é vista como tendo transgredido a ordem em dois níveis: a) a ordem da sociedade; b) a ordem da família, abandonando seu papel de mãe e esposa – o papel que lhe foi destinado. Por isso sofrem uma punição também dupla: a) a perda da liberdade com a privação de liberdade comum a todos os prisioneiros; b) estão sujeitas a níveis de controle e observação muito mais rígidos, que visam a reforçar nelas a passividade e a dependência, o que explica por que a direção de uma prisão de mulheres se sente investida de uma missão moral” (LEMGRUBER, 1993:86).

Essa mulher é não só criminalizada por sua conduta ilícita, mas também estigmatizadas pela violação do comportamento socialmente esperado, ou seja, sofre uma dupla marginalização social.

Ela passa a ser vista como agente de uma transgressão ainda maior, pois a ação criminosa deveria fazer parte do mundo masculino, e a mulher que assume esse papel acaba por se transformar numa “espécie de monstro”, realizando uma dupla transgressão.

Michel Foucault procura entender a figura do “monstro” em nossa sociedade moderna, definindo-a como sendo essencialmente uma noção jurídica. Dessa forma, “o monstro seria aquele que combina o impossível com o proibido” e, serve como o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. Segundo o filósofo, o “monstro humano” é aquele que constitui em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas a violação das leis da natureza” (FOUCAULT, 2002: 69-70).

As práticas sociais revelam representações masculinas e femininas determinantes das relações sociais construídas cultural e historicamente. Na definição dos papéis sociais, ou das identidades criadas como masculino/feminino, estão presentes as relações de poder que acabam conferindo o significado dos mesmos, apesar de não se restringirem apenas a relações de poder. E aqui essas relações não são tidas como uma coisa única, estanque, mas como relações, processos, onde o poder está presente. Passa-se a pensar no poder como algo fragmentado, presente sempre em todas as relações do cotidiano (SILVA, 2009).

Para Bourdieu (1999), a violência pode ser uma forma de poder. Segundo ele, é possível perceber, na história das mulheres, a violência não apenas invisível, mas declarada, isto é, a transgressão de normas, de uma forma ou de outra, gera violências. A violência pode não levar a mudanças estruturais, mas produz sinais de que a mulher está questionando as estruturas, pela violência.

Resistência e subordinação são conceitos importantes na análise dessas relações de poder estabelecidas entre os gêneros. A subordinação das mulheres está alicerçada no processo de construção social dos gêneros masculino/feminino e as discussões sobre gênero pretendem justamente questionar os espaços delimitados como femininos, tal como a unidade doméstica e o ambiente familiar.

Para Foucault (2007), o poder é sempre uma relação; ele é exercido também dentro desses lugares: ambiente privado e familiar. Assim, propõe que observemos o poder sendo exercido em muitas e variadas direções, como se fosse uma rede que, “capilarmente”, se constitui por toda a sociedade. O poder deveria ser concebido mais como “uma estratégia”, não sendo, portanto, um privilégio que alguém possui ou do qual se apropria. Acrescenta, ainda, que se deve observar o poder como uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade.

Na concepção de Foucault (2007), o exercício do poder sempre se dá entre sujeitos que são capazes de resistir. Poder é sempre um enfrentamento. Sendo assim, há que se ter presente a possibilidade de o outro reagir, porque sem reação não se tem poder. O poder se exerce em espaço de liberdade: onde esta não exista, tem-se apenas obediência. E violência é sempre dominação e não subordinação. Na dominação, há ausência de liberdade, verdadeiro assujeitamento do outro.

O poder, em todas as sociedades, segundo Foucalt (2007), está fundamentalmente ligado ao corpo, uma vez que é sobre ele que se impõem as obrigações e as proibições.

A partir desses conceitos é relevante pensar na possibilidade de as mulheres resistirem, enquanto sujeitos ativos, à sua subordinação, tornando-se sujeitos com possibilidades de transformação.

Os papéis sexuais definidos como femininos contrapõem-se às representações de violência, de manifestação de contrariedade à normatividade, por isso a esfera criminal sempre foi reservada aos homens. A definição dos papéis sexuais, segundo a historiadora francesa Michelle Perrot (2010), fez com que a cidade fosse um espaço sexuado, com espaços definidos como masculinos e outros como femininos.

Nessa perspectiva, a violência simbólica apresenta tema central nos estudos de Bourdieu (1999). Tal violência não é fruto da instrumentalização pura e simples de uma classe sobre a outra, mas é exercida através dos jogos engendrados pelos atores sociais. Os “sistemas simbólicos” cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra, dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam, contribuindo, assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados”.

Para o sociólogo, essa socialização a que se refere é, na verdade, uma violência simbólica que só ocorre de forma eficaz, porque há um habitus  que orienta os agentes a apreender seu lugar no mundo social, percebendo tal lugar como natural.

 A ordem se perpetua por meio de esquemas de representação dos objetos/sentidos e reprodução do mundo, revelados nas práticas sociais que repetem um arranjo onde há a divisão social entre os sexos, com predomínio do masculino. Essa forma de repetição se dá com a percepção de que as divisões sociais são um fato natural e não construções sociais, ou seja, o indivíduo constrói as suas percepções a partir do coletivo. A divisão social está presente em estado objetivado, através das estruturas e em estado subjetivado, incorporado no habitus, que sustenta essas práticas de produção de uma mesma organização social.

No espaço social, há relações assimétricas de dominação entre os atores. Essa dominação se perpetua pela própria inculcação, nas mulheres, do pensamento que privilegia o masculino, já que as mesmas interpretam o mundo através de esquemas e categorias sociais construídas e eternizadas dentro do predomínio do masculino (SILVA, 2009).

A incorporação inconsciente é imposta pelo poder simbólico responsável pela determinação de significações − dominação simbólica − que naturaliza a diferença entre masculino e feminino a partir das diferenças biológicas. Fala-se em dominação simbólica porque esta pressupõe um poder não percebido pelos dominados, que assimilam conceitos que favorecem os dominadores, e estes, por sua vez, sem perceberem esse processo, reproduzem esses conceitos e essa ordem (op. cit., 2009). É eficaz porque consentido por quem sofre o poder e é consentido porque essas disposições são inculcadas, primeiramente pela família, e depois por toda a ordem social, com suas instituições prontas a socializar e ampliar os esquemas de dominação.

A incorporação da dominação se dá, como já dito, pela submissão imediata e inconsciente da mulher, num processo de violência simbólica, com o compartilhamento entre dominador e dominado, da organização natural das coisas, num gradativo processo de “socialização do biológico e biologização do social” (BOURDIEU, 1999:9).

A dominação se dá no engendramento de jogos a serem estabelecidos nas relações entre os agentes sociais nos diversos campos  (BOURDIEU, 1999). As divisões da ordem social que estão instituídas entre os gêneros têm habitus diferenciados. Isto importa em diferentes esquemas de percepção do mundo, a partir de um habitus masculino e de um habitus feminino, que determinam preceitos favoráveis ao masculino e desfavoráveis ao feminino.

A desigualdade entre o habitus masculino e o feminino é uma forma de dominação social. Os dominados terminam por interiorizar sua dominação, passando a assumir aqueles valores/princípios que levam à sua própria dominação.

Sem ter outro caminho para pensar a si, cabe aos dominados tomar esses esquemas para se perceber e se comportar dentro das classificações ditas naturais dos dominantes (alto/baixo, masculino/feminino, branco/negro, etc.), ou quaisquer outras constituídas como disposições naturais amplamente incorporadas (BOURDIEU apud ALMEIDA, 2001).

Como estamos analisando o envolvimento de mulheres no tráfico de drogas, em boa parte, com seus maridos ou companheiros, é preciso pensar na família como categoria social e cultural de construção mental da realidade (BOURDIEU, 2007).

A família, assevera Bourdieu (op. cit., 2007), é ao mesmo tempo estrutura estruturante e estrutura estruturada, ou seja, categoria objetiva (das estruturas sociais) e subjetiva (das estruturas mentais), produzindo representações que contribuem para a reprodução da ordem social.

Há um processo de naturalização dessa instituição social que é percebida como uma categoria natural, realizando o trabalho simbólico de transformar, como fator de integração, a obrigação de amar imposta a seus membros em disposição amorosa exercida, sobretudo, pelas mulheres.

Por meio desse trabalho simbólico, incorporam-se as relações de dominação/submissão como sendo relações de natureza afetiva.

Na família, tem início o processo de interiorização dos papéis de gênero:

[...] o funcionamento da unidade doméstica como campo encontra seu limite nos efeitos da dominação masculina que orientam a família em direção à lógica do corpo, à integração, podendo ser um efeito da dominação (BORDIEU, 2007:132).

Dentro dela, define-se o espaço privado como espaço feminino onde vigora a economia de bens simbólicos:

A célula familiar, tal como foi valorizada ao longo do século XVIII, permitiu que sobre as duas dimensões principais − o eixo marido-mulher e o eixo pais-filhos − se desenvolvessem os elementos principais do dispositivo de sexualidade, o corpo feminino, a precocidade infantil, a regulação dos nascimentos, e, em menor medida, provavelmente, a especificação dos pervertidos (FOUCAULT, 1997:142).

A família, enquanto instância formal de controle, contribui para a reprodução das desigualdades de gênero, reforçando a ideia de que o espaço público seja local de domínio masculino.Pode-se falar, a exemplo de Perrot (2010 e 2005), em formas de resistência das mulheres ao poder masculino, reveladas em estratégias do cotidiano que lhes conferem poderes.

A atenção à questão de gênero, no entanto, não atende simplesmente a uma tendência contemporânea ocasional que concebe a mulher como um novo sujeito em diversos setores e esferas da vida social e assim também no sistema penal, mas reveste-se de uma dupla significância que reside precisamente em refletir acerca dos efeitos ou consequências que a criminalização e a penalização podem ocasionar não só para a mulher como indivíduo e sujeito de direitos, mas também de forma extensiva a toda a sociedade.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDI, Maria Luiza. Gênero, cárcere e família: estudo etnográfico sobre a experiência das mulheres no tráfico de drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4058, 11 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29115. Acesso em: 29 mar. 2024.

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